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Processo nº 403/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público vem reclamar para a conferência da decisão sumária de fls. 49, cujo conteúdo é o seguinte:
'1. Ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional da sentença do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia de 23 de Março de 2000, de fls. 4, na 'qual não se aplicou o artº 490º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo D.L. 262/86, de 2/9, por ter sido julgado ferido de inconstitucionalidade material', proferida no procedimento cautelar não especificado requerido por AB... contra J..., S.A., consistente em que 'o Tribunal determine que a J... se abstenha de proceder à escritura pública da aquisição compulsiva das acções da S... detidas pelos accionistas que não aceitaram a oferta [de aquisição de acções a accionistas da S..., S.A.] (... )e o artigo 490º nº 3 do C.S.C., bem como, caso já o tenha feito, a mesma J... se abstenha de proceder ao registo respectivo, com as legais consequências'. Com efeito, na decisão recorrida o tribunal recusou a aplicação 'do art. 490º do C.S.C', porque 'o mecanismo de aquisição tendente ao domínio total, em que se consubstancia a oferta pública de aquisição, é ilegal, pois a norma que o consagra está ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da propriedade privada, da livre iniciativa e da igualdade, plasmados em sede constitucional, e bem assim, na declaração Universal dos Direitos do Homem, tratado a que o Estado Português se vincula após a sua ratificação. Assim, e em face da versada inconstitucionalidade material do art. 490º do C.S.C., que aqui se declara para todos os efeitos legais, temos que concluir que a operação de oferta pública de aquisição apresentada e anunciada pela requerida J... está ferida de ilegalidade (...)'. Assim, decidiu: 'Declarar a inconstitucionalidade material do art. 490º do Código das Sociedades Comerciais', recusando, pois, a respectiva aplicação e concedendo a providência solicitada. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
2. E a verdade é que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do presente recurso. Como já teve ocasião de afirmar por diversas vezes (cfr. os acórdãos nºs 151/85,
400/97 e 664/97, publicados no Diário da República, II Série, de 31 de Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1997 e 18 de Março de 1998, respectivamente), não cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões proferidas no âmbito das providências cautelares destinado à apreciação da constitucionalidade de normas em que, simultaneamente, se fundamentam, quer a providência requerida, quer a acção correspondente, dada a natureza provisória do julgamento ali efectuado. Como se escreveu no citado acórdão nº 151/85, nestes casos, 'não terá o juiz da causa, para decidir sobre a concessão ou não d[a] (...) providência, de esclarecer exaustiva e definitivamente essa questão de constitucionalidade, mas apenas de apreciá-la de modo perfunctório e interino. Concretamente: o que ao juiz caberá formular (nesse momento ou nessa fase processual) é tão-só um juízo sobre a probabilidade séria da ocorrência de inconstitucionalidade, de harmonia com a qual decretará ou não a pretendida' providência.
'Crê-se, de resto, que isto se poderá generalizar, afirmando que nos procedimentos cautelares não cabe senão este tipo de decisão’provisória’ relativamente à questão de constitucionalidade de normas de que substantivamente dependa a resolução da questão a decidir no processo principal e, portanto, a concessão da providência (outro poderá ser o caso, evidentemente, se a inconstitucionalidade respeitar a aspectos diferentes desse, v. g., à tramitação do procedimento em causa)'.
'Visando os procedimentos cautelares uma solução provisória, é no processo principal que hão-de ser dirimidas as questões substantivas, aí decidindo-se em definitivo a matéria da (in)constitucionalidade, pelo que não há que conhecer' do recurso (cit. acórdão nº 664/97). A circunstância de, aqui, se tratar de um recurso interposto ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 e não da al. b) do mesmo nº 1 em nada altera estas considerações. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro. Assim, nos termos e pelos fundamentos constantes dos Acórdãos deste Tribunal nºs
151/85, 400/97 e 664/97, não se conhece do presente recurso.'
2. Para justificar que o objecto do recurso deveria ser julgado, o Ministério Público, citando os acórdãos nºs 92/87 e 466/95, começou por relembrar que a jurisprudência do Tribunal Constitucional se encontra dividida quanto à questão
'de saber se deverá constituir pressuposto dos recursos de fiscalização concreta a exigência de que seja definitiva a decisão recorrida – de modo a denegar a admissibilidade de recurso perante decisões meramente provisórias'. Em seu entender, deve ser revista a jurisprudência em que se baseou a decisão reclamada. Em síntese, desde logo, porque não tem cabimento distinguir, para o efeito em causa, decisões sobre matéria adjectiva '(admitindo, quanto a elas, a possível interposição de recursos de constitucionalidade)' e decisões de mérito,
'concedendo ou denegando a providência requerida, com o argumento de que nela se não contém regulação definitiva do litígio', até porque aquelas são instrumentais relativamente a estas. Além disso, e tal como se afirma no citado acórdão nº 466/95, porque as medidas decretadas no âmbito de procedimentos cautelares podem ter efeitos irremovíveis na esfera jurídica das partes, nomeadamente afectando direitos fundamentais seus, de forma a que a decisão a proferir na acção principal os não possa fazer desaparecer, não se justificando que o Tribunal Constitucional não possa fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade que afecte a norma que as permitiu. Finalmente, porque desde a revisão constitucional de 1997 que a justiça cautelar, enquanto meio de garantir o acesso ao direito e aos tribunais em prazo razoável, tem tutela constitucional (nº 5 do artigo 20º da Constituição). Ora seria incompatível com esta protecção 'a orientação, fundada em acórdão tirado em 1985, que ‘desvaloriza’ tais decisões, privando, em absoluto, do controlo da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional as decisões judiciais que concedam ou rejeitem as providências requeridas'.
3. Cabe começar por reconhecer que existe efectivamente divergência na jurisprudência constitucional quanto à questão da recorribilidade de que aqui se trata; considera-se, todavia, que é de manter a que é seguida na decisão reclamada, como se passa a justificar. Assim, e em primeiro lugar, porque a razão que levou à decisão reclamada de não conhecimento do recurso, que se baseou no acórdão nº 151/85, não foi, nem a de que havia que distinguir, para o efeito de admissibilidade do recurso de fiscalização da constitucionalidade, entre decisões adjectivas e decisões de mérito, nem a de que era o carácter definitivo ou provisório da decisão que concedia (ou não) a providência solicitada que relevava. Em segundo lugar, porque a revisão constitucional operada em 1997 – anterior à prolação do acórdão nº 664/97 – não obriga de forma alguma a resolver de forma diferente a questão de admissibilidade do recurso que aqui se coloca.
4. Com efeito, quando a decisão reclamada, fazendo sua a justificação apresentada no acórdão nº 151/85, julgou não ser admissível o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, não se baseou na circunstância de se pretender a apreciação da constitucionalidade de uma norma claramente substantiva, cuja aplicação era determinante para o juízo de mérito proferido no âmbito da providência requerida; assentou, sim, na verificação de que dessa mesma norma dependia o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito da providência, quer no domínio da acção correspondente. A referência a normas de tramitação dos procedimentos cautelares que aparece no acórdão nº 151/85 é feita, apenas, a título de exemplo. O critério distintivo ali definido assenta, não na natureza adjectiva ou substantiva da norma em causa, mas na circunstância de estar ou não em causa a sua aplicação, simultaneamente, na acção principal e na providência cautelar, o que não é equivalente. Assim, por exemplo, pode ser questionada a constitucionalidade de uma norma que defina os requisitos substanciais de concessão da providência cuja aplicação não tenha cabimento da acção principal. Ora a circunstância de a mesma norma ser aplicável em ambos os casos é que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar, atento o valor meramente provisório, não da decisão de mérito nela proferida, como aponta o reclamante, mas do juízo de constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a providência cautelar.
5. Na verdade, as duas razões são indissociáveis. Como claramente se afirma no acórdão nº 151/85, seria a natureza provisória do juízo de constitucionalidade efectuado ao julgar a providência cautelar que, fundamentalmente, justifica a inadmissibilidade do recurso. Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa hipóteses destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento, eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste.
6. É incontestável a afirmação de que as medidas cautelares podem afectar de forma irreversível a situação das partes. Essa observação – que, aliás, prova demais, pois levaria a que o recurso de constitucionalidade, para além de ser admissível, tivesse sempre efeito suspensivo –, todavia, não conduz à conclusão sustentada pelo reclamante. Desde logo, e sendo exacto que esse efeito só é relevante se a providência vier a caducar ou a ser julgada injustificada, a lei prevê a hipótese de o requerente ter de indemnizar o requerido se lhe causou danos culposamente (nº 1 do artigo
390º Código de Processo Civil). Esta obrigação, associada à eventual necessidade de prestação de caução, são os meios através dos quais se tenta proteger a parte prejudicada. Para além disso, a vantagem eventualmente conseguida não prevaleceria sobre os inconvenientes atrás apontados.
7. Finalmente, não se vê em que medida é que o acrescentamento do nº 5 do artigo
20º da Constituição pela revisão constitucional de 1997 altera a conclusão de que o recurso não é admissível. Na verdade, a consagração constitucional da necessidade de a lei prever 'procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos' não obriga a que se considerem recorríveis para o Tribunal Constitucional todas as decisões proferidas nesses procedimentos.
Assim, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso. Lisboa, 25 de Outubro de 2000- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa