Imprimir acórdão
Procº n.º 459/99
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – L. S. foi detectado por uma Brigada Fiscal da G.N.R. conduzindo uma viatura ligeira de mercadorias, a gasóleo, da qual foi considerado proprietário, com a matrícula ......; feita a análise química ao combustível, constatou-se que o gasóleo apresentava uma 'cor rosa', de gasóleo colorido e marcado, tendo sido acusado da prática da infracção previsto no n.º 2 do artigo 28º, do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro, com apreensão da viatura.
O arguido veio requerer o pagamento voluntário da coima, pagamento que foi autorizado pela entidade autuante, que declarou perdida a viatura para a Fazenda Nacional, nos termos do n.º 7 do artigo 28º, do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio.
2. - L. S. veio deduzir impugnação judicial daquela decisão, considerando face às circunstâncias do caso, que a perda da viatura é uma decisão desproporcionada e injusta.
A autoridade autuante manteve a decisão e remeteu o processo para o Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa. Neste Tribunal veio a verificar-se que o veículo em causa era propriedade de uma sociedade financeira e o arguido um mero locador, pelo que se determinou o envio do processo á autoridade recorrida para proferir nova decisão em que se tivesse em consideração a situação atrás referida.
A entidade autuante veio a manter a decisão proferida por ter apurado que a viatura era, de facto propriedade do arguido.
Devolvido o processo ao Tribunal Fiscal Aduaneiro, veio a ser proferida uma decisão em que se recusou a aplicação do n.º 7 do artigo
28º, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do n.º4 do artigo
30º da Constituição.
A decisão é do teor seguinte:
'O n.º 7 do artº 28 do DL 123/94 ao estabelecer a perda dos veículos que forem encontrados a utilizar gasóleo marcado e colorido sem para tal estarem legalmente habilitados (salvo se pertencerem a pessoa a quem não possa ser atribuída a responsabilidade pelo cometimento da infracção) acaba por estabelecer uma sanção automática. Ora, como tem sido jurisprudência do Tribunal Constitucional, o art.º 30º, n.º4, da Constituição da República estabelece a proibição do carácter automático das sanções ou dos efeitos das mesmas. Assim, haverá que recusar a aplicação com carácter automático do normativo em causa. Importa agora analisar se, em concreto, se verificam os pressupostos que possam justificar a perda de tal veículo. E a resposta é claramente negativa porquanto considerando o condicionalismo concreto em que foi cometida a infracção e o valor pecuniário do imposto em causa surge como manifestamente desproporcionado que a defesa da legalidade tributária posta em causa se faça pela ofensa ao direito de propriedade de um bem no valor de 800.000$00'.
É desta decisão que o Ministério Público junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro interpôs o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciação da norma do n.º7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro.
3. – O Procurador-Geral adjunto em exercício no Tribunal Constitucional apresentou as pertinentes alegações, que concluiu pela forma seguinte:
'1. O n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a perda do veículo nele prevista não pode ser nunca um efeito automático da coima, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada á gravidade da contraordenação e da culpa do agente;
2. Deverá revogar-se a decisão recorrida, para que, sendo reformada, aplique a norma sub iudicio com a interpretação indicada.'
Também, o arguido, L. S. veio apresentar as suas alegações em que defende a manutenção da decisão recorrida.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
4. – A questão da inconstitucionalidade da norma do n.º
7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro já foi enfrentada e resolvida pelo Tribunal Constitucional.
O Acórdão n.º 327/99, de 26 de Maio de 1999 (in 'Diário da República', II Série, de 18/7/99) apreciou a questão da inconstitucionalidade daquela norma que, na decisão ali recorrida, viu a sua aplicação recusada 'na medida em que estabelece o carácter automático e sem qualquer margem de apreciação da respectiva proporcionalidade da perda do veículo utilizado'.
Também na decisão que está em recurso nos presentes autos, a recusa de aplicação da mesma norma assentou no entendimento de que ela estabelecia uma sanção automática, em contradição com o estabelecido no artigo
30º, n.º4, da Constituição e no facto de a sanção do perdimento do veículo ser manifestamente desproporcionada face às circunstâncias do caso e ao valor do imposto em causa.
Assim, entende-se que os fundamentos alinhados no Acórdão n.º 327/99, são transponíveis para o caso aqui em apreciação, pelo que se seguirá de perto a fundamentação daquele acórdão.
5. – O Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva do Conselho n.º 92/81/CEE, de 19 de Outubro, e o artigo 2º da Directiva do Conselho n.º 92/108/CEE, de 14 de Dezembro. Este diploma foi sucessivamente alterado pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, pela Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro e pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro.
O diploma determina que as infracções às suas disposições estão sujeitas ao Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras
(Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro).
De acordo com o n.º 2 do artigo 28º do Decreto-lei n.º
123/94, na redacção da Lei n.º 52-C/96, é estabelecida a coima de 200.000$00 a
100.000.000$00 para 'a utilização de gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados, por veículos que não estejam legalmente habilitados para tal consumo'.
Pelo seu lado, o n.º7 do artigo 28º do mesmo diploma estabelece que 'os veículos referidos no n.º2 serão apreendidos e declarados perdidos a favor da Fazenda Nacional, salvo se pertencerem a pessoa a quem não possa ser atribuída responsabilidade no cometimento da infracção'.
Como se referiu, foi esta norma que foi desaplicada na decisão recorrida.
O fundamento dessa desaplicação foi o ter-se entendido que a norma em causa estabelecia uma sanção automática.
Ora, se efectivamente a norma questionada previsse a perda do veículo como efeito automático da coima aplicada pela contraordenação prevista no n.º2 do artigo 28º seria inconstitucional, uma vez que violaria frontalmente o artigo 30º, n.º4 da Constituição; e se a perda do veículo tivesse sido decretada independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente, haveria violação do princípio da necessidade e da proporcionalidade das sanções, em contradição com o .º2 do artigo 18º da Constituição.
De facto, o artigo 30º, n.º4, da Constituição estabelece que 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'.
Uma extensa jurisprudência do Tribunal Constitucional vem afirmando que a referida norma proíbe que tal perda de direitos possa ocorrer de forma automática, isto é, por mero efeito da lei e sem que seja precedida de decisão judicial que pondere as circunstâncias do caso (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 442/93 e 748/93, publicados no Diário da República, IIª Série, de 19 de Janeiro de 1994 e Iª Série – A, de 23 de Dezembro de 1993).
Este entendimento não só é válido para os crimes mas também para outros domínios sancionatórios, designadamente, as contraordenações
(cf., neste sentido, o Acórdão n.º 282/86, in 'Diário da República', Iª Série, de 11 de Novembro de 1986).
Assim, a aplicação da coima previsto no n.º2 do artigo
28º do diploma em apreço, não pode ter como efeito automático a perda do veículo, nem esta perda pode ser decretada sem ponderação da gravidade da infracção e da responsabilidade do agente. Neste sentido, escreveu-se no Acórdão n.º 327/99 (aqui seguido de perto): 'É que, do artigo 18º, n.º2, da Constituição e do próprio princípio da proporcionalidade, inerente ao Estado de Direito, decorre o princípio da necessidade das sanções: estas (no caso das contraordenações, as coimas e as respectivas medidas acessórias) só devem ser aplicadas quando outros meios menos onerosos de política social se mostrem insuficientes ou inadequados para organizar a protecção dos respectivos bens jurídicos. E mais: as coimas impostas pela prática de contraordenações devem ser proporcionadas à gravidade da contraordenação e, bem assim, à intensidade da culpa e à situação económica do agente. Do mesmo modo, as apreensões de objectos, visando o seu perdimento a favor do Estado, não devem decretar-se, se isso for desproporcionado à gravidade da contraordenação e à culpa do agente.'
A norma do artigo 28º, n.º7, do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, não estabelece a perda do veículo como efeito automático da condenação pela prática da contraordenação, nem de tal norma decorre que tal decretamento se faça sem ponderação da gravidade da infracção e da responsabilidade do agente.
Com efeito, tal norma não pode deixar de ter em atenção o que se estabelece na lei-quadro das contraordenações, não só porque é essa a qualificação da infracção, mas também porque o próprio Decreto-Lei n.º 123/94 manda aplicar às respectivas infracções nele previstas o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras que, pelo seu lado, manda aplicar subsidiariamente as disposições da lei-quadro das contraordenações, constante do Decreto-Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro (na redacção republicada em 14 de Setembro de 1995).
Ora, de acordo com o preceituado no artigo 21º, n.º1, alínea a), deste diploma 'A lei pode, simultaneamente com a coima, determinar as seguintes sanções acessórias, em função da gravidade da infracção e da culpa do agente:
a) Perda de objectos pertencentes ao agente;
......................................................'.
Por outro lado, no artigo 45º, n.º1, alínea b) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
376-A/89, de 25 de Outubro), estabelece-se que a perda dos meios utilizados na prática de certos crimes se não decretará, se o tribunal a considerar 'um efeito desproporcionado face à gravidade da infracção e, nomeadamente, ao valor das mercadorias objecto da mesma'.
Neste quadro legal em que a norma se insere, mesmo num caso em que se procedeu ao pagamento voluntário da coima, não pode deixar de se entender que o decretamento da perda do veículo com que se cometeu a contraordenação, enquanto sanção acessória da coima, tem de ser particularmente ponderado em função da gravidade da contraordenação e da culpa do agente.
Mas, com este entendimento, que corresponde a uma interpretação razoável da norma, esta não é inconstitucional, pelo que tratando-se de uma interpretação que a norma em causa consente, deve ela ser preferida pelo intérprete.
Nestes termos, tendo a decisão recorrida aplicado a norma sub iudicio com uma interpretação incompatível com a Constituição, de acordo com o preceituado no n.º3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional, impõe-se que a decisão recorrida seja reformulada por forma a que se aplique o artigo 28º, n.º7, do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, com a interpretação conforme à Constituição que acima fica referida. III – DECISÃO:
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. interpretar o nº 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, no sentido de que a perda do veículo nele prevista (ou seja, do veículo com que foi cometida a contraordenação) não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente; b. conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença para que seja reformada em termos de aplicar o n.º7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, com a interpretação que se indicou na alínea a). Lisboa, 10 De Fevereiro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito (vencida, pelos fundamentos constantes da declaração de voto da Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, aposta ao acórdão nº
327/99). Artur Maurício (vencido, nos termos dos fundamentos do voto da Exmª Cons. Maria Helena Brito). José Manuel Cardoso da Costa