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Proc. nº 387/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em processo que correu termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi submetido a julgamento o arguido M. S., tendo sido condenado pela prática de um crime de condução sob a influência do álcool, previsto e punível pelos artigos 292º e 69º, alínea a), do Código Penal, na pena de quatro meses de prisão e dez meses de proibição de conduzir veículos motorizados.
O arguido interpôs recurso da sentença, tendo apresentado, entre outras, as seguintes conclusões na motivação:
'1ª O crime de condução sob a influência do álcool, foi praticado em 04.07.1998 e, nos termos do art. 292º, do C. Penal, a pena aplicável não é superior a um ano de prisão.
2ª Assim, nos termos do art. 7º, al. d), da Lei 29/99, de 12 de Maio, deverá se declarar o procedimento criminal extinto, por aplicação da referida Lei.
3ª Não se poderá afastar a aplicação da citada Lei, por aplicação do seu art.
2º, nº 1, al. c), este apenas se aplica a infractores do Cód. da Estrada, seu Regulamento, Legislação Complementar e demais Legislação Rodoviária, ou seja, aplica-se a contra-ordenações, pois o que está em causa, nos autos, é um crime e este só vem regulado no Cód. Penal, nada tem a ver com a Legislação referida.
[...]'
2. O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão em que negou provimento a tal recurso, confirmando a decisão recorrida (acórdão de 5 de Janeiro de 2000, a fls. 7 e seguintes dos presentes autos).
Quanto à questão da eventual aplicação ao caso da Lei nº 29/99, de
12 de Maio, disse o Tribunal da Relação do Porto:
'[...] o legislador, no Artº 2º nº 1 c) do referido diploma [a Lei nº 29/99, de
12 de Maio] veio expressamente estabelecer que não beneficiam do perdão e da amnistia «os infractores ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena» [...]. Isto é, desde que a infracção tenha sido praticada sob a influência do álcool, não pode haver amnistia ou perdão decretado em tal Lei, para os infractores das disposições estradais. E entre as normas estradais, contam-se também as do Código Penal revisto em 1995
(Lei 48/95 de 15 de Março), o qual inclui várias disposições de natureza rodoviária e entre os quais consta no Capítulo IV «Dos crimes contra a segurança das comunicações», do título IV – Dos crimes contra a vida em sociedade – a condução de veículo em estado de embriaguez – Artº 292º CP. Ora assim sendo poderemos afirmar que o actual Código Penal é complementar do Código da Estrada na medida em que contém legislação de natureza rodoviária. Esta parece ser a interpretação mais correcta a fazer do referido diploma legal, isto não obstante se reconhecer que as leis de amnistia devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos.
[...] Ora da análise daquele diploma compreende-se que tenha havido por parte do legislador a preocupação em não amnistiar as infracções praticadas sob o efeito do álcool, já que os acidentes de viação representam um verdadeiro flagelo da
época actual que ceifa centenas de pessoas e incapacita outras tantas anualmente. As estatísticas – e elas nesta matéria não enganam – aumentam de dia para dia, fornecendo números alarmantes. Daí que o legislador, consciente da importância nefasta que a condução sob o efeito do álcool tem nesses acidentes, não tenha ficado indiferente e, por essa razão, tenha excluído da aludida lei, os crimes praticados sob o efeito do
álcool. Aliás não faria qualquer sentido que o legislador excluísse da amnistia a contra-ordenação relativa à condução sob o efeito do álcool prevista no Artº 81º do Código da Estrada (compreendida entre 0,5 g/l e 1,19 g/l de álcool no sangue), e quisesse amnistiar o tipo legal do Artº 292º CP, que prevê a condução de veículo com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l.
É evidente que tal solução seria ilógica e aberrante para o intérprete, sem a violação do nº 3 do Artº 9º do CC. Daí que se conclua que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez não esteja abrangido pela amnistia decretada pela Lei 29/99 de 12 de Maio e, como tal não se mostra extinto o respectivo procedimento criminal contra o arguido quanto ao referido crime.
[...]'
3. M. S. veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido:
'[...] não se conformando com o douto Acórdão de fls..., que negou provimento ao recurso interposto, vem interpôr RECURSO para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 280º, nº 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa. No douto Acórdão de fls... não foi aplicada, ao Recorrente, a Lei 29/99, de 12 de Maio, tendo em conta que a sua aplicação seria ilegal, violando o art. 9º, nº
3 do C. Civil. O facto de tal Lei não ter sido aplicada ao Recorrente, viola os princípios constitucionais estabelecidos no art. 13º, nº 1, de que todos os cidadãos têm dignidade social e são iguais perante a Lei. Se, no caso concreto, a Lei 29/99, de 12 de Maio estipula, no seu art. 7º, alínea d), que os crimes cuja pena aplicável não seja superior a um ano ou multa, com exclusão dos cometidos através da comunicação social e enquadrando-se o crime p. p. no art. 292º do C. Penal, tal Lei 29/99 terá de ser aplicada neste caso.'
O relator, no Tribunal da Relação do Porto, ordenou a notificação do recorrente para indicar a alínea do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o recurso era interposto (despacho de fls. 21), tendo o recorrente esclarecido que o recurso se fundamentava na alínea a) daquele preceito.
O recurso não foi admitido, nos seguintes termos (despacho de fls.
26 e 27 destes autos):
'O arguido M. S., veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão proferido a fls. 110 destes autos. Dispõe o Artº 75º nº 1 da Lei 28/82, de 15/11 que:
«O prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de dez dias e interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção». Ora o acórdão em causa foi notificado ao recorrente em 10 de Janeiro (cota de fls. 122), pelo que o prazo para a interposição do recurso terminava em 20 de Janeiro. Significa isto que, tendo o recurso dado entrada em 24 de Janeiro, é manifesta a sua intempestividade. Por outro lado porque o referido recurso era omisso quanto à indicação da alínea do nº 1 do Artº 70º do aludido diploma legal, ao abrigo da qual era interposto, foi o recorrente convidado a suprir essa falta ao abrigo do Artº 75º A nº 5 da referida lei. Em resposta a esse convite veio o recorrente, a fls. 126, informar que «o Recurso para o Tribunal Constitucional é interposto, ao abrigo do artº 70º, nº 1 al. a)...». Ora estabelece-se nessa norma que:
«1– Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade;».
E o que desde já se dirá é que o acórdão proferido no âmbito do recurso em causa, não formulou qualquer juízo relativo à inconstitucionalidade de quaisquer normas. Não conseguimos pois vislumbrar como é que foi possível ao recorrente ver preenchido aquele requisito no referido acórdão. Por outro lado refira-se ainda que o recorrente também não suscitou na motivação do seu recurso a questão de inconstitucionalidade de quaisquer normas. Em suma nunca tal questão foi levantada quer pelo recorrente quer pelo Tribunal. Assim sendo não se mostra igualmente preenchido nenhuma das condições aludidas no Artº 70º nº 1 da Lei 28/82 que pudesse permitir a admissibilidade do recurso, se este tivesse sido tempestivo, que o não foi, como vimos anteriormente. Termos em que, sem outras considerações, ao abrigo do disposto no Artº 76º nº 2 da Lei 28/82, de 15 de Novembro, não se admite o recurso interposto.'
4. M. S. reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, argumentando assim:
'[...] a data referida na cota de fls. 222 – 10 de Janeiro de 2000 –, refere-se
à expedição, pelo Tribunal da Relação do Porto, da carta para notificação do Acórdão, não corresponde à data em que foi recebida a notificação. As notificações postais presumem-se feitas no terceiro dia posterior ao do registo
– art. 254º do C.P.C. De acordo com o previsto no artigo referido, a notificação postal presume-se que foi feita até ao dia 13 de Janeiro de 2000. Só a partir desta data é que se faz a contagem do prazo para interpôr Recurso. Como tal, o prazo de interposição de Recurso não terminava a 20 de Janeiro, mas sim a 23 de Janeiro de 2000 e, sendo o dia 23 de Janeiro de 2000 – um Domingo –, a prática do acto terá de ser feita no 1º dia útil, ou seja, na 2ª feira – dia
24 de Janeiro de 2000, como o foi. Pelo que o Recurso interposto não é intempestivo.'
5. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. O Tribunal da Relação do Porto não admitiu o recurso de constitucionalidade por duas razões: por considerar que a interposição do recurso não foi tempestiva; por entender que no acórdão de que se pretende recorrer não foi recusada a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui pressuposto da sua admissibilidade a recusa de aplicação, na decisão recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma que é submetida à apreciação deste Tribunal.
Ora, no caso dos autos, e antes de mais, o recorrente não chegou a identificar, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, qual a norma da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, a que o Tribunal da Relação do Porto teria recusado aplicação com fundamento em inconstitucionalidade e que agora se pretende submeter à apreciação deste Tribunal.
De qualquer modo, ainda que o recorrente tenha pretendido que o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade seja a norma do artigo 7º, alínea d), da Lei nº 29/99, de 12 de Maio – a única norma mencionada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional –, certo é que, como aliás se afirma no despacho reclamado, não foi recusada a aplicação dessa norma, nem de qualquer outra norma contida na Lei nº 29/99, de 12 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Na verdade, o Tribunal da Relação do Porto considerou que o crime por que o arguido no presente processo tinha sido condenado – o crime de condução sob a influência do álcool, previsto e punível pelos artigos 292º e
69º, alínea a), do Código Penal – se encontra excluído da aplicação da lei sobre perdão genérico e amnistia de pequenas infracções (Lei nº 29/99, de 12 de Maio), por força do disposto no artigo 2º, nº 1, alínea c), da referida lei.
O Tribunal da Relação do Porto proferiu a sua decisão fundamentando-se numa norma de direito ordinário – no caso, a norma do artigo
2º, nº 1, alínea c), da mencionada Lei nº 29/99. A interpretação desta norma efectuada pelo acórdão recorrido, fazendo apelo às regras gerais sobre interpretação contidas no Código Civil, não pode, no presente processo, ser sindicada pelo Tribunal Constitucional nem é de resto objecto do recurso interposto pelo ora reclamante.
Não houve no acórdão do Tribunal da Relação do Porto qualquer recusa de aplicação de normas de direito infraconstitucional com fundamento em inconstitucionalidade. Não está portanto preenchido o pressuposto processual típico do recurso interposto – a recusa de aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade.
7. Atingida esta conclusão, torna-se desnecessário apreciar o outro fundamento invocado pelo Tribunal da Relação do Porto para não admitir o recurso de constitucionalidade interposto pelo ora reclamante – a intempestividade na interposição do recurso.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Julho de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida