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Proc. nº 790/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal de Círculo de Portimão, responderam sob acusação do Ministério Público dois arguidos, um dos quais, Pl. R., foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203º e
204º, nº 2, alínea e), do Código Penal, na pena de três anos de prisão, e de um crime previsto e punível pelo artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quarenta e cinco dias de prisão. Operado o cúmulo jurídico destas penas, o referido arguido foi condenado na pena única de três anos e vinte dias de prisão
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, entre outros fundamentos, nulidade do julgamento, por violação do artigo 343º, nº 4, do Código de Processo Penal, e insuficiência da matéria de facto provada, o que integraria o vício previsto no artigo 410º, nº
2, alínea a), do Código de Processo Penal.
2. Por acórdão de 27 de Maio de 1999 (fls. 16 e seguintes dos presentes autos), o Supremo Tribunal de Justiça, atendendo à data de interposição do recurso (11 de Fevereiro de 1999), considerou aplicável ao caso o Código de Processo Penal, na redacção que resulta da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto .
Assim, por entender que o recuso interposto não visava exclusivamente o reexame da matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar dele conhecimento, com os seguintes fundamentos:
'[...] nos termos do actual art. 432º, al. d), do C.P.P., recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito. Portanto, se o recorrente quiser abordar matéria de facto, nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P., terá de interpor recurso para o Tribunal da Relação, como é regra geral, nos termos do art. 427º do C.P.P. – cfr. o art. 428º, nº 1 do mesmo diploma – sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão. Sucede que in casu, o recorrente além de colocar questões de direito, vem suscitar questões relacionadas com matéria de facto, que este Supremo Tribunal não pode sindicar. Assim, nas conclusões 3ª, 8ª, 9ª e 10ª, o recorrente vem questionar a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova produzida, e nas conclusões 7ª e 11ª aborda a insuficiência para a decisão da matéria facto provada, o que constitui o vício da decisão referido no art. 410º, nº 2, al. a), do C.P.P. A este último propósito, o recorrente pretende se ordene a repetição do julgamento – v. a conclusão 13ª – pretendendo, assim, que este Supremo Tribunal decrete o reenvio do processo, o que hoje lhe está vedado neste caso de recurso de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo. Ora, como estamos perante um destes casos, estava vedada a abordagem no recurso das questões de facto que referimos.'
Ao acórdão foram apostas duas declarações de voto, do seguinte teor: 'com a declaração de que a apreciação do recurso deverá ser no Tribunal da Relação de
Évora'.
3. A representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça requereu a aclaração do acórdão 'em ordem ao esclarecimento das suscitadas dúvidas relativamente ao Tribunal da Relação para o qual, por competente para conhecer do presente recurso, devem os presentes autos ser remetidos' (requerimento de fls. 21 a 23 destes autos).
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 7 de Outubro de 1999 (a fls. 19 e 19 v.), considerou que o requerimento apresentado pelo Ministério Público consubstanciava, não um pedido de aclaração, mas uma arguição de nulidade por omissão de pronúncia. Decidiu indeferir o requerido, fundamentando assim a decisão:
'Sucede que não ocorre tal nulidade, pois o acórdão não disse nem tinha que dizer nada sobre a dita apreciação do recurso.
[...] como o presente recurso foi indevidamente interposto para este Supremo Tribunal, é óbvio que este Tribunal dele não pode conhecer. E não há que remetê-lo para a Relação competente, pois, entretanto, transitou em julgado a decisão da 1ª instância, por dela não ter sido interposto, em tempo, recurso para a dita Relação. E não há lei que imponha tal remessa. Por outro lado, as declarações de voto apostas pelos Conselheiros Adjuntos não têm a virtualidade de alterar ou acrescentar algo ao decidido, pois não constam da parte decisória do acórdão. [...]'.
4. A representante do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 1999, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 427º, 428º, nº 1, 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, 'quando interpretados no sentido de que a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão final proferido pelo Tribunal colectivo, no qual se invoque a existência de vício a que alude o art. 410º, nº 2, do C.P.P., implica a irremediável preclusão de recurso para o Tribunal da Relação, por entretanto ter transitado o acórdão recorrido', por violação das garantias de defesa e do acesso ao direito (artigos
32º, nº 1, e 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa).
O recurso não foi admitido, nos seguintes termos (despacho de fls.
20 e 20 v. destes autos):
'Como se vê do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional [...], apresentado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, esta Exmª Magistrada só neste requerimento vem suscitar a inconstitucionalidade das normas que refere, por se tratar de uma decisão surpresa, segundo diz.
Porém, não é assim, pois com o pedido de aclaração do acórdão de
27-5-1999 [...], que, aliás, não tem aquela natureza, mas sim a de arguição de omissão de pronúncia, como se disse no acórdão de 7-10-1999, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta podia ter suscitado a referida inconstitucionalidade, mas não o fez.
Portanto, atento o disposto nos artºs 75º-A, nº 2 e 76º, nº 2 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não admito o recurso ora interposto [...]'.
5. A representante do Ministério Público reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, formulando as seguintes conclusões:
'a) A tese por que optou o douto acórdão recorrido constitui, pelo seu conteúdo insólito e imprevisível, uma verdadeira decisão-supresa, que o Ministério Público, quando da vista a que se reporta o art. 416º do C.P.P., não podia previsível e razoavelmente antecipar. b) O requerimento de fls. 205 e ss. constitui, de forma expressa, clara e inequívoca, um pedido de aclaração, em ordem a tornar inteligível o exacto sentido e conteúdo do douto acórdão de 27 de Maio de 1999. c) A função processual de um requerimento de aclaração não é permitir ao Tribunal a quo a apreciação e decisão, em termos inovadores, de uma questão jurídico-constitucional, mas tão-só esclarecer ambiguidades ou ininteligibilidade do decidido. d) Não podendo o Ministério Público, quando da vista a que alude o art. 416º do C.P.P., colocar à apreciação do Tribunal a questão da constitucionalidade – por não lhe ser exigível a antecipação de tal solução dado a mesma ser objectivamente surpreendente – é-lhe lícito suscitá-la quando – removidas que se mostravam as dúvidas que o acórdão proferido legitimamente suscitara – da interposição de recurso de fiscalização concreta.'
O relator, no Supremo Tribunal de Justiça, sustentou assim o seu despacho de não admissão do recurso (fls. 10 a 11 v.):
'Quando o recurso de constitucionalidade se funda na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a regra é a de que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica deve ser suscitada no decurso do processo, ou seja, antes da última decisão, antes de estar esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Só em casos excepcionais e anómalos, nomeadamente quando o decidido constitua total surpresa, com o que o recorrente não poderia razoavelmente contar, pode admitir-se que a inconstitucionalidade seja suscitada em momento posterior inclusive no requerimento de interposição do recurso – v., entre outros os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 439/91, de 19-11-1991, in D.R., II Série (suplemento), de 24-4-1992, e nº 155/95, de 15-3-1995, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º Volume, 737. Ora, in casu, rigorosamente, não se pode dizer o que o acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-5-1999, é de «conteúdo insólito e imprevisível» ou que contém uma «solução objectivamente surpreendente», como se exprime a Exmª Magistrada reclamante, só porque na sequência da decisão de não conhecimento do recurso não ordenou a remessa dos autos para o Tribunal da Relação competente. De facto, era perfeitamente admissível e previsível para aquela Exmª Magistrada, aquando do seu visto preliminar, que a dita remessa não fosse determinada. Por outro lado, é bem claro o acórdão recorrido no sentido de que os autos não tinham que ser remetidos para a Relação competente, uma vez que aí se afirma que, num caso destes, não tendo sido interposto recurso para aquela Relação, transita em julgado a respectiva decisão. Ora, é evidente que, face a tal trânsito, não haveria que ordenar a referida remessa, que seria uma autêntica inutilidade. Portanto, o pedido de aclaração feito pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta carece totalmente de sentido, e, no fundo, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7-10-1999, tratou-se da arguição da nulidade de omissão de pronúncia sobre a Relação a quem caberia a apreciação do recurso e para a qual os autos deveriam ser remetidos. Logo, nesse pedido de aclaração ocorreu-se não se contar com o visto inicial do processo – o primeiro e único momento processual adequado à suscitação da questão da inconstitucionalidade das normas referidas no requerimento de interposição do recurso, até porque naquele a Exmª Magistrada reclamante vem criticar a não remessa dos autos para a Relação de Évora. Assim, era perfeitamente adequado ter sido deduzida, logo aí, a questão da inconstitucionalidade das ditas normas, o que permitiria a sua apreciação a este Supremo Tribunal, no acórdão que proferiu.'
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do deferimento da presente reclamação. II
7. O fundamento em que assentou a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de rejeição do recurso foi a não invocação da inconstitucionalidade durante o processo.
O sentido funcional que o Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo tem em vista dar oportunidade ao tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve, portanto, em princípio, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119).
8. No caso dos autos, deve qualificar-se como 'decisão-surpresa', de conteúdo imprevisível para as partes, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tendo havido erro do arguido-recorrente na identificação do tribunal para o qual o recurso fora interposto, tal recurso deve considerar-se precludido, pois o Supremo não pode dele conhecer nem deve determinar a remessa do processo para o tribunal que para o efeito seria competente – o Tribunal da Relação.
Ora, em primeiro lugar, não era exigível que o Ministério Público antecipasse tal solução e suscitasse a inconstitucionalidade da mesma solução, aquando do visto prévio a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal.
Em segundo lugar, e tendo em conta que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação com fundamento na sua nulidade não constituem, já, em regra, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade
(cfr., neste sentido, entre tantos outros, o acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss). Não pode por isso, e contrariamente ao que sustenta o Supremo Tribunal de Justiça no despacho aqui sob reclamação, fazer-se recair sobre a parte o ónus de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa quando formula um pedido de aclaração da decisão proferida.
Ou, dito de outro modo: no caso em apreciação, considerando que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça configura uma autêntica
'decisão-surpresa', o recorrente tanto poderia ter invocado a questão de inconstitucionalidade no pedido de aclaração como no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. De qualquer modo, encontrava-se já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Mas o recurso de constitucionalidade teria de ser admitido precisamente porque o recorrente não teve oportunidade processual para, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, suscitar a questão.
Neste sentido, há que reconhecer que, nas circunstâncias do processo, não era razoável exigir ao recorrente o ónus de considerar antecipadamente a interpretação normativa adoptada na decisão, atento o seu cariz imprevisível, anómalo ou insólito. E, por outro lado, face ao teor do acórdão que indeferiu o pedido de aclaração, tornou-se evidente que a questão não se podia reconduzir a uma nulidade por omissão de pronuncia, pelo que também não era exigível a suscitação da questão de constitucionalidade em requerimento que invocasse tal nulidade.
Não procede portanto a razão invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público no presente processo.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida