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Proc. nº 618/2000 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. António Manuel Gonçalves Bulcão, na qualidade de mandatário da Coligação Democrática Unitária (CDU), que integra o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista 'Os Verdes' (PEV), interpôs, em 20 de Outubro de 2000, recurso de contencioso eleitoral da deliberação tomada pela assembleia de apuramento geral relativa ao círculo eleitoral da Ilha das Flores nas eleições realizadas no passado dia 15 de Outubro de 2000 para a Assembleia Legislativa dos Açores.
O recurso, interposto ao abrigo do artigo 119º da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional dos Açores (Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto), incide sobre a deliberação da assembleia de apuramento geral que recuperou três votos que haviam sido considerados nulos pela assembleia de voto de Santa Cruz das Flores, secção de voto nº 1, pela assembleia de voto da Freguesia de Santa Cruz das Flores, secção de voto nº 2, e pela assembleia de voto da Freguesia de Fajã Grande.
O recurso foi interposto porque a assembleia de apuramento geral indeferiu a reclamação apresentada pelo recorrente, por extemporaneidade, já que o recorrente deveria ter reclamado da fixação genérica do critério.
Para fundamentar o recurso, a CDU aduziu os seguintes argumentos: a. a reclamação por si apresentada contra a revalidação dos votos nulos no círculo eleitoral da Ilha das Flores operada em sede de apuramento geral não foi extemporânea, uma vez que não era indispensável ter apresentado uma outra reclamação, em fase anterior, relativa ao critério geral definido pela assembleia logo no início dos trabalhos; b. com efeito, a irregularidade a impugnar resultou da aplicação prática do critério e não da sua definição, tanto mais que o critério teria sido fixado sob condição suspensiva – para, 'sendo caso disso, proceder à reapreciação e eventual recuperação de votos nulos'; c. aliás, aos candidatos e mandatários das listas apenas é permitido assistir aos trabalhos da assembleia, mas sem direito a voto, o que lhes retiraria legitimidade para contestar um critério; d. por outro lado, não teria sentido jurídico a tese de que a falta de reclamação sobre um acto preparatório – definição de um critério – sanasse as irregularidades praticadas posteriormente à luz desse critério; e. quanto à recuperação dos votos, ela teria sido ilegal, uma vez que apenas se pode considerar voto válido aquele em que o eleitor 'marca uma cruz no quadrado respectivo da lista em que vota' (artigo 97º, nº 4, do Decreto-Lei nº
267/80); f. assim, a possibilidade de reapreciar os votos considerados nulos, segundo um critério uniforme de que a assembleia de apuramento geral se prevaleceu, não constitui um poder discricionário, devendo antes cingir-se à definição legal de voto nulo (artigo 99º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/80); g. ora, no caso em apreço, teriam sido considerados válidos, contra o critério legal, votos em que foram apostas duas cruzes - uma no quadrado e outra sobre o símbolo do respectivo partido - ou em que, para além da cruz no quadrado, figura ainda um risco num outro quadrado; h. tomar como válidos estes votos significaria consagrar um critério inseguro, dar um poder discricionário aos membros das mesas eleitorais e propiciar uma operação morosa e delicada por parte deles, quando tal operação se exige o mais célere possível; i. para além disso, a aposição de uma segunda cruz ou de um traço pode ter interpretações diversas das que indicam uma intenção inequívoca de votar em determinado partido.
2. Notificados para responderem, querendo, no prazo de 24 horas, ao abrigo do disposto no artigo 120º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto, vieram pronunciar-se sobre o presente recurso o Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS/PP), o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Socialista (PS). Na sua resposta, o CDS apresentou, em resumo, os seguintes argumentos: a) o recurso interposto pela CDU tem como objecto o critério uniforme estabelecido pela assembleia de apuramento geral – ora, não tendo havido reclamação da fixação de tal critério, o recurso não seria admissível nos termos do n° 1 do artigo 119° do Decreto-Lei nº 267/80, de 8 de Agosto; b) no entanto, sempre se deveria negar provimento ao recurso porque a decisão em sentido favorável, apenas nestes votos e não nos demais, se revelaria violadora da uniformidade do critério exigida no n° 2 do artigo 111º do Decreto-Lei nº 267/80; c) mas, sem conceder relativamente ao primeiro argumento, o critério uniforme estabelecido pela assembleia de apuramento geral não seria ilegal, uma vez que nesses três votos foi aposta uma cruz, pelo que se encontra preenchida a exigência do n° 4 do artigo 97º do Decreto-Lei nº 267/80, não havendo contradição alguma com a jurisprudência do Tribunal Constitucional; d) assim, o critério estabelecido não contradiria o artigo 99º, nº 2, do referido Decreto-Lei, uma vez que não permite que seja considerado válido um voto em que tenha sido feita uma cruz em mais do que um quadrado a isso destinado ou em que haja dúvidas quando ao quadrado assinalado nem permite que seja considerado válido voto em que haja qualquer corte, desenho, rasura, ou onde tenha sido escrita qualquer palavra; e) também a cruz colocada sobre o símbolo do partido não poderia ser considerada um desenho (para além de não ser um corte, uma rasura ou uma palavra), uma vez que não pretende representar coisas, seres, ou ideias; f) por outro lado, o voto em que se assinala no boletim, para além da cruz, um pequeno e imperceptível risco, que não pretende ligar diagonalmente os dois cantos opostos de um quadrado, não se pode considerar nulo, já que é inequívoco que o pequeno e quase imperceptível risco foi o resultado de um mero deslize da caneta, não havendo, no entanto, qualquer dúvida quanto ao quadrado efectivamente assinalado; g) o pequeno risco também não corresponde a um desenho (nem a um corte, uma rasura ou uma palavra), pelo que não se enquadra na previsão da alínea c) do n° 2 do artigo 99º do Decreto-Lei nº 267/80; h) os eleitores não pretenderam anular ou identificar os seus votos, uma vez que a cruz é o sinal próprio para assinalar a lista em que se pretende votar, não sendo, pela sua natureza, possível determinar o seu autor.
Por seu turno, o Bloco de Esquerda (BE) pronunciou-se no sentido da nulidade dos votos em questão. O Partido Socialista (PS) ofereceu o merecimento dos autos.
O Partido Social Democrata (PPD/PSD) e a Convergência Democrática Açoreana (PM/PDA) não se pronunciaram.
II Fundamentos
3. Questão prévia à da validade ou da nulidade dos três votos precedentemente referidos é a de saber se a circunstância de o recorrente não ter impugnado o critério genericamente fixado pela assembleia de apuramento geral faz precludir a possibilidade de apresentar posterior reclamação de uma concreta aplicação desse critério e, em caso de indeferimento, interpor recurso contencioso. Trata-se, na verdade, de uma questão de verificação de um pressuposto do recurso e não de tempestividade do mesmo, uma vez que está em causa, alegadamente, um pressuposto processual, sem o qual o recorrente não poderia apresentar uma reclamação ou interpor um recurso dentro dos prazos conferidos para o efeito e ainda que nisso tenha um manifesto interesse.
Alega o recorrente que nem sequer poderia ter impugnado a fixação do critério, pois que aos candidatos e mandatários das listas apenas é permitido assistir aos trabalhos das assembleias sem direito de voto. Porém, o recorrente não tem razão. Independentemente da questão de saber se tal reclamação ou protesto seria suficiente e até adequada para abrir a via do recurso contencioso
(cf. Acórdãos n.ºs 3/90, D.R., II Série, de 24 de Abril de 1990; 863/93, D.R., II Série, de 31 de Março de 1994; e 864/93, D.R., II Série, de 31 de Março de
1994), a verdade é que o nº 3 do artigo 109º do Decreto-Lei nº 267/80 torna claro que candidatos e mandatários são titulares do direito de reclamação, protesto ou contraprotesto, mesmo assistindo sem voto aos trabalhos da assembleia de apuramento geral. Isto é, a lei dissocia o direito de voto do direito de impugnar as deliberações.
Por outro lado, o recorrente sustenta que não teria sentido sanar todas as irregularidades cometidas no futuro, com fundamento na inércia relativamente à aprovação de um critério, cujo efectivo alcance e consequências se não podem aferir num plano puramente abstracto.
Na resposta do CDS/PP, sustenta-se, pelo contrário, que o objecto do recurso não é a interpretação e consequente aplicação do critério, mas a ilegalidade do mesmo, acrescentando-se que a reclamação quanto a este aspecto não foi oportunamente apresentada. A CDU estaria, assim, sempre a impugnar a legalidade do critério com que os votos foram recuperados, já que o recurso não incidiria sobre o modo como o critério foi aplicado.
Relativamente a esta questão, entende o Tribunal que, embora o recorrente não questione meramente o modo como foi aplicado na prática um critério mas sim a legalidade do próprio critério usado na recuperação dos votos, esse facto não impede que seja questionável a irregularidade do acto que aplicou o critério, no caso de o mesmo critério ser ilegal. Consequentemente, a mera aprovação de um critério geral não dispensa as futuras deliberações concretas sobre a validade dos votos de se confrontarem directamente com o critério legal, mesmo que apliquem correctamente o critério geral definido, nem pode, por isso, sanar ex ante os eventuais vícios dessas deliberações, consistentes na aplicação, nos casos concretos, de um critério ilegal. Se assim não fosse, a aprovação prévia de um critério ilegal, sem oposição, poderia desvirtuar completamente uma eleição, com grave prejuízo do princípio democrático, nomeadamente porque vincularia os partidos que não tivessem protestado a aceitarem os actos contrários à lei posteriormente praticados, sem poderem impedir as suas consequências. Admitir-se-ia, em última análise, a criação de uma normação absolutamente ilegal que, se não fosse controlada, em si mesma, por uma reclamação, já não poderia ser controlada no acto em que, concretamente, se manifestasse, produzindo as suas consequências específicas.
Também não é verdade, como argumenta o CDS/PP, que a admissão do recurso com a eventual decisão sobre a invalidade dos votos violaria a uniformidade exigida no artigo 111º, nº 2, implicando uma parcialidade inadmissível 'já que deixaria de haver critério uniforme para haver um critério segundo a conveniência de uma coligação concorrente às eleições'.
Com efeito, não só a tal tese subjaz a ideia de que uma uniformidade ilegal há-de prevalecer sobre a legalidade, o que não corresponde ao sentido da lei, como implicaria também que sempre que a deliberação sobre um voto fosse sujeita a reclamação todos os outros votos fossem apreciados para garantia da uniformidade. Para além disto, é igualmente certo que o interesse processual - obtenção de uma vantagem ou eliminação de uma desvantagem, em consequência da iniciativa de interposição do recurso contencioso - só se pode concretizar em momento ulterior a propósito da validação ou invalidação dos votos e do efectivo apuramento dos resultados.
Por fim, o recorrente tem interesse em agir, uma vez que a consideração de que os três votos recuperados seriam nulos poderia permitir ao seu partido obter mais um mandato, como se comprova pelos resultados eleitorais constantes do respectivo edital.
Por estas razões, conclui-se que se verificou o pressuposto processual previsto no artigo 119º do Decreto-Lei n.º 267/80. Por outro lado, o recurso não é extemporâneo - foi interposto na sequência do indeferimento de uma reclamação, ela também tempestiva e dentro do prazo previsto para o efeito (cf. artigos 119º, nº 1 e 120º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/80).
4. Os votos inicialmente considerados nulos e depois recuperados pela assembleia de apuramento geral representam duas situações distintas. Num dos casos - o de dois votos - , os eleitores desenharam duas cruzes em cada boletim, constando uma do quadrado existente para o efeito e tendo a outra sido desenhada sobre o símbolo do respectivo partido. Nesta situação, a decisão de considerar válidos os votos baseia-se no entendimento de que há uma expressão de vontade inequívoca por parte do cidadão eleitor.
Porém, contra este entendimento ergue-se desde logo o sentido literal da norma constante do artigo 99º, nº 2, alínea c), do Decreto-Lei nº
267/80. A cruz é necessariamente um desenho, na medida em que, pelo menos, pode representar uma ideia, nomeadamente devido ao contexto em que se insere – por exemplo, ideia de rejeição ou de aceitação – ou devido à intencionalidade com que é feita. Uma cruz é um símbolo gráfico, que pode funcionar de modo objectivo ou objectivo-subjectivamente. Assim, em concreto, as cruzes adicionais assinaladas nos votos agora em apreciação não podem deixar de ser consideradas desenhos para os efeitos previstos no referido preceito, já que, pelo menos objectivamente, retiram ao boletim de voto a função exclusiva de manifestação do voto e da correspondente intencionalidade.
É em si questionável o verdadeiro sentido de uma cruz adicional aposta sobre um símbolo partidário. Neste domínio, todas as presunções são falíveis - o eleitor pode querer manifestar a sua preferência ou até a sua repulsa ou, de modo mais rebuscado, identificar o sentido do seu voto, sem excluir outras hipóteses lesivas do princípio democrático. Em suma, não se pode inferir de modo inequívoco qual é o significado do desenho de duas cruzes num boletim de voto ainda que elas se circunscrevam ao espaço global do mesmo partido.
De todo o modo, e decisivamente, há razões de segurança jurídica que tornam inadmissíveis situações deste tipo, mesmo que se aceite a inequívoca intencionalidade do voto [no sentido de uma protecção da segurança democrática, e sobre caso muito semelhante, cf. Acórdão nº 614/89, D.R., II Série, de 9 de Abril de 1990, em que o Tribunal Constitucional considerou que 'o boletim de voto, para além da cruz marcada no local elegido pelo cidadão votante, não pode conter qualquer outro sinal (corte, desenho ou rasura) que permita a eventual identificação posterior de quem o utilizou. Só assim se poderá garantir o mínimo de secretismo nas eleições. E foi neste sentido que o nosso legislador se orientou ao proibir – sob pena de nulidade de voto – que no respectivo boletim seja feito qualquer corte, desenho ou rasura ou quando nele se tenha escrito qualquer palavra, por um lado, e, por outro, ao preceituar que, sempre que o eleitor tenha deteriorado um boletim por inadvertência, se dirija à mesa para pedir outro boletim, devolvendo o primeiro que o presidente deve inutilizar, rubricando-o e conservando-o para os efeitos do nº 5 do artigo 82º (artigo 84º, nº 4, do Decreto-Lei nº 701-B/76). (...) O boletim de voto em causa demonstra, sem dúvida, a vontade do eleitor relativamente ao voto concretizado pela cruz marcada no quadrado correspondente ao CDS. (...) Porém, tal voto tem de considerar-se nulo, na medida em que o mesmo eleitor desenhou – também sem margem para quaisquer dúvidas – uma cruz entre as palavras «sigla» e «símbolo», incorrendo assim na consequência legal prevista na alínea c) do nº 2 do artigo
85º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro, ou seja, na consideração de tal voto como voto nulo. (...)']. Cabe, assim, a situação em análise na previsão do artigo 99º, nº 2, alínea c), não consubstanciando, pelo contrário, qualquer das hipóteses previstas no nº 3 daquele preceito.
Desta sorte, é forçoso concluir que não são válidos os votos que haviam sido considerados nulos pelas assembleias de voto de Santa Cruz das Flores, secção de voto nº 1, e da Freguesia de Fajã Grande e que foram posteriormente recuperados pela assembleia de apuramento geral relativa ao Círculo Eleitoral da Ilha das Flores.
5. O restante voto impugnado tem inscrito, para além da cruz no quadrado a ela destinado, um traço vertical dentro do quadrado de outro partido.
Também neste caso é forçoso identificar um desenho para além da cruz indicativa do sentido de voto. E, pelo facto de se tratar de um risco autónomo da cruz que assinala o quadrado, são igualmente admissíveis diversas interpretações, desde a hesitação em relação a outro partido, que anularia a intenção de voto no primeiro, passando pela manifestação de desagrado em relação a esse partido.
Por outro lado, e de modo decisivo, valem aqui razões de certeza e segurança jurídicas análogas às invocadas a propósito da situação anterior. Em todo o caso, nunca se estará perante aquele tipo de situações em que o Tribunal Constitucional tem admitido uma inequívoca intenção de voto, casos em que há uma continuidade entre a cruz inscrita e os traços que extravasem o quadrado (cf., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 319/85 e
320/85, ambos publicados em D.R., II Série, de 15 de Abril de 1986).
III Decisão
6. Ante o exposto, concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, decide-se: a. Anular a deliberação da assembleia de apuramento geral da eleição para a Assembleia Legislativa Regional dos Açores, que considerou válidos os três votos atribuídos ao Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) e julgar nulos tais votos. b. Determinar que a assembleia proceda a novo apuramento geral, tendo em atenção o decidido quanto à questão da nulidade dos votos. c. Determinar que, para esse efeito, seja remetida à assembleia uma fotocópia do presente Acórdão.
Lisboa, 24 de Outubro de 2000 Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa