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Processo nº 181/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. M... e mulher, AG... e mulher, J... e mulher, AT... e mulher e F... e mulher, todos com os sinais identificadores dos autos, vieram, ‘com base nas alíneas a, b, c, e i do n° 1 do artº 70° da LTC’, interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Dezembro de 1999, que negou 'provimento à Apelação’ por eles interposta,
‘mantendo-se na integra a sentença em recurso’, proferida num processo de expropriação por utilidade pública, em que é expropriante a Câmara Municipal de Almada, ora recorrida, na qual foi esta condenada ‘apagar a quantia de 10 127
840$00, a título de indemnização pela parcela expropriada’. No requerimento de interposição do recurso de constitucional idade dizem os recorrentes o que se segue:
‘Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a ilegalidade/inconstitucionalidade ou da recusa de aplicação ou da dimensão/sentido com que foi aplicada a seguinte norma:
- a interpretação concreta dada ao art° 23° do DL 438/91, de 9 de Novembro, segundo a qual não é de concluir pela existência de erro de julgamento, apesar de não se proceder à actualização do montante da indemnização. Assim, o TR Lx recusa-se a aplicar o princípio de que a indemnização é calculada com referência ao valor do bem no montante da declaração de utilidade pública/DUP. Ora, é nesse momento que é retirado o bem do património do expropriado e que surge o crédito indemnizatório. A Lei expropriativa reconhece que, por via da inflação, os atrasos do processo de expropriação afectam em termos relativos a indemnização do expropriado, e manda actualizá-la de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicada pelo INE, entre a data da referida DUP e a da decisão final do processo. A interpretação dada pelo TR Lx é desigual, desproporcional, parcial e injusta, destituída de consistência prática, na medida em que o direito à justa indemnização se traduz num direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e sem a actualização a indemnização deixa de ser contemporânea. (arts. 1° e 22°/1/ do DL 438/91, de 9 de Novembro). Se faltar a indemnização contemporânea/actualizada, não há expropriação, mas esbulho ou confisco, havendo um tratamento desigual dos diversos expropriados e entre os expropriados e os não expropriados. A indemnização deve estar sujeita ao princípio constitucional da paridade, equivalência e adequação de valor. A interpretação dada pelo TR Lx colide com as normas dos arts. 1º, 22°/2 e 23° do Cód. Exp., estando, assim, violados os princípios constitucionais e expropriativos da igualdade, da proporcionalidade, da paridade e da actualização do valor indemnizatório’. Posteriormente, a convite do Relator, neste Tribunal, vieram esclarecer que ‘o verdadeiro fundamento do recurso são ambas as alíneas a) e b) do n° 1 do artº
70° da LTC, dada a bifurcação interpretativa aparente seguida pelo TR Lx’, mas,
‘mesmo assim, opta-se por considerar como verdadeiro fundamento do recurso as alíneas b) e c) do n° 1 do artº 70° da LTC, pois o TR Lx aplicou a norma do artº
23º do CE com uma dimensão ou sentido inconstitucional/ilegal que foi impugnado ao longo dos autos’, acrescentando que ‘desistem do recurso da alínea i) do n° 1 do artº 70° da LTC’.
2. Com o âmbito do presente recurso delimitado à norma do artigo 23° do Decreto-Lei n° 438/91, de 9 de Novembro, que aprovou o Código das Expropriações, e reportada ao cálculo do montante da indemnização e à sua actualização, e tendo presente o fundamento do recurso assente nas alíneas a), b) e c), do n° 1, do artigo 70°, da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, importa saber se se verificam os pressupostos processuais específicos dele. E a resposta que pode adiantar-se é desde já uma resposta negativa, independentemente de saber se há uma coerência ou congruência na invocação simultânea de todas aquelas alíneas do n° 1 do artigo 70°.
3. À partida, tem de afastar-se a alínea c) desse n° 1, pois ela radica numa decisão negativa, com fundamento em ilegalidade ‘por violação de lei com valor reforçado’. Ora, não se vislumbra onde esteja essa ‘lei com valor reforçado’, nem ela vem identificada pelos recorrentes, pelo que não se verifica o pressuposto processual exigido na citada alínea c ), do n° 1 do artigo 70°.
4. Quanto à alínea a), do mesmo n° 1, do artigo 70°, ter-se-ia que demonstrar que há um juízo de desaplicação da norma questionada do artigo 23°, com fundamento em inconstitucionalidade, mas essa demonstração não é feita, nem resulta do acórdão recorrido que tenha havido uma desaplicação, com tal fundamento. O acórdão começou por demarcar ‘as questões equacionadas à luz dos arts. 684 n°
2 e 690 n° 1 do C PC’ (‘a) É a decisão recorrida nula, nos termos do art 668 n 1 c) e n 1 d) 1 parte do C.P.C?; b) Viola ele o art 23 do DL 438/91 de 9/11?; c) Essa nulidade e violação impediram que o montante indemnizatório a atribuir aos Expropriados Apelantes fosse fixado em 36 625 000$00?’), para responder ‘com a declaração da inexistência e inverificação das nulidades arguidas’, acrescentando-se ainda:
‘Conforme decidiu o STJ em aresto de 21/10/93, in C.J: Ano 1, Tomo 3.84 e Ac de
12/1/95, in C.J. Ano 3.1.20, são as conclusões que fixam o objecto do recurso. Ora, das apresentadas pelos Apelantes, não se extrai qualquer alegação que nos permita concluir pela existência do 'erro de julgamento', passível de dar acolhimento à pretensão dos mesmos, para fins da indemnização a atribuir-lhes, com fundamento no artº 23 do DL 438/91 ser a defendida, ou seja 36 625 000$00, contraposta à fixada na decisão em recurso. A não ser que datada esta sentença de 22.12.95, estavam os Apelantes a contar com todos os expedientes a que lançaram mão neste processo, para a actualização a que se reporta aquele preceito legal, o que obviamente é de todo irrelevante por variados motivos, que nos dispensamos enunciar. Nestes moldes, só nos resta subscrever ‘in totum’ a douta e bem fundamentada decisão recorrida, quer no aspecto fáctico, quer no jurídico, ao abrigo do n° 5 do artº 713 do C.P. C.’ Não se vê aí nenhum juízo ou decisão negativa, derivada de um julgamento de inconstitucionalidade, ainda que implícito, pois o que se afirma, relativamente
à norma do artigo 23° do Decreto-Lei n° 438/91, é que ‘não se extrai qualquer alegação que nos permita concluir pela existência do ‘erro de julgamento’, passível de dar acolhimento à pretensão dos mesmos, para fins da indemnização a atribuir-lhes’, acrescentando-se depois a adesão à ‘douta e bem fundamentada decisão recorrida’. Quando os recorrentes invocam que ‘o TR Lx recusa-se a aplicar o princípio de que a indemnização é calculada com referência ao valor do bem no momento da declaração de utilidade pública/DUP’, não significa isto que tenha havido um julgamento de inconstitucionalidade, antes significa, e só, que a indemnização
‘fixada na decisão em recurso’ não mereceu censura. Com o que também não se verifica aqui o pressuposto processual exigido na citada alínea a) do n° 1, do artigo 70°.
5. Resta por último, a alínea b), mas aqui ter-se-ia que demonstrar ter havido da parte dos recorrentes uma suscitação de questão de inconstitucionalidade
‘durante o processo’, dando de barato que a norma do artigo 23° do Decreto-Lei n° 431/91 foi mesmo aplicada no acórdão recorrido (suscitação essa que tem de ser feita no momento processual apropriado - aqui, as alegações e respectivas conclusões exibidas perante o tribunal de relação - e no ‘modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer’, como exige o n° 2 do artigo 72°, da Lei n°
28/82, na redacção do artigo 1°, da Lei n° 13-A/989, de 26 de Fevereiro). Ora, é essa suscitação de questão de inconstitucionalidade que não se mostra in casu respeitada, pois os recorrentes limitam-se no texto e nas conclusões das alegações apresentadas com a data de 12 de Junho de 1996 - e só esta peça processual pode relevar -, com referência ao recurso que foi interposto ‘da SENTENÇA proferida em 22.12.95, que condenou a CMA a pagar aos expropriados a quantia de 10.127.840$00, a título de indemnização pela expropriação da parcela em causa’, a sustentar que essa sentença ‘omitiu a actualização legal do valor indemnizatório com base na evolução do índice de preços no consumidor, pelo que violou o disposto no artº 23° do DL 438/91 de 9 de Novembro, estando a decisão em oposição com os fundamentos, sendo nula face ao artº 668°/1/c/ do CPC’ e ainda que ‘o Julgador deixou de pronunciar-se sobre uma questão essencial que devia apreciar, omissão de pronúncia que acarreta a nulidade da decisão, nos termos do artº 668°/1/d/1ª parte/ do C PC’. Não há, pois, nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa (ou de interpretação normativa) levantada pelos recorrentes com o discurso de que se servem, reportando-se ao questionado artigo 23°, sendo que, no rigor das coisas, a censura feita pelos recorrentes ao acto de julgamento em primeira instância radica em motivos formais, assentes em causas de nulidade da decisão. Daí que no acórdão recorrido não haja a apreciação de nenhuma questão de inconstitucionalidade, limitando-se a apreciar a sentença recorrida, concluindo estar ela ‘bem fundamentada (...) quer no aspecto fáctico, quer no jurídico, ao abrigo do nº 5 do artº 713 do C.P.C.’ Com o que igualmente não se verifica, neste aspecto, o pressuposto processual exigido na citada alínea b ), do n° 1, do artigo 70°.
6. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta.'
2. Dela vieram os recorrentes 'reclamar para a Conferência' e nos 'termos do artº 78º-A/3/ da LTC', dizendo em síntese, e no que aqui pode interessar e pode aproveitar-se, o seguinte:
2.1. Começam por invocar 'falta de pronúncia sobre questão que o julgador devia apreciar, pelo que a decisão é nula (artº 668º/1a/ do CPC)', porque o Relator
'convidou os recorrentes a esclarecer o verdadeiro fundamento do recurso, o que foi feito, mas depois, quando chegou o momento de decidir, abandonou essa questão relevante, não se pronunciando sobre a coerência/congruência da invocação simultânea das alíneas a e b do nº 1 do artº 70º da LTC'.
2.2. Invocam também que 'a decisão é nula (artº 668º/1/d/do CPC)', a propósito do 'afastamento da alínea a do nº 1 do artº 70º da LTC', pois 'a posição do Julgador ainda é mais bizarra, porque diz que o TR Lx não aplicou o artº 23º do DL 438/91, não actualizou a indemnização, mas que isso não contém nenhum juízo de inconstitucionalidade' (e dizem os recorrentes: 'Já sabemos que o TR Lx não aplicou a norma do artº 23º do CE; agora é preciso saber se o TC desculpa essa ilegalidade/inconstitucionalidade e, não o tendo feito, o Julgador omitiu pronúncia séria sobre esta questão'; 'A omissão da actualização legal do valor indemnizatório, desaplicando a norma do artº 23º do DL 438/91 de 9 de Novembro constitui uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa/ de interpretação normativa, com o discurso constitucional suficiente para ser analisado pelo TC').
2.3. Acrescentam depois que 'a decisão enferma de erro devendo ser revogada', porque 'não faz o mínimo sentido afastar a alínea c do nº 1 do artº 70º da LTC, dizendo que não se vislumbra onde esteja essa ‘lei como valor reforçado’, quando se trata exactamente da Lei Fundamental / artº 62º/2: a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização'. Terminam os recorrentes a reclamação pedindo que, 'para obviar aos erros e nulidades invocadas contra a decisão sumária em crise, deve conhecer-se do objecto do recurso (arts. 20º e 204º da CRP)'.
3. A ora recorrida Câmara Municipal de Almada não respondeu à reclamação.
4. Por despacho entendeu o Relator, colocando a 'questão de saber se há ou não lugar ao suprimento daquelas nulidades arguidas pelos reclamantes, porque hoje é lícito ao julgador repará-las, proferindo-se decisão sobre a matéria omissa (é o caso presente)' que, 'no âmbito da presente reclamação, e com o figurino legal que é traçado no artigo 78º-A, não tem o Relator o poder-dever de suprir qualquer das nulidades arguidas, e mencionadas nas alíneas b) a e) do nº 1 do artigo 668º, do Código de Processo Civil (cfr. nº 3)'.
5. Tudo visto, cumpre decidir.
É facto que, no essencial, os recorrentes suscitam na reclamação um vício processual da decisão sumária que estará na falta de pronuncia do julgador sobre questão ou questões de que deveria conhecer (artigo 668º, nº 1, d), do Código de Processo Civil, expressamente invocado pelos recorrentes em dois pontos da reclamação).
É desse vício que passa a tratar-se, podendo desde já adiantar-se que não assiste razão aos recorrentes. Com efeito, e a partir da consideração de que tal vício radica numa omissão pura e simples de pronúncia sobre questões que devam apreciar-se, é bom de ver que quanto ao ponto 2.1. – inexistir pronúncia 'sobre a coerência/congruência da invocação simultânea das alíneas a) e b) do nº 1 do artº 70º da LTC' – ficou dito na Decisão Sumária que se teve 'presente o fundamento do recurso assente nas alíneas a), b) e c), do nº 1 do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro', importando 'saber se se verificam os pressupostos processuais específicos dele' (isto apesar de os recorrentes terem esclarecido considerarem
'como verdadeiro fundamento do recurso são ambas as alíneas a) e b) do n° 1 do artº 70° da LTC, dada a bifurcação interpretativa aparente seguida pelo TR Lx', mas, 'mesmo assim, opta-se por considerar como verdadeiro fundamento do recurso as alíneas b) e c) do n° 1 do artº 70° da LTC, pois o TR Lx aplicou a norma do artº 23º do CE com uma dimensão ou sentido inconstitucional/ilegal que foi impugnado ao longo dos autos'), e adiantando-se 'desde já uma resposta negativa, independentemente de saber se há uma coerência ou congruência na invocação simultânea de todas aquelas alíneas do n° 1 do artigo 70° '. Tal significa que o recurso foi apreciado na óptica do fundamento assente naquelas alíneas do nº 1 do artigo 70º, sem entrar num juízo sobre a tal
'coerência ou congruência na invocação simultânea' de todas elas, o que basta para concluir que houve pronuncia do Tribunal. Saber se deveria ou não fazer-se uma ponderação desse juízo, para decidir-se sobre essa 'coerência ou congruência', é questão diferente e tem a ver com eventual erro de julgamento. Depois e quanto ao ponto 2.2., relativamente ao juízo de afastamento do
'pressuposto processual exigido na citada alínea a) do nº 1, do artigo 70º', também confundem os recorrentes o vício processual com eventual erro de julgamento.
É que, na Decisão Sumária houve exactamente a preocupação de demonstrar – bem ou mal, não interessa aqui -, a partir da consideração sobre 'o âmbito do presente recurso delimitado à norma do artigo 23° do Decreto-Lei n° 438/91, de 9 de Novembro, que aprovou o Código das Expropriações, e reportada ao cálculo do montante da indemnização e à sua actualização', que não se detecta no acórdão recorrido nenhum juízo de desaplicação da norma questionada do artigo 23º, com fundamento em inconstitucionalidade (não aplicar a norma com outros fundamentos
é coisa distinta e não releva no plano da constitucionalidade daquela norma). Tal demonstração é a prova real de que houve pronuncia sobre a questão que se deveria apreciar, a propósito da verificação do pressuposto processual exigido naquela alínea a) do nº 1, do artigo 70º, não havendo que fazer aqui censura da decisão das instâncias, na óptica do direito infraconstitucional. Saber se 'o julgador anda distraído com as inconstitucionalidades e os pressupostos', para usar a linguagem dos recorrentes, é matéria de eventual erro de julgamento e não propriamente de vício processual da decisão. Com o que não se verifica a invocada nulidade do artigo 668º, nº 1, d), do Código de Processo Civil, nos aspectos focados.
6. Resta apreciar o erro a que se reporta o ponto 2.3., no que toca ao afastamento da alínea c) do nº 1, do mesmo artigo 70º (recusa de aplicação 'de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado'). Muito simplesmente ficou dito na Decisão Sumária que 'não se vislumbra onde esteja essa ‘lei com valor reforçado’, nem ela vem identificada pelos recorrentes, pelo que não se verifica o pressuposto processual exigido na citada alínea c ), do n° 1 do artigo 70°'. E mais não se poderia dizer, pois não se vê nenhum confronto de actos legislativos, tendo por parâmetro a 'violação de lei com valor reforçado', e não 'a própria Constituição', contrariamente ao que sustentam os recorrentes, com a afirmação de que ela 'é em si a lei mais reforçada do regime interno' (não é neste sentido que se fala na alínea c) em
'lei com valor reforçado', que é sempre um acto legislativo infraconstitucional). Com o que não se verifica o erro de que falam os recorrentes, nada havendo a alterar, neste aspecto, na Decisão Sumária.
7. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação, incluindo a arguição de nulidades, e não se toma conhecimento do recurso, condenando-se os recorrentes nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa