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Processo nº 421/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J. N. vem, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, recorrer do acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de Abril de
1999, que, com fundamento em manifesta improcedência, rejeitou o recurso por si interposto do despacho, de 24 de Dezembro de 1998, do Juiz do Tribunal Judicial de Torres Vedras, que indeferiu um requerimento seu, em que arguira a nulidade da instrução, fundado em que haviam sido violadas as regras de competência territorial. Tal indeferimento fundou-se na extemporaneidade do requerimento, apresentado para além do prazo legal, que era até ao início do debate instrutório.
Pretende o recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade dos artigos 19º, 23º, 32º e 119º, alínea e), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que, nesses preceitos, 'se incluía a situação de ser o próprio ofendido a proceder à instrução', 'equiparando a situação de o ofendido ser um Magistrado à de o ofendido ser o Tribunal', 'observando, portanto, o mesmo regime no que respeita à incompetência daí decorrente'.
Neste Tribunal, o recorrente concluiu como segue a sua alegação: A) O arguido foi acusado da prática de um crime de difamação agravada, em virtude de o alegado ofendido-queixoso ser um Magistrado e, além disso, de um crime de ofensa a serviço público, no caso, o Tribunal Judicial de Torres Vedras; B) Assim sendo, é manifesto que o Tribunal Judicial de Torres Vedras não é competente para realizar a instrução requerida pelo arguido. C) Ao contrário do sustentado na decisão recorrida, não estamos, no caso em apreço, na presença de uma questão de mera incompetência territorial. D) Mas sim, perante um caso de desrespeito por princípios fundamentais de um Estado de direito democrático, como o de que ninguém pode ser juiz em causa própria, da garantia da imparcialidade da justiça. E) E de direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados como tal, como sejam o de que todos têm direito a um julgamento mediante um processo equitativo e de que o processo assegure todas as garantias de defesa. F) É absolutamente intolerável que, num verdadeiro Estado de Direito, se possa admitir que o ofendido – ou qualquer parte num processo – intervenha, seja em que momento for, no processo munido de um poder de autoridade. G) É inadmissível que se considere sequer a hipótese de que seja o próprio serviço, alegadamente ofendido, a ter o poder de fazer a comprovação, ainda por cima judicial e irrecorrível, de uma acusação em que é, alegadamente, visado. H) Assim, com a interpretação feita na douta decisão ora recorrida, os artºs
19º, 32º, 119º, alínea e) e 23º do Código de Processo Penal estão feridos de inconstitucionalidade material, por violação dos artºs 2º, 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exªs, doutamente, suprirão, deverão ser declarados inconstitucionais os artºs 19º, 32º, 23º e 199º, alínea e) do Código de Processo Penal, na interpretação deles feita pela decisão sob censura, revogando-se a mesma.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal também alegou, formulando as seguintes conclusões:
1º Não viola qualquer preceito ou princípio da Constituição o regime constante do artigo 32º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, segundo o qual fica precludida a excepção dilatória de incompetência territorial do tribunal onde decorre a instrução se o interessado a não arguir ou a mesma não for oficiosamente conhecida até ao início do debate instrutório.
2º Na verdade, não faria sentido facultar às partes ou sujeitos processuais a suscitação de uma incompetência relativa, em razão do território, para certa fase do processo, quando a mesma já se mostra integralmente esgotada, por consumado o seu objecto e função.
3º A legitimidade de tal efeito preclusivo não é abalada mesmo que se trate de incompetência fundada em respeitar o processo em questão a magistrado, cumprindo ao arguido suscitar tempestivamente a dita excepção dilatória, sempre que entenda estar em causa fundadamente a isenção e imparcialidade do juiz perante quem decorre a fase de instrução.
4º Termos em que deverá improceder o presente recurso.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio: Conquanto o recorrente questione a constitucionalidade de certa interpretação dos artigos 19º, 23º, 32º e 119º, alínea e), do Código de Processo Penal, o certo é que, neste recurso, verdadeiramente, está em causa – como se identifica na alegação do Ministério Público – a norma constante da alínea a) do nº 2 do dito artigo 32º, ' que considera precludida a excepção de incompetência territorial do tribunal onde decorre a fase da instrução após o início do debate instrutório – e operando tal efeito preclusivo mesmo no caso de a incompetência daquele tribunal radicar na norma constante do artigo 23º do Código de Processo Penal, que altera a normal fixação da competência em função de ser ofendido na causa juiz em exercício no órgão jurisdicional que, em regra, seria o competente para a instrução ou julgamento'.
Foi esta, de facto, a norma que o acórdão recorrido aplicou. E a este Tribunal apenas compete decidir se essa norma, tal como foi aplicada, é ou não compatível com a Constituição. Não lhe cabe decidir se era esse ou outro o regime jurídico aplicável ao caso.
O referido artigo 32º, nº 2, alínea a), prescreve que, 'tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada: a). até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução'. Por sua vez, no artigo 23º, preceitua-se que, 'se num processo for ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil um magistrado, e para o processo devesse ter competência, por força das disposições anteriores, o tribunal onde o magistrado exerce funções, é competente o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima, salvo tratando-se do Supremo Tribunal de Justiça'.
Vejamos, então:
4. A questão de constitucionalidade: A regra de competência constante do artigo 23º, acabado de transcrever, tem, obviamente, a ver com a necessidade de garantir que o juiz possa actuar com independência e imparcialidade. De facto, a necessidade de assegurar que a causa seja apreciada por um juiz independente e imparcial impõe que o não possa ser por um juiz que nela tenha a posição de ofendido [cf., a propósito, o acórdão nº 135/88 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988)].
Escreveu-se nesse acórdão nº 135/88, entre o mais, o seguinte: Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de 'administrar justiça'. Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar – deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.
É por isso que o mencionado artigo 23º garante que, se o ofendido for um juiz que exerça funções no tribunal que, de acordo com as regras gerais, seria o competente para a causa, a competência passa a ser do tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima. Ou seja: tal norma impõe o desaforamento do processo, que passa a ser da competência da comarca vizinha. E isto é assim, independentemente de, no processo, figurar também (ou não) como ofendido o próprio tribunal. Como sublinha o Ministério Público, 'a causa da incompetência territorial, desde sempre patente nos autos, radica, em termos suficientes, em se tratar de ‘processo respeitante a magistrado’, não tendo o facto traduzido em figurar concomitantemente como ofendido também o próprio tribunal como órgão jurisdicional, o efeito constitutivo relativamente à dita incompetência relativa, a qual já decorrera do facto de na causa figurar como ofendido o juiz da comarca'.
Só que, se é certo que a necessidade de garantir que a causa seja apreciada por um juiz independente e imparcial impõe que não possa ser o juiz ofendido no processo a decidi-la, tal já não reclama que os sujeitos processuais possam arguir a incompetência territorial do tribunal em qualquer momento. A competência do tribunal atinente à fase da instrução há-de ficar definitivamente arrumada até ao encerramento desta, pois seria de todo irrazoável que se entrasse na fase do julgamento com tal questão por resolver. O processo penal tem que ser justo. O carácter justo do processo exige, porém, que ele seja 'julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'
(cf. artigo 32º, nº 2, da Constituição). Ora, se as questões não forem sendo decididas na fase a que respeitam, corre-se o risco de criar uma autêntica confusão processual, com a consequência de arrastar os processos indefinidamente.
Por isso, a norma que impede que, após o início do debate instrutório, se argua a incompetência territorial do tribunal onde decorreu a instrução, não é inconstitucional, pois que não encurta, de forma inadmissível, as garantias de defesa do arguido. O processo continua a ser a due process, como deve ser o processo de um Estado de Direito.
Que assim é, basta recordar que, no caso, o recorrente, para além de ter sido, ele próprio, a requerer a instrução no Tribunal Judicial de Torres Vedras, quando sabia que – ex vi do que preceitua o referenciado artigo 23º - esse Tribunal era territorialmente incompetente para o efeito, teve todo o tempo para, até ao início do debate instrutório, excepcionar a incompetência do tribunal como lhe impunha o artigo 32º, nº 2, alínea a), também citado. Optou por não o fazer. E, depois de proferido o despacho de pronúncia – que, em virtude de, no processo, ser ofendida a Juiz do 2º Juízo do Tribunal de Torres Vedras, tal como o próprio Tribunal, ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Lourinhã -, veio, então, arguir a nulidade da instrução. Ora, há-de convir-se que, nesta situação, o arguido não pode, razoavelmente, invocar violação do seu direito de defesa.
5. Conclusão: Conclui-se, assim, que a norma sub iudicio, com o recorte que atrás se apontou, não é inconstitucional. Há, por isso, que negar provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar o recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 9 de Fevereiro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida