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Processo nº 518/99
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. AB... recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 1998, pretendendo, conforme resulta da conjugação do requerimento de fls. 2844 e da resposta ao convite para que o completasse, de fls. 2855, que fossem julgadas inconstitucionais as seguintes normas:
'1. O art. 535º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção anterior ao Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, por violação do art. 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP), cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de
03.12.96, nomeadamente na conclusão 7ª.
2. O art. 2196º do Código Civil, por violação do art. 62º, nº 1 da CRP, cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso para o STJ, de
03.12.96 (conclusão 41ª).'
2. Considerando a relatora não poder o Tribunal Constitucional tomar conhecimento de parte do objecto do recurso, foram as partes notificadas do seguinte parecer, nos termos previstos no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil:
'2. Incumbe ao recorrente definir o objecto do recurso, ou seja, a norma – ou uma sua dimensão interpretativa – cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie e declare. E, tratando-se de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, são pressupostos para o conhecimento do seu objecto, no que agora releva, que a inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (al. b) citada e nº 2 do artigo 72º da mesma Lei) e que, não obstante, a norma impugnada tenha efectivamente sido aplicada na decisão recorrida (mesma al. b) do nº 1 do artigo 70º e artigo 79º-C da Lei nº 28/82). Torna-se, pois, indispensável, verificar se estes pressupostos se encontram preenchidos.
3. No que toca ao nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, cabe analisar as alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça, 'nomeadamente na conclusão 7ª', para determinar qual o conteúdo da norma impugnada, até porque o requerimento de interposição de recurso o não descreve. Ora o recorrente, conforme resulta da leitura dessas alegações, 'nomeadamente, na sua conclusão 7ª', após explicar por que razão é que considera ter sido violado o nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável
('Suposto que viesse à colação o artº 535º, nº 1 do mesmo Código para legitimar o definitivo indeferimento, também o mesmo resultou violado por, enquanto concede ao Tribunal um poder discricionário, o despacho referido haver traduzido um uso ilegal do mesmo' – conclusão 2), conclui: 'Quando assim se não entenda, então é o mesmo preceito inconstitucional, por violação do artº 20º da Constituição, visto que coloca na dependência do critério do Tribunal, mesmo o mais arbitrário, o exercício de um direito processual das partes'. E, mais adiante, verifica-se, como aliás entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, que o recorrente não questionou que tal preceito conferisse ao tribunal um poder discricionário; antes sustentou foi que o despacho emitido ao abrigo desse poder violou o fim vinculado com que o mesmo é concedido, enfermando do vício de desvio de poder; e que o acórdão da 2ª instância, confirmando-o, 'violou-o também, manifestamente, pois pressupõe que o uso de um poder discricionário é sempre legal, o que não é o caso'. Neste contexto, o único sentido útil conferido à acusação de inconstitucionalidade feita na conclusão 7ª – 'quando assim não se entenda, então é o mesmo preceito inconstitucional' –, só pode ser o de o recorrente considerar inconstitucional a interpretação do nº 1 do artigo 535º em causa quando entendido como não considerando vinculado o fim com que o poder discricionário é concedido, ou, por outras palavras, que nunca é ilegal o exercício de um poder discricionário. A não ser assim, só poderá entender-se que o recorrente, em rigor, não questionou a constitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, mas, apenas, a aplicação concreta que o tribunal recorrido fez desse preceito, não colocando, assim, nenhuma questão de constitucionalidade normativa. Nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, às quais não houve resposta, o recorrente veio descrever expressamente a norma que considera ter sido aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido, retirada do nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:
'O Acórdão recorrido extraiu do art. 535º, nº 1, do Código de Processo Civil
(CPC), na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, a seguinte norma jurídica que aplicou à factualidade sub iudice: junto ao processo por uma das partes um documento particular manuscrito essencial para a sorte de uma acção cuja veracidade (letra) é impugnada pela parte contrária e existindo um documento num organismo oficial escrito por essa pessoa que, com maior ou menor força probatória e com maiores ou menores conhecimentos técnicos de caligrafia por parte do juiz, pode esclarecer ou ajudar o tribunal no sentido de considerar aquela letra daquela pessoa, tendo sido sugerida ao tribunal, nos termos do art. 535º do Código de Processo Civil, a sua requisição pela parte que apresentou o documento, o tribunal pode deixar de requisitar esse documento com fundamento na natureza discricionária do poder que aquele artigo lhe confere'. E, mais à frente, percebe-se que, no fundo, o que o recorrente entende é que, em casos como o que descreve, 'é injusto reconhecer-se ao tribunal um poder discricionário: nesse tipo de situações o poder do tribunal é, necessariamente, um poder vinculado'. Seria, pois, inconstitucional, agora, interpretar a norma contida no nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, na versão aplicável, no sentido de atribuir ao tribunal um poder discricionário de requisitar ou não um documento, na situação descrita, quando a requisição foi sugerida por uma parte. Ora a verdade é que, desde logo, o recorrente não pode alterar a norma que constitui o objecto do recurso nas alegações apresentadas neste Tribunal. É no requerimento de interposição de recurso que a determinação do objecto do processo se faz (cfr., por exemplo, o acórdão nº 366/96, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996); e, no caso, essa determinação houve de ser feita por conjugação com as alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça. Não há, manifestamente, coincidência. Assim, só é possível considerar a norma no sentido definido nas alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça em conjugação com o requerimento de interposição de recurso, porque só relativamente a esse sentido se pode considerar preenchido o pressuposto de que a inconstitucionalidade tenha sido invocada durante o processo, de forma a que o tribunal recorrido dela haja podido conhecer. E a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça, na decisão recorrida, não interpretou nem aplicou o nº 1 do artigo 535º em causa com o sentido assim determinado. Com efeito, o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu foi: 'Acrescenta, porém, o recorrente que o despacho de indeferimento da requisição do documento violou o disposto no artº 535º, nº 1, por ter feito uso ilegal do poder discricionário concedido ao tribunal por aquele preceito. Não põe, assim, em dúvida que o artº 535º, nº 1 confira ao juiz um poder discricionário. E, na verdade, o preceito concede ao juiz a liberdade de opção entre a requisição ou não de documentos, por sua iniciativa ou sugestão das partes, com o objectivo de possibilitar a escolha da solução que, em seu prudente arbítrio, melhor realize o fim de esclarecimento da verdade. Segundo o artº 679º, os despachos proferidos no uso de poder discricionário não são recorríveis. No entanto esta irrecorribilidade apenas respeita ao conteúdo do despacho e não à legalidade do uso do poder discricionário que pode resultar da falta de verificação dos pressupostos de que a lei faz depender esse uso, de o tribunal ter optado por solução não correspondente às alternativas de escolha previstas na lei, ou de desvio de poder, isto é, do seu uso para fim diferente do definido ou pressuposto pela lei – (...). Ora no caso dos autos, o requerimento de requisição de um testamento foi indeferido com o fundamento de que não sendo os elementos do colectivo peritos em caligrafia, não poderiam, pela comparação de letras dos documentos juntos com a do testamento a requisitar, reconhecer se os primeiros eram do autor do documento a obter. Nesse despacho não se descortina qualquer uma das modalidades de ilegalidade de uso do poder discricionário precedentemente descritas' (fls.
2790 e 2791). Assim, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso no que toca à alegada inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à vigente neste momento, na interpretação impugnada pelo recorrente, porque não foi com esse sentido que a norma foi efectivamente aplicada na decisão recorrida (cfr., a título de exemplo, o acórdão nº 367/94, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 28º, pág. 147 e segs.).
4. Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 69º da Lei nº 28/82, 'se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias'.
Assim, notifiquem-se as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o não conhecimento parcial do objecto do recurso.'
3. Apenas respondeu o recorrente (resposta de fls. 2897), sustentado, em síntese, que '(...) pode concluir-se que, tal como nas Alegações para o STJ,o Recorrente pretendeu inconstitucional a interpretação do art. 535º, nº 1, do CPC sub iudice, no sentido de que o poder aí conferido ao tribunal é sempre discricionário. Se é certo que a formulação da norma pretensamente inconstitucional não foi a mesma nas Alegações para o STJ e nas Alegações para este Tribunal Constitucional, também nos parece claro que, na essência, a questão/norma é exactamente a mesma, tendo o Recorrente nas Alegações para este Tribunal Constitucional delimitado com maior precisão essa norma e o correspondente juízo de inconstitucionalidade, isto é, nestas últimas Alegações o Recorrente não ampliou nem alterou a norma que pretende inconstitucional, tendo antes restringido essa caracterização normativa.
(...) devem conhecer-se de todas as questões suscitadas pelo Recorrente no presente recurso(...)'.
4. Nada resulta da resposta do recorrente que possa fazer alterar o que consta do parecer acima transcrito relativamente ao conhecimento do recurso do que toca
à norma que extrai do nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil. Dela não vai, pois, o Tribunal conhecer, pelas razões ali indicadas.
5. Quanto à norma do artigo 2196º do Código Civil, relativamente à qual se não verifica nenhum obstáculo que impeça o respectivo conhecimento, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional a redacção que o artigo 2196º do Código Civil tinha na versão anterior à actual, que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, porque foi aquela que o acórdão recorrido aplicou (por remissão do artigo 953º do Código Civil, segundo o qual
'É aplicável às doações, devidamente adaptado, o disposto nos artigos 2192º a
2198º). Era a seguinte: Cúmplice do testador adúltero
É nula a disposição a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério, salvo se o casamento já estava dissolvido ou os cônjuges estavam separados judicialmente de pessoas e bens à data da abertura da sucessão. Sustenta o recorrente que a inconstitucionalidade teria sido eliminada pela alteração introduzida em 1977. Segundo se depreende das suas afirmações, constantes das alegações de recurso apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça, tal alteração ter-se-ia traduzido em excluir da nulidade prevista no nº 1 a hipótese de a disposição testamentária ter sido feita a favor da pessoa com quem o testador cometeu adultério se o testador, à data da abertura da sucessão, estivesse separado de facto do cônjuge há mais de seis anos (fazendo, naturalmente, as devidas adaptações à hipótese de doação). Em seu entender, a redacção anterior violaria o 'art. 62º, nº 1 da CRP' – ou seja, o direito de propriedade privada. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente acrescenta que a norma impugnada contém uma restrição não constitucionalmente permitida ao direito de propriedade, que é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias,
'compartilhando por isso do mesmo regime (art. 17º da Constituição), pelo que goza da protecção conferida pelo art. 18º da Constituição, só podendo ser restringido nos casos expressamente previstos na Lei Fundamental'. Um dos aspectos do direito de propriedade seria a liberdade de transmissão, que resultaria afastada em termos de 'fundar uma desigualdade quanto à capacidade de transmissão do direito de propriedade no estado civil dos cidadãos, o que se afigura intolerável'.
6. Diga-se, em primeiro lugar, que se poderia questionar a utilidade do julgamento desta questão de constitucionalidade, uma vez que a procedência teria como efeito, como se sabe, o da aplicação do direito anterior; no caso, do disposto no artigo 1480º do Código Civil de 1867, cujo conteúdo era o seguinte: Artigo 1480º São nullas as doações feitas por homem casado a sua concubina. Essa nullidade, porém, só pode ser declarada a requerimento da mulher do doador ou dos herdeiros legitimários d’ella, não podendo todavia a respectiva acção ser intentada senão dentro de dois annos depois de dissolvido o casamento. Ora, o recorrente não invocou a inconstitucionalidade desta norma. Como, todavia, o seu conteúdo não coincide com o da norma impugnada, passa-se ao conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada.
7. É indiscutível que o direito de propriedade, no seu núcleo essencial, como se escreveu no acórdão nº 205/2000, não publicado, é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias; e que, 'nesse domínio, valham as condições constitucionalmente exigidas para as leis restritivas'. Mas só na dimensão em que o direito de propriedade 'tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias' (acórdão nº 329/1999, Diário da República, II Série, de
20 de Julho de 1999). Ora no caso concreto, e em primeiro lugar, está tão somente em causa, como aliás a própria epígrafe do artigo 953º exprime, uma mera hipótese de indisponibilidade relativa, e não qualquer limitação da capacidade, como sustenta o recorrente, em função do estado civil. O que decorre da lei é, apenas, que o doador não pode dispor de um direito de que é titular a favor de determinada pessoa, em razão da relação entre eles previamente existente; não existe, sequer, uma indisponibilidade absoluta desse direito – e, muito menos, qualquer incapacidade jurídica. Ora, e em segundo lugar, como já se escreveu no acórdão nº 225/2000, também não publicado, referindo a anotação ao artigo 62º da Constituição de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1º vol., Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 334) 'Teoricamente, o direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: a) o direito a adquirir; b) o direito a usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) o direito de a transmitir; d) o direito de não ser privado dela'. Mais à frente
(p. 335) e especificamente sobre o direito de transmissão da propriedade
(dimensão que agora poderia estar em causa) referem aqueles autores: 'Um dos aspectos explicitamente garantidos é a liberdade de transmissão, inter vivos ou mortis causa (nº 1, in fine), não podendo haver bens vinculados ou sujeitos a interdição de alienação. Este direito deve ser entendido no sentido restrito de direito de não ser impedido de a transmitir, mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, quer quanto à transmissão inter vivos (obrigações de venda, direito de preferência, etc.) quer quanto à transmissão mortis causa...'.
Não há, pois, que falar em restrições ao direito de propriedade, como sustenta o recorrente; e, diga-se a terminar, nem estaríamos, quanto ao ponto particular de que nos ocupamos, no âmbito da dimensão em que ao direito de propriedade se aplica o regime definido para os direitos, liberdades e garantias.
Assim, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso na parte relativa à norma constante do nº 1 do artigo 535º do Código de Processo Civil, na versão anterior
à que o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, deu a este preceito;
b) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação entre o disposto nos artigos 953º e 2196º do Código Civil, julgando consequentemente improcedente o recurso nesta parte. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida
VER BEM A DECISÃO, O stj não SE PRONUNCIOU SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DO 2196º. Por isso, na decisão não posso confirmar o Supremo Tribunal de Justiça.