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Proc. nº 741/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - J. F., com os sinais dos autos, recorreu contenciosamente do despacho do Director do Gabinete para a Pesquisa e Exploração de Petróleo, de
11/3/93, que confirmou a sua exclusão do concurso para preenchimento de um lugar de técnico superior principal do quadro de pessoal daquele Gabinete, com fundamento no facto de o recorrente ter optado pelo regime consagrado no artigo
6º nº 1 do Decreto-Lei nº 143/89, de 29 de Abril, o que, nos termos do nº 6 da Portaria nº 603/89, de 3 de Agosto, o impedia de ser opositor ao concurso.
Entre outros fundamentos de impugnação, o recorrente invocou a ilegalidade do citado nº 6 da Portaria nº 603/89, por contrariar o disposto no artigo 6º nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 143/89.
O recurso foi provido por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, com fundamento na invocada ilegalidade – o artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89 permitia que os trabalhadores do extinto Instituto de Investimento Estrangeiro recebessem uma indemnização e, cumulativamente, se candidatassem, durante dois anos, a concursos internos gerais dos serviços e organismos da Administração Pública, enquanto o nº 6 da Portaria só facultava a candidatura aos ditos concursos a quem não tivesse recebido aquela indemnização.
Interposto recurso desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) pelo autor do acto contenciosamente impugnado, o então recorrido manteve a tese da ilegalidade da Portaria nº 603/89 (nº 6), publicada em regulamentação do nº 4 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89.
Pelo acórdão de 28/1/99, o STA concedeu provimento ao recurso.
Para tanto, entendeu que o artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89 não conferia aos trabalhadores do extinto IIE que optassem pelo recebimento da indemnização prevista no nº 3 daquele artigo 6º o direito de se candidatarem, durante dois anos aos concursos internos gerais dos serviços e organismos da Administração Pública, pelo que a Portaria nº 603/89, diploma regulamentar do Decreto-Lei nº 143/89, não permitindo a candidatura aos concursos a quem tivesse optado pelo recebimento da indemnização, não contrariava, pois, o disposto no artigo 6º nº 3 do Decreto-Lei nº 143/89.
Vencido, o recorrido interpôs recurso do acórdão do STA para este Tribunal.
O recurso foi interposto, nos termos do respectivo requerimento, 'ao abrigo do disposto no artigo 70º nº 1 alíneas b) e f) (...) da lei nº 28/82
(...)', 'com fundamento em ilegalidade e inconstitucionalidade do nº 6 da Portaria nº 603/89'.
Indicou as peças onde invocara a 'questão de ilegalidade' da Portaria nº 603/89, 'por violação do regime estabelecido nos nºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89' e a 'questão de inconstitucionalidade' da mesma Portaria, por ultrapassar os limites da regulamentação, citando a propósito o artigo 112º da Constituição.
O despacho de fls. 48 não admitiu o recurso.
Equacionada a questão da admissibilidade do recurso face ao disposto no artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, no referido despacho entendeu-se que o acórdão impugnado não acolhera a interpretação de que a Portaria contrariava o Decreto-Lei nº 143/89, não permitindo, assim, a colocação de qualquer questão de inconstitucionalidade – esta só seria configurável se o tribunal tivesse acolhido a interpretação pretendida pelo recorrente.
E conclui o mesmo despacho que 'a pretendida pronúncia de inconstitucionalidade traduzir-se-ia, assim, numa sindicação pelo Tribunal Constitucional da interpretação feita pelo STA dos aludidos preceitos normativos, que o mesmo é dizer numa sindicação afinal estranha à questão de constitucionalidade'.
É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação; nela se diz, com interesse para a decisão da causa o seguinte:
'4 – A posição do STA, ao decidir que o nº 6 da Portaria nº 603/89, de 3 de Agosto, não contraria o disposto no nº 6 nºs 1 e 3 do Dec-lei nº 143/89, de 29 de Abril, utilizando uma infeliz interpretação, dita sistemática e teleológica, sem fundamentar e justificar o porquê de se afastar da interpretação literal deste diploma legal, vai, assim, no sentido contrário ao pretendido pelo reclamante, isto é, de que tal normativo da Portaria nº 603/89 não seria, afinal, ilegal nem inconstitucional, não permitindo dessa forma, como se refere no douto despacho, ora reclamado, a colocação de qualquer questão de inconstitucionalidade.
5 – Ao não querer aceitar colocar a questão de constitucionalidade, por ofensa do artigo 115º (correspondente ao 112º após a ultima revisão) da Constituição, o STA não aceita permitir que se decida, em concreto, se a dita portaria é ou não ilegal ou inconstitucional, como se suscitou à saciedade durante o processo, ofendendo, assim, mais uma vez os direitos do recorrente, nomeadamente os de acesso à justiça, legal e constitucionalmente consagrados.
6 – Logo, sendo fundado o recurso para o TC, a decisão de não admissão não obedeceu ao disposto no artº 76º da referida Lei nº 28/82, na sua actual redacção.
.............................................................................................................'
Neste Tribunal o Exmo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
No parecer que emitiu, começa aquele Exmo Magistrado por entender que se não verificam os pressupostos da admissibilidade do recurso, enquanto fundado na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pois não se perspectiva nenhuma das questões de 'ilegalidade qualificada', susceptíveis de fundar a intervenção e os poderes cognitivos deste Tribunal.
Quanto ao recurso fundado na alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 70º, a norma em causa não teria sido aplicada pela decisão recorrida com o sentido que lhe atribui o recorrente porquanto nela fora interpretada a norma regulamentar em termos que a tornam compatível com o preceito legal que a mesma visava regulamentar.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Como se deixou relatado, o recurso para este Tribunal foi interposto ao abrigo de diferentes alíneas do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82: as alíneas b) e f).
Com este procedimento, o recorrente cumula um recurso de inconstitucionalidade com um outro de ilegalidade de normas.
Desde logo se assinala que o despacho reclamado se pronuncia, apenas, nos termos já referidos, quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
A justificação, embora não explicitada, parece óbvia.
Na verdade, as duas vias recursórias têm, no caso, um substracto comum: a pretensa contradição entre a norma do nº 6 da Portaria nº 603/89 e o disposto no artigo 6º (em especial nºs 1 e 3) do Decreto-Lei nº 143/89, sempre invocada pelo recorrente ao longo do processo.
Com efeito, para o recorrente, a Portaria nº 603/89 que regula, entre o mais, os termos a que deviam obedecer os concursos previstos no nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89, recusa o acesso aos mesmos concursos dos trabalhadores do extinto IIE que tivessem recebido indemnização, em contrário do disposto no artigo 6º nºs 1 e 3 daquele Decreto-Lei que, segundo a sua interpretação, não condicionava tal acesso ao não recebimento da aludida indemnização.
Nesta perspectiva, a norma regulamentar da Portaria nº 603/89 seria, simultaneamente ilegal, por contrariar norma de hierarquia superior e inconstitucional por violação do artigo 112º nº 6 da CRP (anterior artigo 115º nº 5).
Ora, relativamente à norma arguida de ilegal e inconstitucional, o acórdão recorrido não diverge da interpretação que lhe dá o recorrente; a divergência reside na interpretação da norma que resulta da conjugação do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 143/89 – ou seja, daquela que, numa perspectiva de legalidade, constitui o parâmetro aferidor da validade da norma regulamentar – que, para o aresto impugnado, não confere aos trabalhadores do extinto IIE, cumulativamente os direitos a indemnização e de acesso aos referidos concursos.
Pois bem.
O fundamento em que assentou a decisão de não recebimento do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82 seria impertinente para não admitir o recurso de ilegalidade de normas (o que não supõe – como adiante se verá – que o mesmo seja admissível).
Na verdade, nos casos em que a lei prevê o recurso de ilegalidade de normas para o Tribunal Constitucional, a este não obsta o facto de a interpretação da norma de hierarquia superior ter sido feita, na decisão recorrida, em termos de a ela se conformar a norma de hierarquia inferior.
A interpretação da norma paramétrica, no juízo de legalidade, pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional, tal como, em recurso de constitucionalidade, é lícito ao Tribunal apreciar a interpretação feita na decisão impugnada da norma constitucional que nessa decisão tenha determinado o juízo de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da norma infra-constitucional em causa.
No caso, o facto de o STA ter interpretado a norma de hierarquia superior (artigo 6º nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 143/89) de tal modo que a norma do nº 6 da Portaria nº 603/89, com o sentido que o recorrente também lhe atribui, se lhe não opõe, não constituiria óbice à admissibilidade do recurso para apreciação de ilegalidade de normas.
A inadmissibilidade deste recurso radica noutra ordem de considerações.
É que o artigo 70º nº 1 alínea f) da Lei nº 28/82, em conformidade com o disposto no artigo 280º nº. 2 alínea d) da CRP, só prevê o recurso para o Tribunal Constitucional, em caso de aplicação de norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo, com os fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e).
Quer dizer que nem em todos os casos de violação do princípio da prevalência de lei por norma de hierarquia inferior (designadamente, regulamentar) há lugar a recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento em ilegalidade de normas – tal só acontece, para além do caso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, nas situações referidas no parágrafo anterior, que manifestamente se não verificam 'in casu'.
3 - Mas, não sendo admissível recurso com fundamento em ilegalidade de normas, sê-lo-à como recurso de constitucionalidade ao abrigo do abrigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, por violação do princípio da prevalência ou da primazia da lei que dimana do artigo 112º nº 6 da CRP (anteriormente, artigo 115 nº 5) ?
A questão foi já apreciada e decidida por este Tribunal em sentido que se não vê razões para abandonar.
Escreveu-se, p. ex., no Acórdão nº 274/93, in ATC:
'(...) o princípio da prevalência ou proeminência da lei significa que o regulamento não pode contrariar um acto legislativo ou equiparado, não podendo a própria lei – nos termos do artigo 115º nº 5 da Constituição – autorizar a sua revogação, modificação ou suspensão por outra via que não seja outra lei.
A norma regulamentar que modificar a lei habilitante e consequentemente violar o princípio da prevalência é certamente inválida; mas como qualificar este vício? Apenas como ilegalidade ou também como inconstitucionalidade, directa ou indirecta ?
No caso concreto, parece não se verificar um conflito directo entre as normas (...) e as normas constitucionais, nem tal oposição vem sequer alegada pelo recorrente.
O que existe e vem alegado é uma desconformidade entre as normas
(...) e as normas do decreto-lei que ele visa regulamentar.
Ora, em princípio, salvo as excepções expressamente previstas só a inconstitucionalidade directa – isto é os casos em que, havendo conflito de normas de hierarquia diferente, uma das normas em confronto directo seja uma norma constitucional – está sujeita ao sistema específico de garantia de fiscalização de constitucionalidade prevista nos artigos 277º e seguintes da CRP.'
E mais adiante escreveu-se no mesmo acórdão:
'Assim a violação da lei habilitante por parte do regulamento envolve relevantemente o vício da ilegalidade, não se podendo afirmar, no caso, que a norma legal interposta tenha o seu fundamento na própria Constituição e que, portanto, a violação desta, ainda que indirecta, acabe por envolver inconstitucionalidade relevante.'
O que neste aresto se decidiu (cfr. em sentido idêntico Acórdãos nºs
262/92 e 606/93 in ATC, 22º vol., p. 943 e in DR, nº. 108, de 10/5/94, 2ª Série, p. 4415, respectivamente) é integralmente transponível para o caso dos autos.
Na verdade, a suposta inconstitucionalidade da norma do nº 6 da Portaria nº 603/89, tal como foi suscitada pelo recorrente, residiria unicamente na contradição com o Decreto-Lei nº 143/89 que, de acordo com os citados princípios da prevalência ou da primazia da lei, não poderia desrespeitar; a inconstitucionalidade não resultaria, pois, de qualquer confronto directo da mesma norma com a Constituição.
O vício relevante seria, apenas, o de ilegalidade e só mediata ou indirectamente o de inconstitucionalidade, o que não legitima o recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82.
De resto, a admitir-se o recurso de constitucionalidade sempre que fossem violados aqueles princípios, esvaziava-se por completo o sentido das restrições que o legislador constituinte impôs ao recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento em ilegalidade (artigo 280º nº 2 alínea d) da CRP).
4 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, porque se não verificam os pressuposto de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo quer da alínea b), quer da alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa