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Processo n.º 148/2012
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Pela decisão sumária n.º 180/2012, decidiu o relator não conhecer do objeto do recurso interposto pelos recorrentes A. e B. e não conhecer do objeto do recurso interposto pelo recorrente C., exceto na parte em que versa a norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, interpretada no sentido de que a perda de mandato é um efeito automático da condenação, negando-se, nesta parte, provimento ao recurso, por remissão para os fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 274/90.
Decidiu, ainda, o relator, indeferir requerimentos dos recorrentes B. e C. pelos quais pediam a baixa do processo à primeira instância para apreciação de questões relativas à prescrição do procedimento criminal.
Os recorrentes B. e C., inconformados, reclamaram da decisão sumária para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), insurgindo-se, ambos, contra a decisão que indeferiu a baixa do processo, para o efeito de ser apreciada a questão da prescrição do procedimento criminal, porquanto:
- segundo o recorrente B., trata-se de questão prévia cujo conhecimento pelas instâncias pretende evitar a inutilidade do recurso, não estando em causa qualquer propósito dilatório, pelo que a questão da prescrição do procedimento criminal deve ser apreciada, por imposição lógica e legal, previamente à decisão do recurso de constitucionalidade, devendo os autos baixar, para o efeito, como requerido.
- segundo o recorrente C., o que se pretende, com o requerido, é precisamente habilitar o Tribunal Constitucional a aferir da utilidade ou inutilidade do presente recurso, o que só será possível com a prolação, pelo tribunal competente, de uma decisão definitiva sobre a invocada prescrição do procedimento criminal, questão prévia de direito substantivo, que, pela sua natureza e efeitos, deve merecer uma decisão em prazo razoável, como constitucionalmente consagrado, suspendendo-se, para o efeito, a instância de recurso, como legalmente imposto (artigo 78.º-B, n.º 1, da LTC) e já decidido pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 529/08).
O recorrente B. reclama, ainda, da decisão sumária, na parte em que não conheceu, por inutilidade, da questão de inconstitucionalidade da «interpretação dos artigos 358.º e 359.º CPP segundo a qual constitui alteração não substancial dos factos o aditamento à acusação e à pronúncia (e, por arrastamento, a sua inclusão na sentença) de factos que preenchem um elemento do tipo legal de crime não constante dessas peças processuais», invocando estar em causa interpretação efetivamente aplicada pelo acórdão recorrido.
O recorrente C., por seu lado, reclama, ainda, da decisão sumária, na parte em que não conheceu do objeto do recurso, relativamente a nove das dez questões de inconstitucionalidade por ela abrangidas, e na parte em que, relativamente à única questão de inconstitucionalidade de que se tomou conhecimento, negou provimento ao recurso, alegando, em síntese, respetivamente, estarem verificados os pressupostos processuais que o relator julgou omissos e não ser de aplicar o disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC por não estar em causa «questão simples» suscetível de merecer por parte do Tribunal Constitucional uma decisão sumária remissiva como a proferida pelo relator.
O Ministério Público, em resposta, pugna pela manutenção do julgado, pelos fundamentos em que se baseou.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Questão prejudicial
Os recorrentes B. e C. vieram requerer, na pendência do recurso, a baixa do processo à primeira instância para que sejam apreciadas questões relativas à prescrição do procedimento criminal, o que foi indeferido pelo relator na decisão sumária ora em reclamação, com a seguinte fundamentação:
«Como tem sido entendimento corrente, não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a prescrição do procedimento criminal ou quaisquer outras ocorrências que constituam causa de extinção da instância do processo base, sendo que essas são decisões a proferir sobre matéria processual que é estranha ao objeto normativo do recurso de constitucionalidade (cfr. acórdão n.º 313/02).
Por outro lado, a inutilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da instância de recurso no Tribunal Constitucional, apenas poderia ocorrer se tivesse sido entretanto proferida decisão pelo tribunal competente, com caráter definitivo, que, julgando verificada a prescrição do procedimento criminal, suprimisse o interesse processual na dirimição da questão de constitucionalidade.
Acresce que a mera invocação, por parte dos arguidos, da ocorrência da prescrição do procedimento criminal não pode constituir razão justificativa da suspensão da instância de recurso.
Com efeito, estando já pendente o recurso de constitucionalidade, não faz qualquer sentido sobrestar na decisão a proferir e remeter o processo ao tribunal competente para que este se pronuncie sobre a questão suscitada pelos recorrentes, apenas para que o Tribunal Constitucional possa aferir ulteriormente sobre se se mantém o interesse processual no prosseguimento do recurso, quando a inutilidade superveniente da lide por efeito da alegada prescrição do procedimento criminal é uma mera eventualidade, que depende do sentido da decisão que sobre a matéria vier a ser emitida pelo tribunal de instância.
A entender-se de outro modo, o Tribunal Constitucional ficaria impedido de dar seguimento ao recurso sempre que os recorrentes viessem invocar qualquer questão processual que ao Tribunal estivesse vedado conhecer, ainda que o fizessem repetidamente, sem fundamento sério, e com o objetivo ilegal de protelar o andamento do processo.
Sendo ainda certo que a remissão da apreciação da questão processual estranha ao âmbito do recurso de constitucionalidade para um momento em que a instância de recurso chegue ao seu termo em nada afeta a posição do arguido, que sempre poderá beneficiar da extinção do procedimento criminal, por efeito da prescrição, quando esta seja declarada em momento oportuno.
Nestes termos, a remessa do processo ao tribunal recorrido, designadamente para o efeito de ser apreciada a questão da prescrição do procedimento criminal, será efetuada após o trânsito em julgado da decisão a proferir sobre o recurso de constitucionalidade.».
A reclamação dos recorrentes assenta nuclearmente na ideia de que, sendo a prescrição uma questão prévia ao conhecimento do recurso, por dela poder resultar a inutilidade deste (artigo 78.º-B, n.º 1, da LTC), não deve o recurso ser apreciado e decidido sem que haja decisão definitiva sobre tal matéria.
Sendo inquestionável que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a prescrição do procedimento criminal e que uma decisão pela instância competente, nesse sentido, seja em que momento for, deixará salvaguardada a posição do arguido, apenas cumpre apreciar se, de facto, a mera invocação pelo arguido de tal causa de extinção do procedimento criminal deve implicar necessariamente, seja em que circunstância for, a suspensão da instância de recurso até que haja pronúncia definitiva sobre tal questão pelo tribunal competente.
Deve começar por dizer-se que a mera invocação da possível prescrição do procedimento criminal não é uma questão prévia que o tribunal deva conhecer com precedência sobre todas as demais, configurando-se antes como uma mera questão prejudicial que poderia conduzir, caso o tribunal competente viesse a verificar a prescrição, à inutilidade superveniente do recurso.
Importa, por outro lado, ter em atenção que a norma do n.º 1 do artigo 78º-B da LTC – em correspondência com o que estabelece o artigo 700º do CPC para o processo civil - limita-se a definir os poderes do relator no âmbito do julgamento do recurso, elencando o conjunto de matérias em que o relator pode decidir independentemente da intervenção da secção ou da conferência a que se refere o artigo 78º-A, n.º 3, da LTC.
A circunstância de essa disposição incluir entre os poderes do relator a baixa dos autos para conhecimento de questões de que possa resultar a inutilidade superveniente do recurso, não significa que o processo já pendente no Tribunal Constitucional deva imperativamente baixar à instância sempre que qualquer das partes entenda que existem novos factos que eventualmente possam neutralizar o efeito útil da decisão a proferir.
Essa é apenas uma norma de competência, que não obsta a que o relator mantenha o poder de direção do processo, pelo qual lhe incumbe deferir os termos do recurso até final.
A pretendida baixa do processo para que o tribunal de primeira instância possa indagar se se encontra prescrito o procedimento criminal corresponde a uma situação de suspensão da instância de recurso que necessariamente deverá pautar-se pelos princípios gerais que decorrem do artigo 276º do CPC. Nos casos de suspensão legal, como aqueles que estão elencados nas alíneas a), b) e d) do n.º 1 desse artigo 276º, o juiz tem o dever de ordenar a suspensão, verificado que seja o evento a que a lei atribui efeito suspensivo. Fora desses casos o juiz tem o poder de suspender a instância, quando entenda que há motivo justificado para tomar essa medida, sendo essa a situação versada na alínea c) desse preceito (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 265).
A suspensão da instância por iniciativa do tribunal apenas se justifica quando os autos indiciem já com suficiente segurança a ocorrência de factos que poderão determinar a inutilidade superveniente do recurso, e só nessa circunstância é que faz sentido que o relator use a competência que lhe é conferida pelo n.º 1 do artigo 78º-B da LTC, em ordem a evitar que venha a ser proferida decisão a que não possa atribuir-se um efeito útil.
No caso vertente, como já resulta da decisão sumária reclamada, seria inteiramente contrário ao princípios da economia e da celeridade processuais, que o relator sobrestasse na decisão a proferir e remetesse o processo ao tribunal competente para que este se pronuncie sobre a alegada prescrição de alguns dos crimes pelos quais os recorrentes foram condenados, quando essa não é uma matéria de primeira evidência mas antes uma questão de indagação complexa, que, além do mais, apenas poderia redundar, em caso de eventual decisão favorável por parte do tribunal de instância, numa inutilidade parcial do recurso.
Acresce que a suspensão da instância de recurso, nestas circunstâncias, tem objetivamente um efeito dilatório, acarretando o risco efetivo de verificação da prescrição em relação àqueles ou outros dos crimes imputados, pelo simples efeito do decurso do tempo que seria necessário à apreciação da questão prejudicial. Além de que, como também se sublinhou na decisão reclamada, o Tribunal ficaria impedido de dar seguimento ao recurso sempre que os recorrentes viessem a suscitar essa mesma questão, repetidamente, protelando indefinidamente o andamento do processo.
Como é de concluir, o uso da competência prevista no n.º 1 do artigo 78º-B da LTC constitui uma mera faculdade do relator, que se justificaria utilizar quando pudesse constatar-se, numa análise perfunctória, a ocorrência de factos que pudessem impedir o prosseguimento do recurso e a tal não obstassem outras considerações atinentes à economia e celeridade do processo.
Não há motivo, por isso, para alterar o julgado.
Reclamação do recorrente B.
O reclamante B. sujeitou à apreciação do Tribunal Constitucional quatro questões de inconstitucionalidade, que o relator decidiu não conhecer, impugnando, pelo presente incidente, a decisão sumária apenas na parte em que não conheceu da questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 358.º e 359.º do CPP, na interpretação segundo a qual «constitui alteração não substancial dos factos o aditamento à acusação e à pronúncia (e, por arrastamento, a sua inclusão na sentença) de factos que preenchem um elemento do tipo legal de crime não constantes dessas peças processuais», por violação das garantias de defesa do arguido, da estrutura acusatória do processo e artigo 32.º, nºs. 1 e 5, da CRP.
Transitou, pois, a decisão sumária, no que respeita às demais questões de inconstitucionalidade, pelo que apenas cumpre apreciar se o recurso deve prosseguir para apreciação de mérito da única questão de inconstitucionalidade cuja decisão de não conhecimento foi impugnada.
O relator considerou que a decisão recorrida não aplicou as normas dos artigos 358.º e 359.º do CPP, na dimensão normativa sindicada, pelo que não havia utilidade na apreciação do recurso.
Sustenta o reclamante, no essencial, que, independentemente do que no acórdão recorrido se afirma quanto à adoção do entendimento normativo em causa, a verdade é que «a coberto da afirmação de que ‘se na acusação e pronúncia se imputava a oferta de uma vantagem (que é elemento do tipo), não se vê por que é que a concretização dos factos que integram tal espécie possam ser vistos como uma alteração de factos’, o douto acórdão recorrido sancionou, (…) sem qualquer dúvida, uma alteração, dita não substancial, dos factos e deu cobertura à inclusão na sentença de factos que considerou preencherem aquele requisito do tipo e que não estavam descritos nem na acusação nem na pronúncia».
Vejamos se assim é.
Lê-se no acórdão recorrido, nas passagens em que se aprecia o que ora reclamante invocou, a propósito, na motivação do recurso, o seguinte:
«(…) os arguidos apenas se insurgem contra a alteração, no que diz respeito aos crimes de corrupção desportiva ativa, por considerarem que o seu conteúdo implica uma verdadeira alteração substancial dos factos. Tal alteração substancial teria resultado, a seu ver, de se ter introduzido no objeto do processo ‘a única contrapartida que o Coletivo considerou integrar a ‘vantagem’ que constitui o elemento típico do crime de corrupção ativa’.
Ora, os arguidos – quanto ao crime de corrupção desportiva ativa – foram condenados pelo mesmo crime de que foram acusados, cometidos nas mesmas condições e de acordo com o procedimento descrito na acusação, pelo que não se entende a razão da alegação dos arguidos, quando dizem que foram condenados por ‘crime diverso’.
Não é efetivamente verdade que tenham sido condenados por crime diverso, pois nem sequer o foram pelo mesmo crime, cometido de forma ou circunstâncias diversas, pelo que não tem razão de ser a crítica dos arguidos à decisão recorrida.
O facto histórico foi exatamente o mesmo, como decorre, desde logo, da circunstância de os recorrentes se terem limitado a alegar, em termos genéricos, que houve alteração do facto histórico, sem explicitar em que termos, isto é, que aspetos da realidade (que factos concretos) foram introduzidos nos processos, para deixarmos de estar no mesmo facto indiciado na pronúncia.
Como de resto alegam os arguidos/recorrentes, ‘uma alteração dos factos só não é substancial se não modificar os elementos estruturais do crime imputado ao arguido, os elementos que conferem identidade ao crime e ao objeto do processo’ (…).
É a situação dos autos, pois a identidade do crime e do objeto do processo manteve-se inalterada (o mesmo facto histórico, na sua unidade relacional entre os arguidos e os árbitros, no mesmo quadro jurídico que integra a previsão do crime imputado na pronúncia). Uma leitura atenta das alegações mostra que os arguidos nem sequer destacam quais os factos aditados e em que medida os mesmos não estão compreendidos nos factos da pronúncia. Ora, se na acusação e na pronúncia se imputava a oferta de uma vantagem (que é elemento do tipo), não se vê porque é que a concretização dos factos que integram tal espécie possam ser vistos como uma alteração dos factos.
Considerar que não há alteração substancial dos factos, nestas circunstâncias, não viola a estrutura acusatória do processo, pois o arguido foi condenado pelos factos descritos na acusação, ainda que tais factos tenham sido melhor caracterizados na fase do julgamento.»
Decorre do acima transcrito, com toda a evidência, que o acórdão recorrido não considerou, desde logo, estarem omissos da acusação e da pronúncia os factos integrativos do tipo criminal por que o arguido, ora reclamante, foi condenado; o que, ao invés, se considerou, em termos insindicáveis pelo Tribunal Constitucional, é que «a identidade do crime e do objeto do processo manteve-se inalterada (o mesmo facto histórico, na sua unidade relacional entre os arguidos e os árbitros, no mesmo quadro jurídico que integra a previsão do crime imputado na pronúncia», tendo-se limitado a decisão da primeira instância a concretizar os factos já descritos na acusação, designadamente a imputada oferta de uma vantagem, que é elemento do tipo, melhor caracterizando-os.
Ora, analisando o objeto do recurso, no que respeita à interpretação em apreciação, verifica-se que a sua delimitação é feita, não por referência à concretização de factos que, preenchendo os elementos do tipo, já constavam da acusação e da pronúncia, ou à sua melhor caracterização, mas por referência aos «factos que preenchem um elemento do tipo legal de crime», que se pressupõe terem sido omitidos na acusação e na pronúncia, numa alusão clara ao facto histórico essencial, que se assume ter sido inovatoriamente aditado ao objeto do processo.
O que o reclamante sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional é, na verdade, o que defende ter ocorrido nos autos (alteração substancial de factos), compondo o objeto do recurso de modo que a dimensão normativa se conforme com a sua verificação.
Mas não sendo essa a interpretação efetivamente acolhida no acórdão recorrido, como acima demonstrado, não é de conhecer o objeto do recurso, confirmando-se, em consequência, o que sumariamente se decidiu.
Reclamação do recorrente C.
O recorrente, ora reclamante, sujeitou à apreciação do Tribunal Constitucional, entre outras, as seguintes questões de inconstitucionalidade:
1) Artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, interpretado no sentido de que «pratica o crime ali previsto e punido o titular de cargo político que tendo tomado a decisão mais adequada e justa num processo concursal mesmo que também motivado pelo facto de a proposta vencedora ser de um filho de um seu conhecido», por violação dos princípios da subsidiariedade e proporcionalidade consagrados nos artigos 2.º e 18.º da Constituição;
2) Artigo 127.º do CPP, interpretado «com o alcance de que ao julgador é lícito dar como provados factos com base em presunções de presunções e formular presunções sem ser com base numa pluralidade de indícios concordantes e sem prova direta que se lhe oponha», por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 3, e 32.º, nºs. 1 e 2, da CRP;
3) Artigo 127.º do CPP, interpretado no sentido de que «esta disposição autoriza (…) que a prova de determinado facto [seja] feita, exclusivamente, através de uma conversa telefónica intercetada e gravada sem necessidade de submissão da mesma à interação com outros factos adquiridos por prova direta, permitindo, então, deduções ou interpretações conjugadas no plano autorizado pelas regras da experiência, para afirmação da prova de um determinado facto», por violação dos artigos 2.º e 32.º, nºs. 1 e 2, da CRP;
4) Artigos 382.º e 386.º, n.º 1, alínea c), do CP, e 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de abril, interpretados «no sentido de que um membro do Conselho de Arbitragem da F.P.F., ao nomear ou propor a nomeação de árbitros para um jogo de futebol atua enquanto «funcionário» e no uso de poderes públicos ou de autoridade», por violação dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 46.º, n.º 2, da CRP;
Decidiu o relator não conhecer das enunciadas questões de inconstitucionalidade por não estar em causa interpretação da lei mas, ou a subsunção dos factos provados à sua previsão típica (1) e (4), ou o julgamento da matéria de facto (2) e (3), que não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, sendo que, a acrescer a tal razão de não conhecimento, se considerou ainda, relativamente a estas duas últimas questões de inconstitucionalidade, ser inútil o seu conhecimento pois que, ainda que versassem interpretações normativas, o Tribunal recorrido não as acolheu como ratio decidendi, e, quanto à enunciada sob o n.º 4, não ter sido observado o ónus de prévia suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como imposto pelas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 2, da LTC.
Invoca o reclamante, em síntese, a dimensão normativa do objeto do recurso, nessa parte, resultando os contornos aparentemente particulares em que tais questões de inconstitucionalidade foram enunciadas da circunstância necessária de terem sido suscitadas no contexto do recurso da decisão da primeira instância, que, dessa forma, se impugnou, mas por razões que, na essência, se prendem, no que releva para o presente recurso, com a inconstitucionalidade das normas sindicadas, na interpretação que delas foi efetivamente acolhida pelo Tribunal da Relação.
Não tem, contudo, razão.
É que, independentemente dos princípios constitucionais invocados e da forma aparentemente normativa como vêm enunciadas tais questões de inconstitucionalidade, a verdade é que o que o reclamante nuclearmente reputa inconstitucional, e como tal pretende ver declarado, é, no que respeita ao primeiro núcleo de questões (1) e (4), a subsunção dos factos provados nos tipos criminais consagrados nos artigos 11.º da Lei n.º 34/87 e 382.º do CP, e não as respetivas normas incriminatórias ou qualquer interpretação, de alcance geral e abstrato, que delas se tenha extraído, de acordo com os critérios legais a que está sujeito o processo hermenêutico (artigo 9.º do CC), sendo disso demonstrativo que se integre no objeto do recurso, no que às mesmas respeita, a concreta factualidade em discussão nos autos e não elementos integrativos da fattispecie das referidas normas legais ou a sua estatuição sancionatória.
Ora, sendo o recurso de constitucionalidade um instrumento de fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas, ainda que interpretadas em determinado sentido, e não do que, em sua aplicação, se decidiu no caso concreto, em sua apreciação, não é, pois, possível conhecer, nesta parte, o objeto do recurso, como sumariamente decidido.
Não é possível conhecer, pela mesma razão, das questões de inconstitucionalidade enunciadas a propósito do artigo 127.º do CPP, pois que, independentemente do contexto processual em que foram suscitadas, têm essencialmente por objeto o erro de julgamento, por incorreta aplicação da norma do artigo 127.º do CPP, cuja inconstitucionalidade não vem, na verdade, questionada.
De facto, parametrizando o citado normativo legal, por apelo às «regras da experiência comum» e à «livre convicção» do julgador, a forma como, em regra, a prova deve ser apreciada, não se vê como nele literalmente se descortine o sindicado entendimento de que seja permitido ao julgador dar como provados factos com base em presunções de presunções e formulá-las sem base indiciária concordante e sem prova direta que se lhe aponha; do mesmo modo, considerar que a norma do artigo 127.º do CPP autoriza que a prova de determinado facto seja feita exclusivamente através de uma conversa telefónica sem necessidade de submissão à interação com outros factos adquiridos por prova direta, para além de impressivamente reportar o que o recorrente, e só ele, considera ter ocorrido no individualíssimo contexto dos concretos autos em que foi condenado, é sustentar o que não se contém no contexto literal da sindicada fonte interpretativa, pelo que, num e noutro caso, não está efetivamente em causa uma interpretação da lei (artigo 9.º do Código Civil) mas, e tão só, a subsunção dos factos provados ao direito e a errada apreciação que, segundo o recorrente, o tribunal fez das provas produzidas, dando por provados factos sem base probatória suficiente.
O reclamante integrou, ainda, no objeto do recurso, as seguintes questões de inconstitucionalidade:
- Artigos 187.º, 126.º e 379.º do CPP, interpretados «no sentido de que uma alteração legislativa que estabeleça critérios mais ‘apertados’ para a realização de ‘escutas telefónicas’, se ocorrida após a realização das mesmas, é irrelevante para efeitos de aferição da sua validade como meio de prova a ser utilizado na fase de julgamento», por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 1, e 29.º, n.º 4, da CRP;
- Artigos 412.º, n.º 6, e 428.º do CPP, interpretados no sentido de que «o Tribunal de recurso, embora com poderes para modificar a matéria de facto, apenas pode considerar inválida a convicção do Tribunal ‘a quo’ quando a mesma seja impossível ou arbitrária, ou não tenha a menor plausibilidade», por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Considerou a decisão sumária em reclamação que o recorrente não observou, como lhe competia, o ónus de prévia e adequada suscitação de tais questões de inconstitucionalidade, carecendo, por isso, de legitimidade para interpor o presente recurso.
No que respeita à questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 187.º, 126.º e 379.º do CPP, na dimensão sindicada, sustentou-se, em particular, que o recorrente, em sede de motivação do recurso interposto no Tribunal da Relação, «não delimitou positivamente, com o grau de rigor e clareza exigível (…) a concreta interpretação que, tendo por fonte os citados preceitos legais, reputava (…) inconstitucional», pelo que o Tribunal recorrido a não apreciou.
Procurando explicitar os termos em que a questão foi apresentada na motivação de recurso para a Relação, alega agora o reclamante, em síntese, o seguinte:
Partindo da norma do artigo 5º do CPP, o que o reclamante veio invocar foi que os artigos 126.º e 379.º desse diploma interpretados no sentido de que era admissível utilizar a prova obtida através de escutas autorizadas ao abrigo de determinada redação do artigo 187.º, quando, entretanto, havia entrado em vigor uma nova redação desse preceito que fixava requisitos mais ‘apertados’ para a sua realização, são inconstitucionais, por violação dos artigos 2.º, 18.º/2 e 29.º/4 da Lei Fundamental.
Transcreve, em demonstração, a parte inicial da conclusão 62.º da motivação do recurso, onde, na sequência do que havia sustentado na conclusão 59.º, afirmou: «a situação não se altera pelo facto de as ‘escutas’, no momento em que foram autorizadas, o terem sido licitamente e com cumprimento das formalidades exigidas. Se depois disso, o regime jurídico que as autorizava é revisto em sentido favorável ao arguido, é à luz do novo regime que há de procurar-se a sua legalidade para efeitos de utilização como método de prova, sob pena de flagrante atropelo dos princípios constitucionais-penais plasmados nas normas já referidas».
Ora, o certo é que em nenhum momento, na motivação do recurso para a Relação ou nas suas conclusões, o reclamante colocou a questão de constitucionalidade nos termos que alega agora ter utilizado. Na motivação de recurso, sustentou ter ocorrido a nulidade de sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP por o tribunal não ter equacionado e tomado posição sobre o impacto da alteração introduzida no artigo 187º, limitando-se a dizer com relevo, no que respeita à identificação da questão de constitucionalidade e referindo-se a esta última norma, o seguinte:
Com efeito, estamos perante uma norma limitativa de um direito fundamental com garantia constitucional (artigo 34º/4 da CRP) inserido no programa de direitos, liberdades e garantias estabelecido na Constituição da República Portuguesa. Pelo que, a sua aplicação está subordinada a todos os princípios de aplicação da lei penal no tempo. Nomeadamente, ser-lhe-á aplicável o princípio da aplicação retroativa do direito penal mais favorável ao arguido.
Se assim não acontecer, estaremos perante uma interpretação do disposto nos artigos 187º, 126º e 379º do CPP em desconformidade com o texto constitucional, nomeadamente com o estatuído nos artigos 2º, 18º/2, 29º/4, que acarretará a inconstitucionalidade material daquelas disposições da lei ordinária.
E foi essa mesma explanação que o reclamante efetuou nas conclusões 58º e 59º, verificando-se assim que, tal como sublinhou o relator na decisão sumária reclamada, apenas se reputa inconstitucional interpretação contrária à propugnada, sem, contudo, a concretizar, sendo para o caso indiferente que o reclamante pretendesse referir-se ao artigo 187º ou ao conjunto de artigos constituído por essa disposição e as dos artigos 126º e 379º, visto que em qualquer dos casos não foi cumprido o ónus de suscitação.
O recorrente não observou, pois, pela forma processualmente adequada, o ónus de suscitação previsto nas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, o que inviabiliza o conhecimento, nessa parte, do objeto do recurso.
Considerou-se, por outro lado, quanto à questão de inconstitucionalidade referente à interpretação das normas dos artigos 412.º, n.º 6, e 428.º do CPP, que o recorrente não a suscitou, pelo menos pela forma processualmente correta, nem na motivação do recurso para o Tribunal da Relação, nem na resposta ao parecer do Ministério Público, tendo-o feito intempestivamente no incidente pós-decisório (arguição de nulidade e aclaração) que deduziu, pois que, estando em causa a inconstitucionalidade de normas aplicadas na decisão do recurso, já se havia esgotado o poder jurisdicional do Tribunal recorrido para apreciar tal questão, sendo, ademais, inútil a sua apreciação, pois que a específica dimensão normativa cuja inconstitucionalidade vem questionada não determinou o sentido da decisão, que operou, na verdade, uma autónoma reavaliação da prova produzida em termos que implicaram, nessa parte, a procedência parcial do recurso.
Reconhecendo que não suscitou a questão de inconstitucionalidade em causa nas peças processuais que precederam a prolação do acórdão recorrido, defende o reclamante que não teve, para tanto, oportunidade lógica (estão em causa normas que, regulando os poderes de conhecimento do tribunal superior, não faria sentido questioná-las, na perspetiva da sua conformidade constitucional, em relação à decisão da primeira instância) e cronológica (trata-se de interpretação que, por insólita e inesperada, o reclamante não poderia ter previsto), pelo que, estando desonerado de a suscitar e sendo útil a sua apreciação, deve o recurso prosseguir com vista ao seu conhecimento de mérito.
Não tem, contudo, mais uma vez, razão.
É que a oportunidade cronológica não se afere apenas em função do que vem decidido pela primeira instância mas também do que vai ser decidido pela Relação, pelo que, tendo o reclamante impugnado a decisão da matéria de facto, era no recurso que deveria ter invocado a inconstitucionalidade das normas que regulam os respetivos poderes de conhecimento pelo tribunal de recurso, e não depois.
Por outro lado, uma coisa é a incorreção jurídica de dado entendimento da lei, e outra, que nela não vem necessariamente implicada, a sua imprevisibilidade. Ora, independentemente do acerto da preposição interpretativa que o recorrente afirma ter sido acolhida, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, não estamos perante uma interpretação da lei que, no contexto doutrinal e jurisprudencial atual, possa ser qualificada de insólita ou inesperada.
Com efeito, não podendo ignorar-se que o julgamento em primeira instância da matéria de facto beneficia de um imediatismo irrepetível nas instâncias de recurso, pese embora o registo dos depoimentos testemunhais, não é insólito, ou desprovido de sentido, considerar que o Tribunal de recurso afira da correção do julgado em matéria de facto, que lhe compete reapreciar, em função dos critérios de plausibilidade que o próprio artigo 127.º do CPP, ao referir-se às regras das experiência comum, enuncia como critério de apreciação da prova, verificando se foi dado correto uso, pela instância recorrida, ao poder-dever regulado pelo citado normativo legal.
Por outro lado, não sendo exigível à parte, para efeitos de observância do ónus de suscitação, que antecipe os termos literais em que as instâncias interpretam dado normativo legal, mas e tão-só que invoque perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade da norma aplicável, ainda que em determinado sentido interpretativo, não se vê como não fosse exigível ao recorrente antecipar a aplicação, pelo Tribunal recorrido, do critério normativo ínsito na interpretação em causa, tanto mais que demonstrou, pela vasta jurisprudência citada, estar ciente da maior ou menor latitude com que os tribunais superiores têm interpretado os poderes legais que lhe são conferidos em matéria de conhecimento da matéria de facto.
De modo que, independentemente da questão de saber se o Tribunal recorrido efetivamente adotou, ou não, um tal entendimento da lei, o recorrente carece de legitimidade para interpor, nessa parte, o presente recurso de constitucionalidade, sendo certo que, podendo e devendo fazê-lo, não suscitou a questão de inconstitucionalidade antes da prolação do acórdão recorrido, como, aliás, reconhece.
Decidiu, ainda, o relator, não conhecer da inconstitucionalidade da norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, interpretada «no sentido de que «o mandato perdido pode ser outro que não aquele durante o qual foram praticados os factos que constituíram objeto da condenação».
Invocou-se, em fundamento, o facto de o recorrente sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional, por delimitação negativa, «uma pluralidade indeterminada de hipóteses interpretativas, pois que (…) não indica qual, em concreto, o sentido interpretativo da expressão legal «perda de mandato» que reputa inconstitucional, antes se referindo difusamente a todos «os outros» ou «diferentes» mandatos que não aquele durante o qual foram praticados os factos que constituíram objeto de condenação ou mandato subsequente a esse», o que, por indeterminado, inviabiliza a formulação de um juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade objetivamente delimitado, a que acresce que uma tal interpretação, com tal excessiva amplitude, não constitui fundamento normativo da decisão recorrida, o que, por inutilidade, sempre prejudicaria o seu conhecimento.
Sustenta o reclamante, ao invés, que o objeto do recurso não padece da imputada indeterminação, pois «resulta de forma clara do invocado (…) que se a norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87 for interpretada no sentido de que ‘respetivo mandato’ é o mandato exercido à data da prática dos factos, ela é constitucional [e] que se a norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87 for interpretada no sentido de que ‘respetivo mandato’ é outro mandato que não o exercido à data da prática dos factos, ela é inconstitucional», concluindo que «perante tal alegação, só há duas dimensões interpretativas possíveis, por muitos mandatos que se possam suceder na realidade», tendo o acórdão recorrido optado pela interpretação que fere a norma de inconstitucionalidade, que, por isso, deve ser apreciada.
Sucede que não releva, para efeitos de conhecimento do recurso, que o recorrente delimite claramente qual a norma ou interpretação que considera conforme à Constituição; estando em causa, no recurso de constitucionalidade, aferir da inconstitucionalidade das normas aplicadas pelos tribunais, é na delimitação destas últimas que se impõe particular grau de exigência, submetendo-se à apreciação do Tribunal Constitucional o preciso critério normativo que se reputa violador das normas e princípios constitucionais.
Ora, no caso vertente, o que ressalta claro do requerimento de interposição do recurso, única peça processual relevante na delimitação do objeto do recurso, é a interpretação que o recorrente considera como sendo a única compatível com a Lei Fundamental, não sendo, contudo, a sua enunciação contraposta, nos moldes em que o foi, bastante para delimitar positivamente a dimensão normativa que se reputa violadora da Lei Fundamental.
De facto, ao sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, interpretada «no sentido de que o mandato perdido pode ser outro que não aquele durante o qual foram praticados os factos que constituíram objeto da condenação», o que pretende o recorrente é simplesmente ver apreciada a inconstitucionalidade de interpretações diferentes da propugnada, sejam elas quais forem, o que não se compadece com a formulação objetivamente determinada de um juízo de inconstitucionalidade.
Por outro lado, mesmo que considerasse estar em causa a própria inelegibilidade do arguido para futuros mandatos ou a sua incapacidade eleitoral passiva, por efeito da condenação, a verdade é que, tal como se afirma na decisão ora em reclamação, nada se decidiu quanto a tal aspeto, resultando do acórdão recorrido apenas que a perda de mandato se reporta à data em que a decisão condenatória foi proferida, ou do respetivo trânsito em julgado, sendo, pois, esta a exclusiva, e não sindicada, dimensão normativa com que o tribunal recorrido aplicou a norma do artigo 29.º da referida Lei n.º 34/87.
É, pois, de confirmar, também nessa parte, o que sumariamente se decidiu.
Não se conforma o recorrente, por outro lado, com o não conhecimento da questão de inconstitucionalidade dos artigos 187.º e 126.º, n.º 3, do CPP, interpretados «no sentido de que – nos casos em que as escutas são autorizadas para investigação de um crime de ‘catálogo’, previsto nas diversas alíneas daquele n.º 1 e se conclui, na respetiva decisão final, que esses mesmos factos que justificaram tal autorização, integram, afinal, um crime punível com pena máxima não superior a três anos de prisão e, como tal, não previsto nessas alíneas – é legalmente admissível a valoração da prova obtida através de escutas telefónicas», por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, e 31.º, nºs. 1 e 4, da CRP.
A decisão sumária fundamenta-se, nesse particular, na seguinte ordem de considerações:
«(…) verifica-se que o recorrente (…) omitiu na delimitação do objeto do recurso aspetos interpretativos que condicionaram determinantemente a decisão recorrida, no que respeita à validade das escutas telefónicas para prova, no mesmo processo, de crimes não previstos no catálogo do artigo 187.º do CPP, inexistindo, pois, integral correspondência entre a lata interpretação normativa que o recorrente sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional e aquela, mais restrita, que o Tribunal recorrido efetivamente acolheu para decidir como decidiu.
Na verdade, condicionou-se a validade das escutas telefónicas, para aquele efeito, à existência, à data em que foram autorizadas, de indícios suficientes da prática de um crime de catálogo, justificativos, por isso, de acusação (e pronúncia), sendo, pois, esse o patamar processual mínimo que, na perspetiva do Tribunal recorrido, deve ser alcançado para o efeito de ‘considerar justificada a intromissão na esfera da vida privada que a escuta representa’, por «esta(r) demonstrado que (o crime de catálogo) não foi utilizado como fundamento aparente da legitimação da escuta’, a que acresce a circunstância, então também ponderada e ora igualmente omitida, de o crime de catálogo subsistir no processo com a condenação, pela sua prática, de um comparticipante.
De modo que, não constituindo a interpretação sindicada, tal como amplamente formulada no presente recurso, critério efetivamente usado pela decisão recorrida, como acima sumariamente se demonstrou, se revela inútil apreciar, como pretende o recorrente, da sua inconstitucionalidade.».
Invoca o recorrente, em síntese, que, aquando da motivação do recurso, suscitou a inconstitucionalidade das «normas dos artigos 187.º e 126.º do CPP quando interpretadas conjugadamente no sentido de que as escutas licitamente autorizadas, para prova de um crime de catálogo, podem ser admitidas para prova de um crime fora de catálogo», diferenciando, pois, «o momento de autorização da escuta e a aferição da respetiva licitude do momento da aferição da admissibilidade da prova assim obtida», concentrando apenas neste segundo momento o fundamento da inconstitucionalidade invocada, pelo que, independentemente das questões atinentes à licitude da autorização das escutas, que não estão em apreciação, deve tal interpretação ser objeto de apreciação porque efetivamente acolhida pela decisão recorrida.
Contudo, a admissibilidade da valoração das provas obtidas através de escutas telefónicas para prova de um crime fora de catálogo, na perspetiva interpretativa do tribunal recorrido, dependia precisamente do facto de, por um lado, o arguido ter sido acusado e pronunciado pela prática de um crime de catálogo, havendo, pois, «um reforço indiciário bastante que comprova que a autorização das escutas telefónicas não assentou em pressupostos fácticos fraudulentos (apresentando-se como crime de catálogo, para esse efeito, o que de antemão se sabia não o ser)» e, por outro, da circunstância de um dos coarguidos vir a ser efetivamente punido pela prática de um crime de catálogo, o que revelaria «a conexão histórica ou circunstancial existente entre os factos que integram uma tal ação típica e aqueles que suportaram a condenação do arguido pela prática de um crime fora de catálogo, assim legitimando o uso de escutas telefónicas, no mesmo processo, para prova de uns e outros», como se destaca na decisão sumária ora em reclamação.
Essa constatação resulta com evidência de diversas passagens do acórdão recorrido, designadamente quando, depois de se afirmar que «não está necessariamente afastada a possibilidade de um crime do catálogo poder justificar as escutas e, mais tarde, esse crime ser abandonado», se acrescenta o seguinte:
A nosso ver, se o crime do catálogo atingir a fase de acusação, está demonstrado que não foi utilizado como fundamento aparente da legitimação da escuta.
Julgamos que é quanto basta, pois o que importa é considerar justificada a intromissão na esfera da vida privada que a escuta representa. Essa intromissão, fundada em indícios suficientes para justificar a acusação, mostra que não houve manipulação do seu uso.
[…]
No caso dos autos houve pronúncia por um crime de catálogo, estando pois demonstrado que a qualificação de crime do catálogo para justificar as escutas se mostrava (nessa ocasião) fundamentada.
Só depois do julgamento mudou a qualificação jurídica.
Portanto, as razões jurídicas que justificaram as escutas eram válidas e o “crime de catálogo” foi bastante para suportar uma acusação e pronúncia.
A que se acrescenta ainda, para extrair a mesma conclusão, a seguinte ordem de considerações:
Ora, sendo este arguido [B.] “o principal protagonista da trama que motivou a existência do presente processo, é inquestionável que dessa circunstância terão de se extrair outras consequências. Há, relativamente a estes crimes, inequivocamente de catálogo que fazem parte da mesma história de vida dos crimes de abuso de poder pelos quais o recorrente veio a ser condenado, óbvia conexão entre os mesmos, nos termos e para os efeitos do artigo 24º do CP.
Ou seja, no âmbito da mesma investigação, os factos praticados pelo arguido C. - que foi condenado como cúmplice relativamente aos crimes cometidos por B. – estão conexionados com os factos praticados por outros arguidos, tendo havido condenação pela prática de crimes de catálogo. Assim sendo e estando como parece certo no âmbito de conhecimentos de investigação, a verdade é que apesar de tudo subsistiu a condenação por vários crimes do catálogo que justificaram as escutas e investigação de todos os factos conexos.
Do exposto decorre que consideramos lícita a recolha e valoração das provas obtidas mediante as escutas telefónicas, improcedendo as conclusões 84º a 94ª.
É assim claro que a dimensão normativa aplicada pelo tribunal recorrido é diversa e mais complexa do que aquela que o recorrente identificou como constituindo o objeto do recurso de constitucionalidade, visto que o tribunal não se limitou a valorar a prova obtida através de escutas para investigação de crime de catálogo para efeito de condenação por crime fora do catálogo, antes admitiu como lícita essa valoração quando ocorram determinados outros fatores, como seja a circunstância do arguido ter sido acusado e pronunciado por um crime de catálogo e ter sido condenado por factos que estão conexionados com aqueles pelos quais outros arguidos foram condenados por um crime de catálogo.
E ao contrário do que poderia sugerir a terminologia usada na decisão sumária reclamada, não é possível sequer, neste condicionalismo, operar a redução da interpretação normativa que o recorrente indicou como constituindo o objeto do recurso, pela linear razão de que a interpretação sindicada é distinta da que foi aplicada e corresponde, de resto, a uma interpretação que o tribunal recorrido prima facie afastou. O tribunal recorrido apenas aceitou valorar a prova por efeito da intercorrência de outros elementos que integram a dimensão interpretativa que foi efetivamente aplicada em relação às normas dos artigos 187º e 126º do CPP.
É, pois, de confirmar, também no que respeita à enunciada questão de inconstitucionalidade, o que sumariamente se decidiu.
Finalmente, sustenta o reclamante, no que respeita à única questão de inconstitucionalidade de que sumariamente se tomou conhecimento, por remissão para anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 274/90), não estarem verificados os pressupostos de que depende a aplicação do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
A questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, interpretada no sentido de que a perda de mandato é um efeito automático da condenação, não constitui, na sua perspetiva, «questão de decisão simples», para o efeito do citado n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, por controvertida, considerando, por um lado, os três votos de vencido exarados no Acórdão n.º 274/90, para que a decisão sumária remeteu, e, por outro, a vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional que, em uníssono, tem julgado inconstitucional, por força do parâmetro constitucional ora em apreciação (artigo 30.º, n.º 4, da CRP), diversas normas legais (Acórdãos nºs. 16/84, 282/86, 202/00, 176/00, 304/2003, 154/2004), sendo que a norma em apreço foi já julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 27 de janeiro de 1998, proferido no processo 97P675) e, constituindo objeto do recurso julgado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 46/09, não mereceu uma apreciação sumária como aquela que ora se impugna.
Dispõe n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, na parte pertinente, que se o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal.
A simplicidade da questão, para o efeito previsto no citado normativo legal, afere-se, pois, em função da existência de decisão anterior do Tribunal, que a tenha por objeto, e não por ponderação da sua complexidade técnica ou do consenso jurisprudencial que, no seio do próprio Tribunal Constitucional ou dos tribunais comuns, a matéria tem merecido (cf., neste sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 349/06 e 205/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
De qualquer modo, e contrariamente ao que parece sustentar o reclamante, nenhum dos invocados acórdãos do Tribunal Constitucional consagra jurisprudência contrária à acolhida, por remissão para o Acórdão n.º 274/90, pela decisão sumária ora em reclamação.
Com efeito, sendo claramente distintas as normas julgadas inconstitucionais pelos invocados arestos (acórdãos nºs. 16/84, 282/86, 176/2000, 202/00, 304/2003 e 154/2004), não é justificada a conclusão, neles arrimada, de que o juízo de não inconstitucionalidade remissivamente formulado pelo relator está em dissonância com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, sendo certo que foi por ponderação, além do mais, da específica norma em causa e do concreto crime por ela acessoriamente sancionado que o Acórdão n.º 274/90, reiterado pelo Acórdão n.º 246/95, concluiu pela sua não inconstitucionalidade.
Por outro lado, não é possível extrair do Acórdão n.º 46/09, o único que tem por objeto a norma do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, o entendimento de que «a não inconstitucionalidade da norma só é pacífica se não for interpretada no sentido de dela decorrer a aplicação automática, por mero efeito da condenação, da pena acessória da perda de mandato».
De facto, analisando o respetivo teor, verifica-se que nele não se tomou qualquer posição quanto à inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade da norma em causa, pois que se considerou que «o acórdão recorrido não fez uma interpretação do referido preceito do art.º 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, em termos de a sanção nela prevista poder ser aplicada como efeito automático da condenação», sendo, na verdade, «bem explícita a posição do acórdão no sentido de a aplicação da sanção da perda do mandato autárquico não decorrer, automática e imediatamente, dos crimes», razão pela qual se julgou o recurso, nessa parte, improcedente.
Finalmente, a circunstância de o Acórdão n.º 274/90 datar de há cerca de vinte anos e conter declarações de voto – que o reclamante, sem lhes acrescentar qualquer novo argumento que justificasse a reponderação da questão, se limitou a reiterar –, não retira nem atualidade nem valia argumentativa às razões que então obtiveram vencimento, mantendo-se, como é o caso, substancialmente idênticos os parâmetros de constitucionalidade nele enunciados e a solução legal, à sua luz, ponderada.
Estão, pois, verificados os pressupostos de que, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, depende o julgamento sumário da questão de inconstitucionalidade em apreciação, mantendo o Tribunal a jurisprudência para que se remeteu.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir as reclamações deduzidas, nos presentes autos, pelos recorrentes B. e C..
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça, para cada um deles, em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 4 de junho de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes (com declaração anexa) – Gil Galvão (vencido, em parte, conforme declaração anexa).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho a fundamentação do acórdão relativamente ao não conhecimento da inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 187.º, 126.º e 379.º, do Código de Processo Penal, com base na falta de suscitação da questão, por entender que o modo como tal suscitação ocorreu ainda é funcionalmente adequada à convocação do tribunal “a quo” a exercer os poderes que lhe confere o artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa face às suas alternativas decisórias e, assim permitir o recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º e do n.º 2 do artigo 72.º da LTC. Acompanho, porém, a decisão de não conhecimento porque o recorrente não identificou, no requerimento para o Tribunal Constitucional, mesmo após o convite ao suprimento das deficiências, de modo claro e preciso o critério normativo utilizado na decisão da questão de aplicação da lei processual no tempo, que o recorrente não submete a escrutínio. Critério normativo este que, aliás, não é possível extrair, nem foi extraído pelo acórdão recorrido, dos preceitos legais indicados, exigindo a referência a outra fonte normativa respeitante à aplicação das leis no tempo.- Vítor Gomes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, mas apenas quanto à decisão de não conhecimento da questão de constitucionalidade dos artigos 187º e 126º, n.º 3, do CPP, interpretados «no sentido de que – nos casos em que as escutas são autorizadas para investigação de um crime de ‘catálogo’, previsto nas diversas alíneas daquele n.º 1 e se conclui, na respetiva decisão final, que esses mesmos factos que justificaram tal autorização, integram, afinal, um crime punível com pena máxima não superior a três anos de prisão e, como tal, não previsto nessas alíneas – é legalmente admissível a valoração da prova obtida através de escutas telefónicas», por violação dos artigos 18º, n.º 2, 26º, n.º 1, e 31º, nºs. 1 e 4, da CRP. Fi-lo por entender que, ao contrário do que se sustenta no presente acórdão, não se trata de norma diversa daquela que foi aplicada, como ratio decidendi, no acórdão objeto do recurso de constitucionalidade. Na verdade, as considerações efetuadas no presente acórdão podem relevar para uma decisão de fundo sobre o objeto do recurso, mas não para fundar uma decisão de não conhecimento assente na diversidade de norma aplicada. Aliás, se o Tribunal entendia que havia essa diversidade, por omissão de “aspetos interpretativos que condicionaram determinantemente a decisão recorrida”, estaríamos, então, em pleno, no campo de uma eventual delimitação do objeto do recurso, como o Tribunal sempre fez, e não no âmbito de uma decisão de não conhecimento por não ter sido aplicada, como ratio decidendi, a norma questionada.
Lisboa, 4 de junho de 2012.- Gil Galvão.