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Processo nº 29/00 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
1. - O Presidente da Assembleia de Freguesia de Bico, concelho de Paredes de Coura, requereu, convocando o disposto nos artigos 8º e 11º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, e a deliberação desse órgão autárquico tomada em sessão extraordinária de 16 de Janeiro do corrente ano, que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade e a legalidade do referendo a efectuar aos eleitores da freguesia 'sobre se sim ou não estão de acordo com a criação da Área Protegida do Corno do Bico'.
A pergunta a submeter aos cidadãos eleitores é formulada nos seguintes termos:
'Está de acordo com a criação da Área Protegida do Corno do Bico? Sim ou não'.
Juntou cópia da 'acta extraordinária nº 1', respeitante
à reunião da Assembleia de Freguesia ocorrida nesse mesmo dia 16 para deliberar sobre o ponto único da ordem de trabalhos: 'apreciação, discussão e deliberação sobre proposta apresentada pela Junta de Freguesia com o fim de pedido de realização de referendo local aos eleitores residentes referindo-se à criação da
Área Protegida do Corno do Bico'.
Consta do mesmo documento a presença de seis membros da Assembleia, tendo sido votada por unanimidade a proposta de apresentação do pedido ao Tribunal Constitucional.
2. - Não se detectam irregularidades processuais.
Com efeito, a proposta foi apresentada pelo órgão executivo da autarquia [artigo 8º, alínea a), da Lei nº 49/90]; a proposta contém uma única pergunta a submeter aos eleitores da freguesia de Bico (artigos
240º, nº 1, da Constituição da República, e 3º, nº 1, 4º e 9º, nº 1, da Lei nº
49/90); a deliberação sobre a realização da consulta foi tomada pela Assembleia de Freguesia por unanimidade e no prazo fixado legalmente (artigos 6º, nº 2, e
10º do mesmo diploma) e o requerimento do Presidente da Assembleia de Freguesia, dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional, datado de 18 de Janeiro e recebido na respectiva secretaria no dia 20, é tempestivo (nº 1 do artigo 11º daquele texto legal), e está acompanhado dos elementos a que se refere o nº 2 deste normativo.
Por sua vez, a presença de seis membros da Assembleia de Freguesia na reunião é bastante, dado ser de sete o número total de membros que a compõem, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 5º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, e o número de cidadãos eleitores residentes nesta freguesia (cfr. Eleições para os Órgãos das Autarquias Locais 1997, Lisboa, edição do STAPE).
3. - Nos termos do nº 1 do artigo 240º da Constituição da República (CR), na redacção resultante da IV Revisão Constitucional, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, '[a]s autarquias locais podem submeter a referendo dos respectivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competência dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer'.
Correspondendo o texto actual ao nº 3 do artigo 241º do anterior, vindo já da I Revisão Constitucional, deixou de exigir, necessariamente, a exclusiva competência dos órgãos autárquicos para qualificar as matérias susceptíveis de serem submetidas a referendo, como este Tribunal já teve oportunidade de ponderar, a partir do acórdão nº 390/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Novembro de 1998, cuja orientação se acolhe e segue.
Resta saber se, em consequência da alteração ocorrida no texto constitucional, se mantém hoje em vigor o disposto no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, na medida que exige para as consultas locais incidência sobre matéria da exclusiva competência dos órgãos autárquicos.
Sempre importa, no entanto – deixando aquela questão em aberto -, verificar se a matéria referendária se integra na competência dos
órgãos da autarquia.
II
1. - As autarquias locais, diz-nos o nº 2 do artigo 235º da CR, são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas.
Estes interesses, escreve-se no acórdão nº 398/99, inédito, não podem deixar de ser os interesses comuns dos cidadãos residentes na
área da autarquia, diferentes dos interesses nacionais e que também o podem ser relativamente aos de outras comunidades.
No tocante à defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de vida do respectivo agregado populacional, que esses mesmos interesses pressupõem, não poderá deixar-se de sublinhar que o cumprimento dos objectivos inerentes ao desenvolvimento de uma política de ambiente é constitucionalmente considerado como tarefa fundamental do Estado, que lhe incumbe levar a cabo [cfr. artigos 9º, alínea e), e 66º da CR].
Assim se compreendia, ao tempo da vigência do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, que se atribuísse às autarquias locais 'o que diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das respectivas populações', sem prejuízo da sua concretização se efectuar 'no respeito pelo princípio da unidade do Estado e pelo regime legalmente definido de delimitação e coordenação de actuações da administração central e local em matéria de investimentos públicos', elencando-se exemplificativamente, nas atribuições dos
órgãos autárquicos, 'a defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de vida do respectivo agregado populacional' [cfr., o nº 1 e alínea i) e o nº 2 do artigo 2º desse diploma]; na mesma linha, dispõem hoje os municípios de atribuições no domínio do ambiente e saneamento básico [alínea l) do nº 1 do artigo 13º da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro] e as freguesias no domínio do ambiente e salubridade [alínea h) do nº 1 do artigo 14º do mesmo texto], no quadro em que a descentralização de poderes tem por finalidade assegurar 'o reforço da coesão nacional e da solidariedade inter-regional e promover a eficiência e eficácia da gestão pública assegurando os direitos dos administrados' (nº 1 do seu artigo 2º).
Naqueles parâmetros constitucionais e no respeito pela sua observância, a Lei nº 11/87, de 7 de Abril – Lei de Bases do Ambiente – estabelece, como princípio geral, terem todos os cidadãos direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, incumbindo ao Estado, por meio de organismos próprios e por apelo a iniciativas populares e comunitárias, promover a melhoria da qualidade de vida, quer individual, quer colectiva (nº 1 do artigo 2º), visando a política do ambiente optimizar e garantir a continuidade de utilização dos recursos naturais, qualitativa e quantitativamente, como pressuposto básico de um desenvolvimento auto-sustentado
(nº 2 do artigo 2º).
Nesta tarefa devem participar os diferentes grupos sociais, intervindo na formulação e execução da política do ambiente e ordenamento do território, fazendo-o, como nos diz a alínea c) do artigo 3º do diploma em referência, através dos órgãos competentes da administração central, regional e local e de outras pessoas colectivas de direito público ou de pessoas e entidades privadas.
Sendo a paisagem um componente ambiental humano nos termos da Lei nº 11/87, de acordo com o nº 3, alínea a), do seu artigo 17º, para atingir os objectivos que o diploma se propõe, no que se refere à defesa da paisagem como unidade estética e visual, 'serão condicionados pela administração central, regional e local, em termos a regulamentar, a implantação de construções, infra-estruturas viárias, novos aglomerados urbanos ou outras construções que, pela sua dimensão, volume, silhueta, cor ou localização, provoquem um impacto violento na paisagem preexistente, bem como a exploração de minas e pedreiras, evacuação e acumulação de resíduos e materiais usados e o corte maciço do arvoredo' (nº 1 do artigo 18º).
Por sua vez, como instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território, prevê-se, além do mais, a classificação e criação de áreas, sítios ou paisagens protegidas, sujeitas a estatutos especiais de conservação [cfr., o nº 1, alínea c), do artigo 27º], podendo as áreas protegidas ter âmbito nacional, regional ou local, consoante os interesses que procuram salvaguardar, sendo da competência da administração central, regional ou local, ou ainda particular, a iniciativa da classificação e conservação de
áreas protegidas, de lugares, sítios, conjuntos e objectos classificados às mesmas competindo, consoante o âmbito, a regulamentação da respectiva gestão
(artigo 29º).
2. - No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei de Bases do Ambiente, o Decreto-Lei nº 19/93, de 23 de Janeiro, cometeu às autarquias locais e às associações de municípios a gestão das áreas protegidas, dispondo no nº 2 do seu artigo 4º que as áreas protegidas de interesse regional ou local são geridas pelas respectivas autarquias locais ou associações de municípios.
Prevendo diversas categorias de áreas protegidas de interesse nacional (parque nacional, reserva natural, parque natural e monumento natural), cuja gestão pertence ao Serviço Nacional de Parques, Reserva e Conservação da Natureza (SNPRCN), o diploma classifica como paisagem protegida as áreas protegidas de interesse regional ou local (cfr., artigos 2º, nºs. 3 e
4, e 4º, nº 1).
A paisagem protegida é definida como 'uma área com paisagens naturais, seminaturais e humanizadas, de interesse regional ou local, resultantes da interacção harmoniosa do homem e da Natureza que evidencia grande valor estético ou natural', tendo a classificação de paisagem protegida, por efeito, possibilitar 'a adopção de medidas que, a nível regional ou local, permitam a manutenção e valorização das características das paisagens naturais e seminaturais e a diversidade biológica' (artigo 9º, nºs. 1 e 2).
As áreas protegidas podem ser de âmbito nacional, sendo, nesse caso, a sua classificação feita por decreto regulamentar e obrigatoriamente precedida de inquérito público e audição das autarquias locais e dos ministérios competentes. (artigos 13º, nºs. 1 e 3, preceito integrado no capítulo II do diploma, relativo a 'Áreas protegidas de âmbito nacional').
As áreas protegidas de âmbito regional e local, classificadas, como se disse, de paisagem protegida, são igualmente constituídas por decreto regulamentar, após proposta do SNPRCN ao Ministro competente, mediante iniciativa, nesse sentido das autarquias locais e das associações de municípios (artigos 26º e 27º).
Pelo Decreto Regulamentar nº 21/99, de 20 de Setembro, e ao abrigo do disposto no artigo 27º daquele Decreto-Lei nº 19/93, foi criada a Paisagem Protegida do Corno do Bico como área protegida de âmbito regional
(artigo 1º), gerida pela Câmara Municipal de Paredes de Coura (artigo 4º).
Dotada de uma comissão directiva e de um conselho consultivo (artigo 5º), este último é constituído por várias entidades, entre as quais as 'juntas de freguesia da área da Paisagem Protegida consideradas em conjunto e em sistema rotativo, com mandato de um ano' [artigo 9º, alínea c) do seu nº 1].
Esta área protegida assim criada – como paisagem protegida – tem por objectivo específico a conservação da natureza e a valorização do património natural do Corno do Bico como pressuposto de um desenvolvimento sustentável e a promoção do repouso e do recreio ao ar livre em equilíbrio com os valores naturais salvaguardados e, consoante consta do preâmbulo justificativo da iniciativa governamental, considerou-se, na sua criação, 'a vontade demonstrada pelas populações' e foi 'ouvida a autarquia de Paredes de Coura'.
3. - O legislador atribui a gestão das áreas protegidas de interesse regional (como é o caso da Paisagem Protegida do Corno do Bico) às respectivas autarquias locais ou associações de municípios.
Perante a secura do texto legislativo – nº 2 do artigo
4º do Decreto-Lei nº 19/93 – perguntar-se-á a que categorias de autarquias locais se refere o legislador, nomeadamente se essas autarquias são os municípios e as freguesias ou apenas os primeiros.
A dúvida terá pertinência uma vez que o âmbito territorial de uma área protegida, designadamente se de interesse regional, respeitará facilmente não apenas a uma mas sim a duas ou mais autarquias, permitindo colocar o problema da competência de uma dada assembleia de freguesia para intervir, levando a efeito um referendo que não se reduz a consulta popular nem muito menos se trata de uma sondagem de opinião, mas é dotado de natureza vinculativa.
Note-se que os municípios dispõem hoje de atribuições e competência no domínio do ambiente e do saneamento básico, enquanto as freguesias as têm no quadro do ambiente e salubridade.
Relativamente aos primeiros, a própria Lei nº 159/99 estabelece a competência dos órgãos municipais para o planeamento, a gestão de equipamentos, e a realização de investimentos em vários domínios (nº 1 do artigo
26º), competindo aos órgãos municipais, particularmente, propor a criação de
áreas protegidas de interesse nacional, regional ou local [cfr., a alínea c) do nº 2 desse artigo 26º]. Já no tocante às freguesias, as suas atribuições e a competência dos respectivos órgãos abrangem o planeamento, a gestão e a realização de investimentos, 'nos casos e nos termos previstos na lei', como nos diz o nº 2 do artigo 14º do mesmo texto legal, sendo certo que, por seu turno, a Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, não atribui a estes órgãos autárquicos uma concreta competência, semelhante à prevista para os órgãos municipais.
Destaque-se, no tocante a estes últimos, o disposto na alínea m) do nº 2 do artigo 64º deste Lei nº 169/99, nos termos da qual compete
à Câmara Municipal, no âmbito do planeamento e desenvolvimento, 'assegurar, em parceria ou não com outras entidades públicas ou privadas nos termos da lei, o levantamento, classificação, administração, manutenção, recuperação e divulgação do património natural, cultural, paisagístico e urbanístico do município, incluindo a construção de monumentos de interesse municipal'.
Mas, para além disto, e mesmo admitindo a competência dos órgãos das freguesias para propor a criação de áreas protegidas, tem-se por questionável que o poder de tomar a iniciativa de classificar uma área como protegida comporte reversamente o poder de propor a extinção ou a alteração de
área já criada pela via legalmente exigida, na medida em que é sustentável que só se a lei a contemplasse se poderia ter em conta uma eventual competência para propor a desclassificação dessas áreas.
4. - Por outro lado, encontrando-se criada uma área de paisagem protegida por diploma legislativo emanado do Governo, a questão da desclassificação dessa mesma área, extinguindo-a, colocada quase de imediato em termos de referendo necessariamente vinculativo – se é esse o sentido da pergunta referendária, só aparentemente unívoca, como se verá – significa, desde logo, atribuir ao órgão autárquico assembleia de freguesia uma competência que não lhe foi atribuída e, do mesmo passo, afrontar, violando-o, o disposto no artigo 7º, nº 2, da Lei nº 49/90, na medida em que se pressupõe uma resposta de concordância ou de discordância com a deliberação de órgão de soberania (que não
é o que determina a realização da consulta).
5. - Sem embargo, mesmo para quem entenda que, no caso, existe competência dos órgãos das freguesias e que, por outro lado, a competência para propor a classificação implica a de propor a desclassificação, mesmo para esses depara-se-lhes uma pergunta que, na verdade, não se presta a uma inequívoca resposta mediante simples afirmativa ou negativa.
Com efeito, só prima facie a redacção da pergunta parece que a molda dilemática e bipolarmente, de modo a não suscitar dúvidas no espírito do seu leitor que, assim, ao responder em determinado sentido, estaria, lógica e necessariamente, a aceitar uma das soluções propostas e a rejeitar a outra.
É que, no concreto caso, a pergunta sugere dúvidas e gera equívocos, sendo só aparente a sua clareza.
Não faz sentido, referendar a criação de uma área protegida já criada – a menos que outro sentido esteja contido na pergunta, com o objectivo de os eleitores respectivos se pronunciarem a respeito da manutenção da área já criada.
A lógica da bipolaridade que o referendo subentende encontra-se, assim, seriamente afectada, uma vez que a pergunta proporciona – ou pode proporcionar – perplexidade nos destinatários, induzindo-os a crer que essa criação ainda não teve lugar, ou, então, que a sua finalidade é a do apuramento da vontade popular visando uma iniciativa tendente a eliminar essa área protegida. De qualquer modo, está-se perante uma pergunta que não permite uma resposta clara de sim ou não.
Da 'objectividade, clareza e precisão para respostas de sim ou não', a que alude o nº 6 do artigo 115º da CR – se se recorrer a esta norma – conclui-se que à pergunta não assistem clareza e precisão, sendo certo, como este Tribunal já ponderou, que 'a mera possibilidade de se atribuir mais de um sentido à pergunta denota o seu carácter equívoco e a consequente falta de clareza' (cfr., acórdão nº 531/98, publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Julho de 1998).
Sendo assim, a aceitação da pergunta, tal como formulada está, no concreto contexto legal que a envolve, representaria violação ao disposto no nº 1 do artigo 7º da Lei nº 49/90.
III
Em face do exposto, decide o Tribunal Constitucional pronunciar-se pela ilegalidade do referendo local que, na sua reunião de 16 de Janeiro de 2000, a Assembleia de Freguesia de Bico, concelho de Paredes de Coura, deliberou apresentar à apreciação deste Tribunal. Lisboa, 16 de Fevereiro de 2000 Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida nos termos da declaração junta) José Manuel Cardoso da Costa