Imprimir acórdão
Processo n.º 369/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A. e B. reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de fls. 47/48 dos presentes autos, que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«(…) A. e B., inconformados com o não recebimento do recurso para o Tribunal Constitucional, que interpuseram de decisão do Tribunal de segunda instância, vêm apresentar esta reclamação, com a finalidade de subida e devendo ser revogada a decisão em contrário pelos motivos seguintes:
1 — Qualquer texto jurídico tem e deve ser submetido a interpretação, segundo as normas gerais e incontroversas de correção dos sentidos de primeira leitura, tantas vezes falíveis.
2 — Um requerimento de interposição de recurso ou as conclusões de uma minuta são textos jurídicos, portanto interpretáveis ou que devem ser submetidos a interpretação, com vista a recuperar-lhes o sentido prático útil para a lide e para a prevalência do direito material.
3 — O despacho que não recebeu o recurso limitou-se a uma simples primeira leitura, tanto do requerimento de interposição do recurso, como das conclusões da minuta do recurso para a Relação.
4 — E, bastando-se com a primeira leitura, é claro que erra no que diz respeito ao sentido prático que ao direito convém e é necessário, resultante dos textos implicados na questão de saber se os recorrentes alegaram com propriedade a inconstitucionalidade que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
5 — Em primeiro lugar, nas conclusões da minuta do recurso para a Relação, nota-se um evidente e claríssimo erro de escrita quanto ao enunciado dos artigos de lei contrapostos ao art°. 36.º - CRP, mas, do contexto, não pode deixar de retirar-se que o objetivo da alegação da inconstitucionalidade é um sistema processual e de apreciação da prova que os recorrentes intentam defender como contrário à liberdade fundamental de constituir família.
6 — É também claro que a liberdade fundamental de constituir família inclui, natural e necessariamente, o reconhecimento da filiação e da paternidade.
7 — Filiação e paternidade como factos da natureza e não factos normativamente modificados através de uma regra do ónus da prova.
8— Assim, o que os recorrentes pretenderam pôr em crise foi o modelo de julgamento da causa assente na inversão do ónus da prova, por recusa do exame de sangue por parte do progenitor.
9 — É este sistema de contaminação normativa do real, que os recorrentes sustentam ser contrário à Constituição e à liberdade de constituir família, porque, nesta matéria, o que importa é a prova direta e não as presunções ou os efeitos da divisão de papeis probatórios, sendo de sua natureza oficiosa e ativa a procura da verdade
10 — Assim, não pode o Tribunal retirar uma certa consequência da recusa do exame ao sangue. Tem apenas que contornar a dificuldade e socorrer-se de todos os outros meios de prova e admissíveis, que os exames, nesta matéria, nem sequer são exclusivos.
11 — É maioritária a jurisprudência neste sentido e no corolário de a prova do exame poder ser contrariada por outras metodologias probatórias, afinadas nos longos séculos do direito de família.
12 — Ora bem, chegámos ao segundo erro de escrita que o despacho de não recebimento parece não ter considerado, não obstante patente e de muito fácil leitura corretiva.
13 — No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional são citados como do C.C, artigos de lei que são do CPC: a citação do CC é absurda e a correspondente conferência com o CPC logo desoculta a problemática em jogo, precisamente esta da crítica da constitucionalidade do sistema da inversão do ónus da prova em matéria de investigação de paternidade, havendo recusa do exame ao sangue.
14 — Em suma: tanto nas conclusões da minuta do recurso para a Relação, corno no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, se focam os mesmos temas.
15 — Acontece é que dois arreliadores lapsus calami , perturbam a primeira leitura dos textos.
16 — Mas, das conclusões da minuta resulta sem dúvida que é o sistema probatório arguido de ser contrário ao art.° 36.º da CRP.
17— E, na mesma linha de ser o sistema probatório que está posto em crise, tem naturalmente de ser do CPC os preceitos mal indicados nas conclusões da minuta do recurso para a Relação e, por isso, corrigidos no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
18 — Por conseguinte, nada assiste de razoável ao não recebimento do recurso, e V. Ex.ª mandá-lo-á seguir, no limite para que o coletivo do Tribunal Constitucional decida da pertinência da questão de constitucionalidade intencionada pelos recorrentes. (…)»
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos que se seguem:
«1. B. e A., interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pela Relação de Lisboa, em 22 de março de 2012, que considerou improcedente a apelação, mantendo a decisão de 1.ª instância que julgara procedente a ação interposta pelo Ministério Público e em conformidade declarou que C. não era filho do réu B..
2. Face aos elementos que constam dos autos, parece-nos que, não obedecendo o requerimento inicial aos requisitos exigidos pelo artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2 da LTC (Promoção de fls. 45 do Ministério Público), foram os recorrentes notificados para suprir essa deficiência, tendo apresentada a peça de fls. 46.
3. Nessa peça, diz-se:
“(…) tendo alegado a inconstitucionalidade na minuta da apelação e no confronto entre o entendimento negativo dado aos artigos 344.º, n.º 2 e 519.º, n.º 2 (2.ª parte) do CC, com o art.º 36.º do CPP”.
4. Os recorrentes vêm posteriormente dizer que se tratou de um lapso e que os preceitos indicados seriam do Código de Processo Civil.
5. Ora, pelo que vem questionado, parece-nos que os preceitos em causa serão os artigos 344.º, n.º 2, do Código Civil e 519.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (sendo que o lapso, no que respeita ao artigo 519º, já consta do acórdão da Relação (fls. 26).
6. Mesmo aceitando-se que se está perante um lapso e que os recorrentes quiseram referir os preceitos atrás citados (n.º 5), a afirmação constante da peça apresentada na sequência do convite e que já atrás transcrevemos (vd. n.º 3), não traduz a enunciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, única que poderia constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
7. Tal seria suficiente para indeferir a reclamação.
8. Por outro lado, como o acórdão recorrido é o proferido pela Relação – sendo irrelevante o afirmado no recurso para Supremo Tribunal de Justiça, que aliás, o considerou inadmissível – o momento processual próprio para suscitar a questão da inconstitucionalidade eram as alegações apresentadas no recurso interposto da decisão da 1.ª instância.
9. Todavia, nas conclusões dessas alegações, que vêm transcritas no acórdão, não se enuncia qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, ali não são mencionados, sequer, os preceitos que agora vêm indicados.
10. Ora, são próprios recorrentes que afirmam ter suscitado a questão nas conclusões, como decorre do afirmado na presente reclamação:
“16 – Mas, das conclusões da minuta resulta sem dúvida que é o sistema probatório arguido de ser contrário ao artigo 36.º do CPP”. (fls. 5)
11. Pelo exposto, também com este fundamento, sempre a reclamação devia ser indeferida.»
3. Os reclamantes pretendem recorrer para este Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 22.03.2011, que considerou improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão de 1.ª instância que julgara procedente a ação interposta pelo Ministério Público e em conformidade declarou que C. não era filho do réu B.. O pretendido recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e visa os artigos “344.º, n.º 2”, do Código Civil, e “519.º, n.º 2”, do Código de Processo Civil (e não do “Código Civil” como, por manifesto lapso, consta do requerimento de fls. 46).
O despacho reclamado não admitiu o recurso com fundamento na falta de suscitação da questão de constitucionalidade.
Dos elementos constantes dos autos resulta que, de facto, os reclamantes não suscitaram qualquer questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido. Uma vez que pretendiam interpor recurso do citado acórdão do Tribunal da Relação, o momento adequado para suscitar a questão seria nas alegações do recurso aí apresentado. Ora, nas conclusões 7ª e 8ª destas alegações, os reclamantes limitaram-se a invocar que a sentença recorrida violou normas legais e preceitos constitucionais (cfr. a respetiva transcrição no acórdão recorrido, a fls. 10 e 11), mas em momento algum enunciaram uma norma ou interpretação normativa, para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade. Resta dizer que nem no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nem na resposta ao convite ao aperfeiçoamento que lhes foi dirigido pelo tribunal recorrido – o qual, de qualquer modo, já não seria o momento atempado para suscitar a questão – , os reclamantes lograram enunciar uma qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Não pode, assim, o recurso ser admitido.
4. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 20 de junho de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.