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Processo n.º 623/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade das 'normas do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, com referência ao § único do artigo 15º do Decreto n.º 37.021', a que o Juiz do 4º Juízo daquele Tribunal recusou aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade.
No despacho recorrido, o Juiz julgou-se incompetente para conhecer do recurso interposto da deliberação da comissão de avaliação, pois que esta fixou em
3.000.000$00 o montante da renda anual a pagar pela loja nº.... do prédio sito na Rua Luís de Camões, n.º..., em Lisboa, arrendada a C...,Lda por M. B.. Assim julgou, depois de ponderar que, atento o valor da causa (3.000.000$00), a decisão final a proferir no recurso da deliberação da dita comissão admite recurso ordinário, nos termos do artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil; e que os tribunais de pequena instância cível apenas têm competência para preparar e julgar causas cíveis a que corresponda processo sumaríssimo ou que não estejam previstas naquele Código, desde que, neste último caso, lhes não corresponda processo especial e a respectiva decisão não seja susceptível de recurso ordinário.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício de funções neste Tribunal concluiu a sua alegação do modo que segue:
1º. A norma desaplicada na decisão recorrida não padece da apontada inconstitucionalidade orgânica, por a definição dos pressupostos dos recursos em processos referentes à efectivação de direitos privados não integrar 'reserva de parlamento'.
2º. E não padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, ao vedar o acesso ao tribunal superior, mesmo em casos em que o valor da causa supera a alçada da 1ª instância e a controvérsia incide sobre questões de direito, pelas razões aduzidas no acórdão n.º 202/99, que uniformiza a jurisprudência sobre esta questão.
3º. Termos em que deverá proceder o recurso.
Os recorridos não alegaram.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio. Como o Juiz recorrido se julgou incompetente para conhecer do recurso interposto da deliberação da comissão de avaliação, a única norma desaplicada foi a constante do artigo 1º do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro , que acrescentou um § único ao artigo 15º do Decreto n.º 37.021, de 21 de Agosto de
1948. Este § único reza assim:
§ único. Da decisão final não cabe recurso.
A decisão final de que não cabe recurso nos termos deste § único é a decisão do juiz que julga o recurso interposto da deliberação da comissão de avaliação, fixando a renda a pagar: é o que claramente resulta do corpo do artigo 15º
(redacção do Decreto n.º 37.784, de 14 de Março de 1950), conjugado com o artigo
14º, na redacção do mencionado Decreto Regulamentar n.º 1/86.
4. A questão de constitucionalidade.
4.1. O Juiz recorrido julgou inconstitucional a norma do referido § único, com fundamento em que ela viola a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias e à competência dos tribunais.
4.2. Este Tribunal já teve ocasião de, no acórdão n.º 270/95 (publicado no Diário da República, II série, de 27 de Julho de 1995), apreciar, ratione constitutionis, a norma que aqui está em causa, tendo concluído que ela não invade a reserva legislativa parlamentar – e que, por isso, não é, a esse título, inconstitucional. Nesse aresto, o Tribunal, depois de anotar que tem sido seu entendimento o de que se inscreve na reserva parlamentar, pelo menos, a questão da competência em razão da matéria, que se prende com a distribuição das matérias pelos diversos tribunais dispostos horizontalmente, sublinhou que as normas que regem directamente a competência em razão da hierarquia (ou seja: as que repartem as funções entre ordens de tribunais dispostos verticalmente, dentro da mesma espécie ou categoria e dentro da mesma causa) se limitam a determinar que cabe aos tribunais superiores julgar recursos. E, a seguir, acrescentou: A subsequente determinação dos casos em que tem lugar recurso depende de normas que, em primeira linha, disciplinam requisitos ou pressupostos de recursos e não de normas de competência propriamente ditas, embora delas resulte, indirectamente, a delimitação dos casos de intervenção dos tribunais superiores. Ora, essas normas definidoras de condições de admissibilidade de recursos são normas de indiscutível carácter processual e só plano mediato se repercutem na delimitação da competência dos tribunais superiores – escapando, portanto, do
âmbito da reserva parlamentar.
Na verdade, assim é: as normas que definem as condições de admissibilidade dos recursos são 'normas de indiscutível carácter processual', não versando sobre a competência dos tribunais naquele nível ou grau que a Constituição reserva à lei parlamentar.
Tais normas também não versam sobre direitos, liberdades e garantias; designadamente, sobre o direito de acesso aos tribunais (recte, sobre o direito de acesso aos tribunais de recurso), na dimensão garantística que exige que a aprovação da respectiva disciplina legal se faça após prévio debate parlamentar e com observância da regra da maioria. Os preceitos legais que fixam as condições de admissibilidade dos recursos não dispõem, pois, sobre matéria incluída na reserva parlamentar. Isto mesmo teve este Tribunal ocasião de sublinhar no seu acórdão n.º 161/99
(ainda inédito), a propósito dos pressupostos processuais do recurso contencioso. Escreveu-se neste aresto que a norma que impõe 'a apresentação de um recurso tutelar como condição prévia de acesso à via judiciária para impugnação de um acto administrativo não versa sobre as garantias dos administrados, maxime sobre a garantia do direito ao recurso contencioso. Ela versa, sim, sobre processo – recte, sobre processo administrativo'.
Ora, as normas de índole processual - salvo tratando-se de normas de processo constitucional, de processo penal ou que integrem o regime geral do processo disciplinar ou contraordenacional [cf. o actual artigo 165º, alíneas a) e b), da Constituição] - não se inscrevem na reserva de parlamento [cf., a propósito, entre outros, o citado acórdão n.º 161/99 e o acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Março de 1996)]. Foi por assim entender que este Tribunal, já antes, nos acórdãos nºs. 404/87 e
132/88 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e de 8 de Setembro de 1988, respectivamente), concluíra que não constituem matéria da reserva legislativa parlamentar 'as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual'.
Não há razões para alterar esta jurisprudência. Por isso, também agora se conclui que, com a edição da norma sub iudicio, se não invadiu a reserva legislativa parlamentar.
4.3. Uma última questão, levantada pelo Ministério Público na sua alegação, é a seguinte: se aqui valessem as regras gerais de recurso, seria, no caso, admissível recurso ordinário, pois o valor da acção é de 3.000.000$00; por isso, a norma sub iudicio – que, recorda-se, estabelece que, da decisão final, não cabe recurso – podia questionar-se do ponto de vista da igualdade. De resto, já foi, a esse título, julgada inconstitucional, por mais que uma vez [cf. os acórdãos nºs 124/98, 383/98 (publicados no Diário da República, II série, de 30 de Abril de 1998 e de 28 de Novembro de 1998) e o n.º 696/98 (por publicar)]. Posteriormente, porém, no acórdão n.º 638/98 (publicado no Diário da República, II série, de15 de Maio de 1999), o Tribunal concluiu que a referida norma não viola o princípio da igualdade. Ponderou, a propósito: Ora, não tendo valor constitucional a regra geral segundo a qual o acesso aos sucessivos graus de jurisdição depende do valor da causa, só se poderia concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada, se a diferenciação nela estabelecida se mostrasse arbitrária e desprovida de qualquer fundamento material bastante. Não é, porém, isso o que acontece. Na verdade, é a própria natureza especial do processo em causa que justifica o estabelecimento de uma regra igualmente especial em matéria de recursos.
Face a esta divergência jurisprudencial, o Tribunal tirou, em Plenário, o acórdão n.º 202/99 (ainda por publicar), no qual triunfou esta última jurisprudência.
Não havendo razões para, agora, concluir diferentemente, é a jurisprudência firmada no acórdão n.º 202/99, para cujos fundamentos se remete, que aqui se aplica, concluindo-se pela inexistência de violação do princípio da igualdade.
5. Conclusão. Conclui-se, assim, que a norma constante do artigo 1º do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, que acrescentou um § único ao artigo 15º do Decreto n.º 37.021, de 21 de Agosto de 1948, não é inconstitucional. Há, por isso, que conceder provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). conceder provimento ao recurso;
(b). em consequência, revogar a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que nela se contém, a fim de ser reformada em conformidade com o juízo aqui emitido sobre a mesma.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida