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Proc. nº 299/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C...,SA., notificada da decisão sumária de fls. 464 e seguintes, na qual se decidiu, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (na redacção emergente da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), não tomar conhecimento do recurso para o Tribunal Constitucional por si interposto, dela veio reclamar para a conferência (fls. 472 e segs.), apresentando as seguintes conclusões:
'I. No entender da recorrente, talvez devido ao volume excessivo de pendências nos tribunais, o artigo 158º do Código do Processo Civil tem vindo frequentemente a ser aplicado numa interpretação patentemente inconstitucional. II. O STJ reconheceu que a arguição da nulidade se fundou na violação do artigo
205º-1 da Constituição e, ainda assim, considerou a decisão fundamentada. III. Na acepção do STJ, é constitucional a norma do artigo 158º do C.P.C. na interpretação de que, para fundamentar uma decisão, é suficiente a enunciação de artigos da lei, sem os fazer corresponder a factos, que são meramente discriminados sem a interpretação e o confronto dos mesmos com as disposições legais, e na qual as conclusões são retiradas com o postulado de serem
«patentes», sem permitir que as partes possam controlar o raciocínio jurídico subjacente. IV. Constitui, assim, o único objectivo da recorrente, com o presente recurso, o de atacar a norma do artigo 158º do Código do Processo Civil, na interpretação transcrita – e não a própria decisão do STJ. Nestes termos requer que a conferência ou o pleno da secção, se for caso disso – decidam que deve conhecer-se o objecto do recurso.'
2. Para a compreensão da reclamação deduzida e da decisão que sobre ela se irá proferir, é oportuno mencionar de novo certos elementos constantes do relatório da decisão sumária reclamada. O acórdão do qual a ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional é o acórdão de 28 de Outubro de 1999 do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 419 a 424). Nesse acórdão, e depois de citar vários preceitos legais para dilucidação da questão de saber se a constituição da hipoteca a favor do embargado era contrária ao fim social da embargante, considerou o Supremo que 'tendo a embargante uma quota no capital social da M... J..., sendo comuns as gerências, tendo a M... J.... apenas por finalidade a comercialização dos produtos fabricados pela embargante, e demais sociedades associadas, sendo a M... J... a chamada marca comercial desses produtos e sendo através dela que a embargante escoava os seus produtos, é patente, e justificado, o interesse próprio da embargante em garantir, através da constituição da hipoteca, as responsabilidades assumidas ou a assumir pela M... J... perante o embargado. Logo, neste segmento, nenhuma censura merece a decisão recorrida'. Na sequência da notificação desse acórdão, a ora reclamante requereu o esclarecimento de obscuridades e ambiguidades nele alegadamente contidas, invocando, entre o mais, o dever de fundamentação das decisões judiciais decorrente dos artigos 205º, n.º 1, da Constituição e 158º do Código de Processo Civil (fls. 428 a 432). Por acórdão de 16 de Dezembro de 1999, foi este requerimento indeferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (fls. 439 a 439 v.º), com a seguinte justificação:
'[...] O que a recorrente pretende mais não é que a prolação de um novo acórdão sobre o objecto do recurso. Porém, o poder jurisdicional do Tribunal já se encontra esgotado – art.º 666º, n.º 1 do C. P. Civil. Os fundamentos da decisão são perfeitamente claros e inteligíveis. A subsunção legal dos factos materiais descritos no acórdão encontra-se feita, e não tem, agora, o Tribunal que definir conceitos nem que dissertar sobre os requisitos materiais dos preceitos legais invocados pela recorrente.
É manifesta a sua discordância com a decisão e com os seus fundamentos. Mas, tal não torna nem a decisão nem os seus fundamentos obscuros ou ambíguos. E como é sabido, mesmo que tivesse havido um erro de julgamento, no que se não concede, não podia ele ser suprido pela via usada.'
Notificada deste acórdão de 16 de Dezembro de 1999, veio a ora reclamante arguir a nulidade por falta de fundamentação do acórdão do Supremo de 28 de Outubro de
1999, 'em conformidade com o artigo 158º do Código de Processo Civil' (fls. 442 a 444). Lê-se nessa peça processual, para o que aqui releva, que:
'[...]
10. Na perspectiva da requerente, qualquer decisão de um Tribunal que apresente, como fundamentação, um texto como o que ocorre no presente, no qual se enunciam artigos da lei, sem os fazer corresponder a factos, que são meramente discriminados sem a interpretação e o confronto dos mesmos com as disposições legais, e no qual as conclusões são retiradas com o postulado de serem
«patentes», sem permitir que as partes possam controlar o raciocínio jurídico subjacente, integra uma interpretação de que decorre a inconstitucionalidade do artigo 158º do C.P.C., por violação do artigo 205º-1 da Constituição.
11. Sendo outro, como é, o entendimento da requerente, tem forçosamente de retirar a conclusão de que o Acórdão de 28 de Outubro de 1999 não se encontra devidamente fundamentado nos termos que resultam do artigo 158º do C.P.C., interpretado à luz do artigo 205º-1 da Constituição, nulidade que aqui se vem arguir.
12. Esta arguição de nulidade constitui um acto indispensável para que a questão possa ser, eventualmente e a seu tempo, submetida à apreciação do Tribunal Constitucional [...].'
Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2000 (fls.
451-451 v.º), foi indeferida a mencionada arguição da nulidade do acórdão de 28 de Outubro de 1999, com a seguinte justificação: '[...] acontece que, lendo o acórdão, aqui arguido de nulo, se verifica que ele se encontra fundamentado, quer de facto, quer de direito'. A ora reclamante interpôs seguidamente recurso, para o Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de 1999 (fls. 454). Fê-lo ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada 'a inconstitucionalidade da norma do artigo 158º do Código de Processo Civil, na interpretação, com que foi aplicada na decisão recorrida, de que, para fundamentar a mesma é suficiente a enunciação de artigos de lei, sem os fazer corresponder a factos, que são meramente discriminados sem a interpretação e o confronto dos mesmos com as disposições legais, e na qual as conclusões são retiradas com o postulado de serem
«patentes», sem permitir que as partes possam controlar o raciocínio jurídico subjacente', por violação do disposto no artigo 205º, n.º 1, da Constituição.
3. Na fundamentação da decisão sumária reclamada, começou por referir-se que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada pela então recorrente – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo'. Lê-se depois nessa decisão sumária:
'Ora, a recorrente não pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 158º do Código de Processo Civil (que estabelece o dever de fundamentar a decisão), na interpretação que aponta. Pretende apenas que o Tribunal Constitucional censure, à luz do artigo
205º, n.º 1, da Constituição, a própria decisão recorrida, por alegadamente padecer de falta ou deficiência de fundamentação.
É claro que, no requerimento de interposição do recurso, a recorrente não imputa a inconstitucionalidade à decisão recorrida, mas a uma dada interpretação que pretensamente nela se faz do artigo 158º do Código de Processo Civil. Certamente porque tal tornaria demasiado evidente o não preenchimento de um dos pressupostos do presente recurso de constitucionalidade. Mas é substancialmente equivalente invocar-se a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 158º do Código de Processo Civil, numa interpretação que coincide integralmente com o enunciado dos vícios de fundamentação atribuídos à decisão recorrida – isto é, numa interpretação que não permite autonomizar a norma aplicada do caso concreto a que se aplicou –, e invocar-se o desrespeito, pela própria decisão recorrida, do dever de fundamentação constitucionalmente imposto. Que a recorrente pretende atacar a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça e não a norma do artigo 158º do Código de Processo Civil, numa certa interpretação, é algo que também resulta do processado até à interposição do recurso perante o Tribunal Constitucional. Basta atentar no conteúdo do requerimento de fls. 428 a 432 (pedido de esclarecimento de obscuridades e ambiguidades contidas no acórdão de 28 de Outubro de 1999), onde se atribui falta de clareza ao texto do acórdão apontado como fundamentação (ponto I, 4), se censura o acórdão por afirmar simplesmente ser «patente» o interesse próprio ou o justificado interesse próprio do embargante (ponto IV) e, finalmente, se critica a estrutura do acórdão e a impossibilidade de controlo do «iter» lógico do acórdão (ponto V, 12 e 13). Basta atentar igualmente no requerimento de fls. 442 a 444 (arguição da nulidade resultante da falta de fundamentação do acórdão de 28 de Outubro de 1999), para se verificar que o alvo do presente recurso é a desconformidade da própria decisão, e não de qualquer norma nela aplicada, com o texto constitucional. Aí se lê, efectivamente, que o texto apresentado como fundamentação não é verdadeiramente fundamentação (ponto 5) e que o «iter» lógico do acórdão não é controlável (pontos 6 e 7). A pretensão da recorrente extravasa, pois, a competência decisória do Tribunal Constitucional. O sistema de controlo de conformidade constitucional incide sobre normas – na sua totalidade, em certo segmento ou em dada interpretação –, e não sobre a decisão judicial, em si própria considerada, não se perfilando portanto como mecanismo de defesa contra um dado acto judicial, para protecção específica de direitos fundamentais. Em suma: o amparo não é admitido no nosso ordenamento jurídico e não integra, seguramente, o fim do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, dirigido à valoração da constitucionalidade da norma aplicada. Não pode, pois, conhecer-se do objecto do recurso, no que se refere à invocada inconstitucionalidade da norma constante do artigo 158º do Código de Processo Civil, na interpretação transcrita em 4., por não haver questão de constitucionalidade normativa a apreciar.'
II
4. Na presente reclamação, são invocados basicamente três argumentos a favor do conhecimento do objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
O primeiro argumento é, na falta de melhor expressão, de ordem estatística. Na perspectiva da reclamante, o artigo 158º do Código de Processo Civil tem vindo frequentemente a ser aplicado num sentido que permite a elaboração de acórdãos que apresentam fundamentação com características semelhantes à do acórdão recorrido: características que se traduziriam, na descrição feita pela reclamante, na 'enunciação de artigos de lei, sem os fazer corresponder a factos, que são meramente discriminados sem a interpretação e o confronto dos mesmos com as disposições legais, e na qual as conclusões são retiradas com o postulado de serem «patentes», sem permitir que as partes possam controlar o raciocínio jurídico subjacente'.
Como é óbvio, trata-se de argumento que em nada releva para a questão em discussão, que é a de saber se a ora reclamante, no recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional, submeteu a este Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa ou, diversamente, uma questão de constitucionalidade da própria decisão recorrida. Em primeiro lugar, do alegado e hipotético facto de vários tribunais proferirem decisões que apresentam fundamentação semelhante à do acórdão recorrido não se pode extrair a existência de um qualquer entendimento jurisprudencial acerca da obrigatoriedade de tal modo de fundamentação das decisões judiciais (em termos de se considerar subjacente a tais decisões a apontada interpretação do artigo 158º do Código de Processo Civil), pelo que também em relação a essas outras decisões se colocaria o problema da inexistência de questão de constitucionalidade normativa a apreciar, caso das mesmas fosse interposto idêntico recurso para o Tribunal Constitucional. Em segundo lugar, a competência do Tribunal Constitucional não pode alargar-se ou restringir-se em função do carácter mais ou menos representativo da decisão de que se recorre, pelo que o argumento quantitativo da reclamante em nada pode impressionar, para efeitos de se tomar conhecimento do objecto do recurso.
O segundo argumento da reclamante prende-se com a circunstância de o tribunal recorrido, aquando do proferimento do acórdão que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 28 de Outubro de 1999 por falta de fundamentação, ter aludido ao artigo 158º do Código de Processo Civil e ao artigo 205º, n.º 1, da Constituição, e simultaneamente considerado estar o mesmo fundamentado. De tal circunstância se retiraria que no recurso para o Tribunal Constitucional está em causa uma questão de constitucionalidade normativa, e não de constitucionalidade do acórdão recorrido. Trata-se, novamente, de argumento irrelevante. Por um lado, porque a referência a tais preceitos pelo tribunal recorrido se justificou, desde logo, pela circunstância de a ora reclamante, aquando da arguição da nulidade por falta de fundamentação do acórdão de 28 de Outubro de 1999, ter aos mesmos aludido: sob pena de omissão de pronúncia, o Supremo teve naturalmente de apreciar a questão, sendo abusivo considerar que, ao fazê-lo, admitiu ter anteriormente procedido a uma qualquer interpretação do artigo 158º do Código de Processo Civil. Por outro lado, porque o acórdão do qual a ora reclamante recorreu para o Tribunal Constitucional é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de
1999, pelo que para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do objecto do recurso seria necessária a aplicação, por esse mesmo acórdão, da norma cuja inconstitucionalidade se suscita, sendo consequentemente irrelevante a referência a uma eventual aplicação dessa norma, em decisão posterior. Finalmente, alega a ora reclamante que o seu objectivo teria sido o de atacar a norma do artigo 158º do Código de Processo Civil, na interpretação que aponta, e não a própria decisão do tribunal recorrido. Desde logo, poder-se-á dizer que a intenção da recorrente, no recurso que interpõe para o Tribunal Constitucional, não assegura por si só os pressupostos processuais exigidos, já que, objectivamente, a ora reclamante não avança qualquer argumento que abale a fundamentação da decisão sumária quanto à inexistência de qualquer questão de constitucionalidade normativa a apreciar. De todo o modo, mesmo entendendo-se que a ora reclamante ainda pretende questionar uma certa dimensão interpretativo-normativa do artigo 158º do Código do Processo Civil, a verdade é que não se encontra demonstrado nos autos que aquele preceito legal tenha sido efectivamente aplicado com a interpretação questionada. Por um lado, tal interpretação não foi expressamente assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça; e, por outro lado, não resulta evidente que ela tenha sido por ele implicitamente adoptada, sendo certo que a ora reclamante só assim conclui em função do juízo crítico que formula sobre a suficiência da fundamentação no caso dos autos (o que corresponde, afinal, a questionar a decisão e não a norma).
III
5. Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Julho de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida