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Proc. n.º533/99
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I – RELATÓRIO
1. – C. A. foi acusado, julgado e condenado no Tribunal de Círculo da Comarca de Oeiras pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 23º e 27º, alíneas c) e g) do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, com referência à Tabela I-A anexa, sendo a condenação na pena de dez (10) anos de prisão e na multa de 400.000$00.
C. A. beneficiou do perdão concedido pela Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, mas não beneficiou do perdão concedido pela Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, em face do que se dispunha no artigo 9º, n.º3, alínea e), que expressamente excluía do âmbito da lei, 'os condenados a pena de prisão superior a sete anos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes'.
Porém, ao aplicar a Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, que estabelece um 'perdão genérico e amnistia pequenas infracções ', o juiz da causa decidiu recusar a aplicação do seu artigo 1º, com fundamento em inconstitucionalidade, estruturando da forma seguinte a decisão proferida:
'A Lei n.º 29/99, de 12/05, estipula no seu art. 2º, n.º2, al. n), que não beneficiam do perdão previsto no seu art. 1º os condenados pela prática dos crimes previstos nos arts. 21º, 22º, 23º, 25º, 26º e 28º do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22/01. Optou o legislador - que se presume Ter consagrado as soluções mais acertadas e exprimido o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, n.º3, do C.Civil) - por delimitar as situações de exclusão do perdão com referência a certo tipo de crimes, ou seja, as situações de exclusão de perdão estão precisamente circunscritas às disposições legais referenciadas: só essas, e não outras.
[...].
3. Daqui decorre que o caso dos presentes autos, por não se reportar a qualquer dos preceitos legais mencionados na al. n) do n.º2 do art. 2º da citada Lei, estaria afinal abrangido pelo perdão genérico previsto no também já mencionado art. 1º do mesmo diploma, do seguinte teor: 'Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, é perdoado um ano de todas as penas de prisão até oito anos, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado'. Quer isto dizer que beneficiariam do perdão, v.g., os condenados por crime de tráfico de estupefacientes desde que sob o império do hoje revogado Decreto-Lei n.º 4430/83, de 13/12. Poderá dizer-se, é certo, que tal resultado não estaria na mente do legislador, atentos os trabalhos preparatórios da Lei n.º 29/99 cit., largamente publicitados. Simplesmente, se assim era, tal pensamento acabou por não ficar vertido no texto legal, concretamente na al. n), do n.º2, do art. 2º dando origem a uma lacuna só passível de integração mediante o recurso á analogia, postergada nestas hipóteses, como se referiu (arts. 9º, n.º2, e 10º do C. Civil). Ainda que se admitisse o recurso à interpretação extensiva dos normativos que regem sobre a amnistia e o perdão (o que, parece, não será de aceitar), não se encontraria aí o remédio para o caso sub judice, visto que o teor literal da norma em questão não oferece qualquer suporte para o efeito (cf. o art. 9º, n.ºs 1 e 2, do C. Civil).
4.Parece porém que o art. 1º da Lei n.º 29/99, de 12/05, assim interpretado
(isto é, conjugadamente com o art. 2º, n.º2, al. n), da mesma Lei) no sentido de beneficiar os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelos arts. 23 e 27 do Decreto-Lei n.º 4340/83, de 13/12, viola o art. 13º da Constituição da República. Na verdade, também as leis de amnistia e do perdão genérico, não obstante a natureza deste institutos, devem ser sindicadas à luz do princípio constitucional da igualdade. Significa isto que eventuais diferenciações devem sustentar-se em justificações razoáveis, recusando-se o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis. Ora, nesta perspectiva, não se vislumbra qualquer razão para distinguir os condenados por tráfico de estupefacientes à luz dos Decretos-Leis n.ºs 430/83 cit. e 15/93 cit., beneficiando os primeiros de perdão, ao contrário dos segundos. Tal representa arbitrária discriminação (eventualmente não querida, mas que veio a perfilhar-se perante o texto legal adoptado), ofensiva, como se adiantou, do princípio da igualdade, proclamado no art. 13º da Constituição da República, e até dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito Democrático - arts. 1º e 2º da Constituição da República.
A decisão em causa veio, assim, a recusar a aplicação do artigo 1º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, que considerou materialmente inconstitucional, por violação do artigo 13º, com referência aos artigos 1º e 2º da Constituição.
2 – É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público recurso obrigatório de inconstitucionalidade, para apreciação da norma conjugada dos artigos 1º e 2º, n.º2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, que apenas exclui do perdão da Lei n.º 29/99, os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21º, 22º, 23º, 25º, 26º e 28º pelo Decreto-Lei n.º
15/93, beneficiando os condenados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, anteriormente em vigor.
Neste Tribunal apenas o Ministério Público alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º - A interpretação – hipoteticamente delineada na decisão recorrida – que se traduzisse em coligar o efeito excludente do perdão apenas aos ‘artigos de lei’ especificados no artigo 2º, n.º2, alínea n) da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, negando idêntica relevância a factos idênticos subsumidos (por virtude de regras de aplicação da lei penal no tempo) aos preceitos legais, de conteúdo análogo, que foram substituídos pelo citado Decreto-Lei n.º 15/93, violaria efectivamente, de forma gravosa e intolerável, o princípio da igualdade.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. – Nos termos da decisão recorrida, o artigo 1º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio interpretado conjugadamente com o artigo 2º, n.º2 da mesma lei no sentido de beneficiar os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelos artigos 23º e 27º do Decreto-Lei n.º430/83, de 13 de Dezembro, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, uma vez que a prática de idênticos crimes previstos e punidos pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, artigos 21º a 23º, 25º, 26º e 28º está expressamente excluída do âmbito da Lei.
A Lei n.º 29/99, de 12 de Maio veio estabelecer um
'perdão genérico e amnistia de pequenas infracções', determinando nas normas recusadas e na parte relevante para o presente processo, o seguinte:
'Artigo 1º
1 – Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado.
2 – [...].'
Pelo seu lado, o artigo 2º, n.º2, alínea n) da mesma Lei estabelece que:
'Artigo 2º
Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
..................................................n) Os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21º, 22º, 23º, 25º, 26º e 28º do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de Janeiro; o) [...].'
A questão suscitada nos autos consiste em saber se, não estando expressamente prevista na Lei n.º 29/99 a exclusão dos benefícios concedidos por essa mesma lei aos condenados por crimes praticados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, devem ou não os condenados por crime de tráfico de estupefacientes previsto naquele diploma e praticado até 25 de Março de 1999, ser abrangidos pelo perdão constante do artigo 1º da Lei 29/99.
No caso dos autos, o arguido foi condenado por factos praticados em 1991, de acordo com o que se preceituava nos artigo 23º e 27º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, na pena de dez anos de prisão. Como o crime pelo qual o arguido dos autos foi condenado não consta como sendo dos expressamente referidos nas exclusões da Lei em causa (artigo 2º), deveria beneficiar do perdão mencionado no seu artigo 1º. Porém, o juiz da causa recusou a aplicação da Lei n.º 29/99, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
A decisão recorrida fundamentou a recusa de aplicação das normas questionadas (artigo 1º e 2º, n.º2, alínea n), da Lei n.º 29/99), por considerar que não era possível fazer quer uma interpretação analógica (que considerou legalmente inadmissível) quer uma interpretação extensiva de tais normas, que afastou por entender que o teor literal da norma em causa não oferecia qualquer suporte para o efeito. De facto, tal decisão, reconhecendo que a formulação literal de tais normas apenas abrangia os tipos legais de crime previstos nas normas expressamente identificadas do Decreto-Lei n.º 15/93, não lhes sendo aplicável o perdão de pena, entendeu que devia ser dado o mesmo tratamento a tipos legais de crime previstos no diploma de 1983 que antecedeu o Decreto-Lei nº15/93, pelo que o perdão constante do artigo 1º da Lei n.º 29/99 também não devia aplicar-se aos condenados por tipos legais de crime, agora previstos no diploma que antecedentemente regulava a matéria do tráfico de estupefacientes – o Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro -, como era o caso dos autos, ainda que, na lei, nenhuma referência fosse feita a tal diploma. Por essa razão, a solução que fizesse beneficiar os condenados ao abrigo do diploma de 1983 pelo crime de tráfico de estupefacientes, do perdão previsto na Lei n.º
29/99, seria manifestamente inconstitucional, pois não se encontrava uma justificação razoável para tal benefício, sendo certo que o diploma de 1983 não foi expressamente referido na lei de amnistia e perdão genérico de 1999.
4. – O Tribunal Constitucional, em princípio não pode sindicar a aplicação de normas infra-constitucionais. De facto e, em jeito de advertência preliminar, dir-se-á que o Tribunal só tem que se pronunciar sobre a interpretação a que procedeu uma decisão recorrida quando esta tiver extraído de normas de direito ordinário um sentido que lhe permita vir a recusar a aplicação da norma ou normas em questão com fundamento na violação da Lei Fundamental, independentemente dos casos em que a norma é adequadamente arguida de inconstitucionalidade e, apesar disso, é aplicada.
No caso dos autos, é bem claro que a decisão em apreciação teve por base a recusa de aplicação do sentido atribuído por interpretação a determinada norma, no desenvolvimento de um processo argumentativo em que se fez intervir como parâmetro de validade o princípio constitucional da igualdade. Se a decisão recorrida eventualmente tivesse percorrido outras vias interpretativas, não se teriam colocado questões de constitucionalidade. Mas, porque assim não foi, subsiste no ordenamento um juízo de inconstitucionalidade de uma norma sobre o qual o Tribunal não pode deixar de se pronunciar.
A questão que se suscita nos autos é, pois, a de saber se deverá manter-se o julgamento de inconstitucionalidade das normas objecto do presente recurso.
5. - Nos termos do artigo 161º, alínea f), da Constituição compete à Assembleia da República conceder 'amnistias e perdões genéricos'. Com tal redacção que vem já da primeira revisão constitucional, em que se aditou a expressão «perdões genéricos», ficando assim claro que este poder da Assembleia podia coexistir com o poder do Presidente da República de conceder indultos ou comutação de penas, de carácter individual.
De acordo com o artigo 127º do Código Penal (CP), 'a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto'. Nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4, do artigo 128º do mesmo Código, 'a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como medida de segurança'; 'o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte'; o indulto extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei'.
Tradicionalmente, entendia-se que a amnistia era uma providência que «apaga» o crime, enquanto que o indulto é uma medida que extingue ou modifica a pena. Actualmente, entende-se que a amnistia é um pressuposto negativo da punição, com o mesmo regime jurídico (quanto ao efeito principal) do perdão genérico: pretende-se impedir que o agente sofra a sanção a que já foi (ou pode vir a ser) condenado, diferençando-se do indulto pelo carácter geral da amnistia e do perdão em contraposição com o carácter individual do indulto (veja-se, para maior pormenorização das diferenças e semelhanças, o Acórdão n.º 444/97, in 'Diário da República', IIª Série, de 22 de Julho de 1997 e 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 37º Vol., pág. 289; Figueiredo Dias, 'Direito Penal Português. As consequências Jurídicas do crime', Aequitas, 1993, pág.688/689).
A amnistia dirige-se à infracção enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas; pelo seu lado, o perdão genérico atinge apenas a sanção aplicada, determinando a sua extinção total ou parcial.
6. - No acórdão n.º 444/97 (já citado), tal como no Acórdão n.º 510/98 (publicado no 'Diário da República', IIª Série, de 20 de Outubro de 1998) analisaram-se detalhadamente as diferentes perspectivas da sindicabilidade das leis de amnistia e também a questão da eventual violação por tais leis do princípio da igualdade. Aí (Acórdão nº 444/97) se escreveu, depois de uma apreciação bastante completa dos diversos tipos de amnistia, o seguinte:
'Não é aqui possível, nem necessário para a decisão, discutir a constitucionalidade e, em particular, a conformidade com os princípios da igualdade de todos os tipos de amnistia atrás enunciados. Ela já foi afirmada, em princípio, pelo Acórdão n.º 301/97, da 2ª Secção (não publicado). Apenas se acentuará que a sua legitimação ou justa causa se mede em vista da totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito, e não se restringe aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido da realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado (...)'.
Actualmente, a amnistia ou o perdão genérico não podem ser considerados um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito.
De facto, a jurisprudência do Tribunal tem admitido o princípio de que a igualdade em leis de amnistia e de perdão genérico «só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis (Acórdão n.º
42/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º Vol., 1995, pág. 283, e
'Diário da República', IIª Série, de 13 de Abril de 1995; Acórdão n.º 152/95, in
'Diário da República', IIª Série, de 20 de Junho de 1995).
Todavia, na amnistia e/ou no perdão genérico avulta a ampla margem de manobra do legislador quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência a tomar, margem de manobra que acresce àquela que à partida assiste ao Estado na opção por punir, não punir ou deixar de punir e, em consequência, por tipificar penalmente determinados ilícitos, com carácter de sistematicidade e de relativa permanência dos pressupostos da punibilidade. Será de censurar o arbítrio, em que não se vislumbra um mínimo de racionalidade mas, como se disse na transcrição a que acabou de se proceder, nestes domínios da amnistia e do perdão genérico, há que ter em conta a totalidade dos fins do Estado, para além dos fins específicos do aparelho sancionatório e de prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. O quadro de fins mais genéricos é demasiado aberto, ao contrário do quadro de fins mais específicos referidos ao aparelho sancionatório, para que nele funcione com perfeita adequação um juízo de igualdade que faça apelo a raciocínios analógicos.
7. – Adiante-se desde já que não é possível acompanhar o entendimento em que se estribou a decisão recorrida: ser a distinção entre os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do diploma de 1983 e do diploma de 1993, no sentido de beneficiarem do perdão os primeiros em detrimento dos segundos constitui, em matéria da lei da amnistia e de perdão genérico, uma distinção arbitrária, ofensiva do princípio da igualdade.
Com a Lei nº 29/99 pretendeu o legislador comemorar os vinte e cinco anos do 25 de Abril de 1974, não transparecendo dos trabalhos preparatórios elementos que, de alguma forma, expliquem a razão por que foi aprovada a norma da alínea n) do nº2 do artigo 2º. Mas é de admitir, desde logo, a existência de uma distinção de situações, na medida em que entre os dois referidos diplomas sobre o regime penal do tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas se relevam diferenças, ainda que não de essência.
Essas diferenças registam-se no que se refere às penas cominadas e em menor grau na previsão dos tipos penais. Por outro lado, mais fortemente relevará a consideração de que o desfasamento temporal entre os dois diplomas poderia justificar uma intenção de não interferir na aplicabilidade da legislação mais recente, além de que, pelo menos quanto às infracções julgadas ao abrigo da disciplina de 1983, uma parte da pena proporcionalmente mais elevada já teria sido cumprida.
Se se analisarem mais de perto ambos os diplomas relativamente às normas referidas na Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, facilmente sobressaem os seguintes aspectos.
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro veio prevenir o tráfico e o consumo de estupefacientes, revogando, pelo seu artigo 75º, alínea a), o Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que, por sua vez, tinha como objectivo idêntica finalidade, tipificando ilícitos penais e contravencionais e prevendo penas quanto ao consumo e tráfico de estupefacientes. Todavia, embora sendo similar a estrutura e finalidade de ambos os diplomas, designadamente, as infracções previstas nos artigos 21º, 25º, 26º e 28º do diploma de 93 (que se referem ao tráfico de droga sob diversas formas e a associações criminosas ), a tais normas correspondem idênticas infracções do Decreto-Lei n.º 430/83, agora previstas nos artigos 23º a 28º, mas existem algumas diferenças.
Assim, no que se refere às penas cominadas, o artigo 23º do DL de 83 prevê uma pena que pode ir de 6 a 12 anos de prisão, enquanto que o artigo 21º do diploma de 93 prevê, para crime tipicizado de forma idêntica, uma pena de 4 a 12 anos de prisão. Nos números 2 de tal preceito prevêem-se também penas diferentes: o diploma de 83 comina uma pena de 8 a 16 anos de prisão e o de 93, uma pena de 5 a 15 anos; no caso do n.º3 do mesmo preceito de 83, correspondente ao n.º 4 do diploma de 93, a prisão cominada no primeiro diploma pode ir de 2 a 4 anos e no segundo de um a 5 anos.
Os crimes tipificados nos artigos 22º e 23º do diploma de 93 não têm equivalência no diploma de 83: o artigo 22º refere-se aos Precursores e o artigo 23º refere-se à conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos.
No diploma de 83, o artigo 24º refere-se ao tráfico de quantidades diminutas, crime que no diploma de 93 corresponde ao artigo 25º
(tráfico de menor gravidade): no primeiro caso prevêem-se penas de prisão de 1 a
4 anos e até 1 ano, consoante as substâncias ou preparações se compreendem nas tabelas I a III ou na tabela IV, respectivamente; no diploma de 93 as penas são de prisão de 1 a 5 anos e até 2 anos, consoante as substancias ou preparações se compreendem nas tabelas I a III, V e VI Ou na tabela IV, respectivamente.
Assim, embora se trate de actividades criminosas mais ou menos homogéneas, o certo é que existem diferenças de regulação que poderão ser relevantes. Desde logo, o diploma de 93 representa uma tomada de posição do legislador muito mais recente sobre a matéria em causa, podendo eventualmente justificar-se, por isso, que os casos de condenação ao abrigo desse diploma não fossem objecto do perdão genérico da Lei de 1999.
Por outro lado, as penas cominadas no diploma de 83 são não só genericamente mais graves do que as fixadas no diploma de 93 como também os respectivos limites mínimos são mais elevados e, em regra, a amplitude de variação é menor do que no caso das fixadas para correspondentes infracções do diploma de 93, o que torna o regime de 83 menos flexível.
Acresce ainda que, dado o tempo já decorrido desde a entrada em vigor do diploma de 83 compreende-se que o legislador da lei de amnistia e perdão genérico de 1999 não tenha excluído do âmbito da mesma tais crimes: as respectivas condenações estariam na recta final do seu cumprimento e o perdão poderia acelerar a sempre desejável ressocialização dos condenados por tais crimes.
São estas um conjunto de possíveis diferenças que poderiam motivar o legislador, no seu largo poder conformador, para não excluir do âmbito da lei de 1999 os condenados por crimes cometidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro e excluir desse âmbito os condenados por idênticos crimes cometidos ao abrigo do diploma de 1993.
Assim, não sendo necessário justificar a solução legislativa, mas apenas demonstrar que ela não atenta contra a Constituição, o certo é que não pode considerar-se arbitrário que o legislador tenha excluído do
âmbito da lei os condenados pela prática dos crimes ao abrigo da lei mais recente.
Na verdade, será de pressupor que o legislador, em 1993, procedeu a uma apreciação mais actual da tipicidade e da ilicitude e até, porventura, da própria necessidade da pena. A esta luz, não repugnará que a Lei nº 29/99 tenha vindo a limitar a sua aplicação aos casos de condenação ao abrigo da lei incriminadora de 1983, mais penalizadora e cujas condenações estariam já em fase quase terminal, e que tenha determinado - sem ir mais além, porque nesta parte se tratou de decretar um perdão genérico - apenas a redução do tempo das penas ainda em cumprimento.
De qualquer modo não se pode concluir pela existência de violação do princípio da igualdade, uma vez que não se trata de uma distinção arbitrária.
Nestes termos, tendo em atenção a larga margem de conformação legislativa da Assembleia da República na escolha dos casos a que se aplica a amnistia e o perdão genérico, cujos limites não foram ultrapassados no caso, o Tribunal Constitucional considera que a norma do artigo 1º, conjugada com a do artigo 2º, n.º2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, interpretada no sentido de apenas excluir do âmbito de aplicação da referida Lei os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e não excluir os condenados pela prática de idêntico crime, previsto e punido nos artigos 23º e 27º, alíneas c) e g), do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, não viola o princípio da igualdade e, em consequência, não é inconstitucional.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. não julgar inconstitucional o artigo 1º conjugado com o artigo 2º, n.º
2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio interpretado no sentido de apenas excluir do âmbito de aplicação da referida Lei os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro e não excluir os condenados pela prática de idêntico crime, previsto e punido nos artigos 23º e 27º, alíneas c) e g), do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, assim negando provimento ao recurso; e, b. em consequência, determinar a reformulação da decisão recorrida na parte impugnada, em consonância com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 4 de Julho de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
1. No projecto de acórdão que apresentei no processo n.º 534/99, e em que fiquei vencida, propus que o Tribunal Constitucional decidisse:
– interpretar a norma do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2º, n.º 2, alínea n), da mesma Lei, no sentido de que os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo dos artigos 23º e 27º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, não beneficiam do perdão previsto naquele primeiro preceito;
– revogar a decisão recorrida, para que, sendo reformada, aplicasse a norma do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2º, n.º 2, alínea n), da mesma Lei, com a interpretação indicada.
Passo a justificar o meu entendimento.
2. Como se diz no acórdão deste Tribunal n.º 25/00 (Diário da República, II Série, n.º 71, de 24 de Março de 2000, p. 5609 ss), 'de acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade'. Essa orientação encontra-se também espelhada, designadamente, no acórdão n.º 444/97 (Diário da República, II Série, n.º 167, de 22 de Julho de 1997, p. 8780), embora a propósito da Lei n.º 9/96, de 23 de Março (Lei de Amnistia), bem como no acórdão n.º 160/96 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 454, de Março de 1996, p. 267). Ora, não encontro qualquer justificação para que os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, beneficiem do perdão, contrariamente aos condenados por idêntico crime ao abrigo do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Desde logo, a singela circunstância de o diploma de 1993 representar uma 'tomada de posição do legislador muito mais recente' sobre o crime de tráfico de estupefacientes não constitui justificação para um tratamento diferenciado dos condenados por esse crime, em matéria de concessão de perdão. Caberia demonstrar por que motivo a antiguidade de um diploma legal impõe a concessão do perdão e por que motivo a novidade de um diploma legal exclui esse mesmo perdão, demonstração que não me parece possível. Em segundo lugar, a circunstância de as penas cominadas no diploma de 1983 poderem ser genericamente mais graves do que as fixadas no diploma de 1993 e a de os respectivos limites poderem ser mais elevados e com menor variação de amplitude não justificam uma como que compensação dos condenados ao abrigo do diploma de 1983, através da concessão do perdão. Caberia também demonstrar que os condenados ao abrigo da lei antiga o foram sempre com penas mais graves do que os condenados ao abrigo da lei nova e, sobretudo, explicar o motivo pelo qual aqueles condenados não beneficiaram da aplicação da lei nova, se concretamente ela lhes era mais favorável (artigo 29º, n.º 4, parte final, da Constituição). Em terceiro lugar, a concessão do perdão aos condenados ao abrigo do diploma de
1983 e a exclusão do perdão quanto aos condenados ao abrigo do diploma de 1993 não pode justificar-se pela desejável ressocialização dos primeiros. A ressocialização é objecto de regulamentação em sede própria, nomeadamente nas disposições relativas à concessão de liberdade condicional pelo tribunal de execução das penas, não se percebendo por que motivo a presente Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, teria tido tal preocupação relativamente aos condenados por tráfico de estupefacientes ao abrigo do diploma de 1983. A isto acresce que não está demonstrada a impossibilidade ou improbabilidade de haver condenações recentes pelo crime de tráfico de estupefacientes, ao abrigo do diploma de 1983
(relativamente às quais, portanto, inexiste o apontado objectivo ressocializador): pode ter sido recente o julgamento e o crime punido ao abrigo da lei antiga, para tanto bastando que tivesse sido cometido durante a vigência desta e a aplicação da mesma lhe fosse concretamente mais favorável.
3. Ao exposto acresce que fazer depender a concessão do perdão da circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes ter sido ou não punido ao abrigo do diploma de 1993 – estabelecendo-se, portanto, o ano de 1993 como referência temporal para a menor ou maior benevolência do legislador do perdão e da amnistia – suscita o problema de saber por que motivo não se adoptou idêntico critério na concessão do perdão aos condenados por outros crimes. Percorrendo as várias alíneas do n.º 2 do artigo 2º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, e adoptando a lógica interpretativa da decisão recorrida, confirmada pelo presente acórdão, chega-se às seguintes conclusões: em relação aos condenados por determinados crimes contra as pessoas, contra a economia e fiscais, por burla e por abuso de confiança (alíneas b) e e)), a concessão de perdão não depende da circunstância de o crime ter sido praticado ao abrigo de um diploma mais antigo ou mais recente, já que nos correspondentes preceitos não se faz qualquer referência a um diploma legal em concreto; em relação a outros crimes, a concessão de perdão depende da circunstância de a condenação ter ou não ocorrido ao abrigo de um diploma de 1984 (alínea i)); em relação a outros, de ter ou não ocorrido ao abrigo de um diploma de 1986, de 1987, de 1991 ou de 1995 (alíneas j), l), m), e o)); em relação aos crimes previstos no Código Penal, parece que a concessão do perdão depende da circunstância de o crime ter sido ou não punido nos termos da redacção introduzida pela última revisão desse Código (1998), já que esta alterou a numeração dos respectivos preceitos. Não existindo qualquer motivo sério para discriminar positivamente, ou beneficiar, os condenados por tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, face aos condenados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, só àqueles concedendo perdão, a adopção da interpretação dada pelo tribunal recorrido ao artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o seu artigo 2º, n.º 2, alínea n), viola efectivamente o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
4. É outra porém a interpretação que sustento e que não encontra obstáculo na letra da Lei.
Contrariamente ao que pretende a decisão recorrida, o artigo 1º, n.º
1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2º, n.º 2, alínea n), da mesma Lei, não concede o perdão aos condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro: mais concretamente, aos condenados ao abrigo ('à luz', na expressão da decisão recorrida) dos seus artigos 23º e 27º, alínea c), como é o caso do recorrido no presente processo. Com efeito, o artigo 2º, n.º 2, alínea n), daquela Lei, ao referir que não beneficiam do perdão os 'condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21º, 22º, 23º, 25º, 26º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro', não abrange apenas os condenados ao abrigo (ou à luz) destes preceitos. Também os condenados ao abrigo (ou à luz) de preceitos de lei anterior, por crime ainda previsto nos mencionados preceitos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estão abrangidos pela letra do artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Se bem se reparar – e é neste aspecto que a decisão recorrida não atenta suficientemente –, o artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, não determina que não beneficiam do perdão os condenados ao abrigo (ou à luz) de certos preceitos da lei nova (o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), mas que não beneficiam do perdão os condenados pela prática dos crimes previstos em certos preceitos dessa lei nova. Um dos crimes previstos nos preceitos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a que o artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, faz referência, é justamente o crime de tráfico de estupefacientes. Assim sendo, o crime pelo qual o recorrido foi condenado ainda está contemplado pelo teor literal do artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, pois que a ele se referem os preceitos para os quais esta Lei remete. Diga-se, aliás, que se os crimes de tráfico de estupefacientes praticados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro (como foi o caso do crime praticado pelo recorrido) não continuassem a ser punidos pelo Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, ter-se-ia operado a respectiva despenalização, por força do disposto no artigo 29º, n.º 4, parte final, da Constituição. Nesta medida, pode entender-se não só que esses crimes são abrangidos pelo teor literal do artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio – com a já mencionada referência a 'crimes previstos' e não a 'crimes praticados ao abrigo de' –, como também que esses crimes são punidos pelo próprio Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a eles ainda se reportando directamente os preceitos deste diploma (situação que, na perspectiva do tribunal recorrido, já permitiria a aplicação do artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio).
A identificação dos crimes excluídos do âmbito material de aplicação das medidas de clemência previstas na Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, é portanto feita, na parte que aqui interessa considerar, por referência a preceitos contidos no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Por isso, a norma do artigo
2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, deve ser interpretada no sentido de que através da remissão para aqueles preceitos legais se pretendeu referir o crime de tráfico de estupefacientes. Interpretando assim a norma constante do artigo 2º, n.º 2, alínea n), da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, não se extrai de tal norma, em conjugação com o artigo 1º, n.º 1, da mesma Lei, a atribuição de perdão aos condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes nos termos do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, como se sustentou na decisão recorrida.
5. Concluindo que o artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99 não contempla com o benefício do perdão os condenados por tal crime, deixa de colocar-se o problema de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, tratado na decisão recorrida. O mesmo é dizer que, assim interpretada, a norma sub iudicio já não é inconstitucional e que, sendo esta uma interpretação que a norma consente, é ela que o intérprete deve preferir. Por estas razões, nos termos do artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, entendo que se devia determinar que a decisão recorrida fosse reformada, para que aplicasse a norma questionada com a interpretação que considero constitucionalmente irrepreensível e que é a seguinte: os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo dos artigos 23º e 27º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, não beneficiam do perdão previsto no artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Maria Helena Brito