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Proc. nº 221/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Conservador do Registo Civil de Lamego, por auto de notícia de 28 de Setembro de 1999, instaurou, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, acção de registo, na modalidade de processo de justificação judicial, com o fundamento de que do registo de nascimento de M. P. constava, como data de nascimento, o dia 13 de Outubro de 1943, e, como pai e mãe, J. C. (declarante) e O. F., casados, quando se havia apurado que a data do nascimento era 23 de Junho de 1939 e que, no momento da declaração de nascimento, J. C. era casado
(civilmente) com R. F. e que havia contraído com O. F. casamento de consciência. Em consequência, o Conservador requereu o seguinte: a) se ordene a rectificação da menção data de nascimento da registada, constante do seu assento de nascimento, no sentido dele passar a constar que a mesma nasceu às vinte e uma horas do dia vinte e três do mês de Junho do ano mil novecentos e trinta e nove, bem como a consequente rectificação da menção idade da nubente, constante do assento de casamento que também lhe respeita, no sentido dele passar a constar que a mesma, nessa data, tinha vinte e um anos de idade; b) se ordene a supressão da menção relativa à qualidade de filha legítima da registada, constante do primeiro desses assentos, sem inclusão, porém, da qualidade de filha ilegítima, por a tal se opôr o nº 4 do art. 36º da Constituição da República; c) se declare a nulidade da maternidade constante do registo de nascimento, bem como da respectiva avoenga, e se ordene o cancelamento das respectivas menções, porém, sem que, tal implique a consignação das menções 'incógnita' 'incógnitos' porque discriminatórias e, como tal, hoje não admitidas; d) e, finalmente, se ordene a consequente alteração do nome da registada, num e noutro daqueles assentos, no sentido da perda do apelido 'da Fonseca', por falta do seu necessário suporte legal.
2. O juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, por decisão de
8 de Fevereiro de 2000, verificou que, em face dos elementos dos autos, a data do nascimento verdadeira é efectivamente o dia 23 de Junho de 1939, concluindo que o assento registal, nessa parte, é inexacto.
Quanto aos demais pedidos deduzidos pelo Conservador no processo de justificação judicial (supressão da menção relativa à qualidade de filho legítimo; declaração da nulidade da maternidade e da avoenga; cancelamento das respectivas menções; e alteração do nome do registado), o juiz considerou que os mesmos resultariam como consequência de se ter feito constar na declaração de nascimento que os pais da nascida eram casados entre si, o que era falso, referindo de seguida que a indagação acerca da legitimidade ou ilegitimidade da filiação, decorrente da eventual invalidade da maternidade (por os progenitores não serem casados entre si), apenas poderá ter lugar em acção de estado e não no
âmbito da acção de registo em causa.
Porém, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego afirmou, por outro lado, que as razões que impediam, à data, o ingresso da maternidade e da paternidade no assento de nascimento da registada são, do ponto de vista do direito vigente, inconstitucionais - por violação dos artigos 13º, 18º, 26º,
36º, nºs 1 e 4, e 68º, nº 2, da Constituição - e, como tal, não podem ser aplicadas.
Em consequência, determinou a rectificação do assento de nascimento apenas quanto à respectiva data.
3. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade da decisão de 8 de Fevereiro de 2000, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 23º, § 1º, do Decreto nº 2, de 25 de Dezembro de 1910, e
260º do Código do Registo Civil de 1932.
Junto do Tribunal Constitucional, o próprio Ministério Público, recorrente, apresentou alegações, suscitando dúvidas quanto à utilidade do recurso interposto, uma vez que a decisão recorrida considera que, relativamente ao objecto do processo (declaração de nulidade da maternidade), tal indagação apenas pode ter lugar em acção de estado.
Pronunciando-se sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada, tirou as seguintes conclusões:
1º - Nenhum preceito ou princípio constitucional obsta à rectificação do registo de nascimento, no que respeita ao estado civil dos progenitores, de modo a ser reposta, a todo o tempo, a verdade acerca de tal matéria, sempre que hajam sido prestadas falsas declarações no registo civil acerca da situação matrimonial, quer da mãe, quer do pai do registando.
2º - Não estando posta em causa, no processo de justificação judicial, a validade do acto de reconhecimento da paternidade por parte do pai natural, nem a normal publicidade conferida a tal acto, tido por perfilhação (mostrando-se, assim, precludido o carácter 'secreto' que à mesma deveria ser obrigatoriamente conferido) está ultrapassada a questão da eventual inconstitucionalidade da norma constante do § 1º do artigo 23º do Decreto nº 2, de 25 de Dezembro de
1910, enquanto consagra regime inibitório ou limitativo do livre reconhecimento da paternidade pelo pai biológico.
3º - É incompatível com o princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos fora da constância do matrimónio da mãe, consagrado no nº 4 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa, o estabelecimento, pelo artigo 260º e § único do Código de Registo Civil de 1932, da necessidade de um acto de perfilhação, estritamente pessoal, da mãe, relativamente ao estabelecimento da maternidade quanto aos filhos qualificados de 'ilegítimos' – enquanto se consentia, relativamente aos filhos 'legítimos', o estabelecimento da maternidade através de mera declaração de ciência ou conhecimento acerca do fenómeno biológico da gravidez e do parto, com dispensa neste caso, do referido carácter estritamente pessoal e voluntário do acto.
4º - Termos em que deverá confirmar-se, em parte, o juízo de inconstitucionalidade, expresso na decisão recorrida quanto à norma constante do artigo 260º e § único do Código de Registo Civil de 1932.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
III Fundamentação
5. Os preceitos submetidos à apreciação do Tribunal Constitucional têm a seguinte redacção: Art. 23º (...)
§ 1º Se um ou ambos os pais forem inábeis, por virtude de casamento ainda não dissolvido, para contrair matrimónio nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederem o nascimento do filho, a perfilhação só poderá ser feita por averbamento, embora no mesmo acto do registo, e em separado para cada pai que for inábil, considerando-se secreta essa perfilhação, para todos os efeitos, enquanto a inabilidade durar.
(...)
Art. 260º No registo civil não será admitida declaração de paternidade, maternidade ou avoenga, dos filhos ilegítimos, salvo quando o pai ou a mãe, pessoalmente ou por seu bastante procurador com poderes especiais, fizerem esta declaração.
§ único. Quando o pai ou a mãe não estiverem presentes, nem se fizerem representar, o registando será mencionado como filho de pai ou mãi incógnitos.
Sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que a apreciação do seu objecto tenha utilidade, que o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal a quo consubstancie a ratio decidendi da decisão recorrida, isto é, que a decisão tomada se fundamente nesse juízo, pois, se assim não acontecer, qualquer decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir não terá a virtualidade de alterar aquela decisão, sendo, nessa medida, inútil.
Nos presentes autos, o Tribunal Judicial da Comarca de Lamego apreciou a inexactidão da data do registo de nascimento, tendo determinado a sua rectificação.
Quanto aos pedidos fundados na circunstância de os progenitores da registada não se encontrarem casados entre si à data da declaração de nascimento, o Tribunal considerou que 'tal indagação' apenas pode ter lugar numa acção de estado e não no processo de justificação judicial, não determinando qualquer rectificação do assento quanto às matérias abrangidas por esses pedidos. Ora, o fundamento invocado é suficiente para o tribunal decidir como decidiu, isto é, a não pronúncia sobre os referidos pedidos encontra fundamento bastante e suficiente na delimitação do objecto do processo de justificação judicial (e, consequentemente, da acção de estado) feita pelo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego.
Porém, o Tribunal foi mais longe, dizendo que são inconstitucionais as razões que impediam, à data da respectiva declaração, o ingresso da maternidade e da paternidade no assento de nascimento. No entanto, tal afirmação consubstancia tão somente um obiter dictum no contexto da decisão recorrida, na medida em que pressupõe o conhecimento da validade da maternidade e, consequentemente, da veracidade ou não do assento no que respeita ao casamento dos progenitores, questões que são expressamente relegadas para o âmbito de uma acção de estado, sendo excluídas do processo de justificação judicial.
Desse modo, as considerações expendidas na decisão recorrida acerca da conformidade à Constituição das soluções legais em causa relativas ao registo civil constituem apenas um argumento de reforço, consistente na solução jurídica que o juiz daria ao caso se apreciasse nos autos a questão relativa à validade da maternidade, apreciação que, como se demonstrou, é expressamente excluída, com fundamentos relativos à delimitação do objecto do processo de justificação.
Sublinhe-se, em reforço da interpretação da decisão recorrida que se propugna, que o fundamento da inconstitucionalidade invocado não impediria (ao invés, até imporia - cf. artigo 36º, nº 4, da Constituição) a procedência do pedido relativo à supressão da menção relativa à qualidade de filho legítimo da registada sem inclusão, porém, da qualidade de filho ilegítimo. No entanto, e como se notou, o juiz também não se pronunciou sobre esse pedido. Essa não pronúncia sobre a matéria questionada apenas ocorreu precisamente porque tal indagação só pode ter lugar em acção de estado, como expressamente se reconheceu.
Assim, a decisão recorrida, na parte em que não determinou as alterações do assento de nascimento requeridas (para além da respectiva data) fundamenta-se num dado entendimento relativo ao âmbito do processo de justificação judicial e da acção de estado e não na questão de inconstitucionalidade normativa suscitada (o juízo de inconstitucionalidade formulado não constitui, portanto, a ratio decidendi daquela decisão). Nessa medida, não se verifica o pressuposto da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade. III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade. Lisboa, 21 de Junho de 2000 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa