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Processo n.º 766/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., interpôs recurso de impugnação, nos termos do artigo 59.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, para o Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga – Juízo de Instância Criminal de Águeda, da decisão da Inspeção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território que a condenou em admoestação, pela prática de uma contraordenação previsto e punido pelos artigos 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, e 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, no pagamento de uma coima no valor de €1.000,00, pela prática de uma contraordenação previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 92/2006, de 25 de maio, no pagamento de uma coima no valor de €5.000,00, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 20.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 34.º, n.º 2, alínea f), e n.º 3, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03 de abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de julho, conjugado com a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, e no pagamento de uma coima no valor de €3.000,00, pela prática de uma contraordenação previsto e punido pelos artigos 18.º, n.º 1, e 34.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03 de abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de julho, conjugado com a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, e, em cúmulo jurídico, no pagamento da coima única no valor de €8.500,00.
O Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga – Juízo de Instância Criminal de Águeda, por decisão de 24 de junho de 2010, decidiu absolver a arguida da prática da contraordenação, previsto e punido pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, e, no mais, manter a decisão recorrida.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 6 de julho de 2011, negou provimento ao recurso,
Deste acórdão a arguida interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A., S.A., Recorrente no processo à margem referendado não se conformando com o douto acórdão, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional o que faz nos termos seguintes:
O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70 da Lei n.º 28/82.
A Recorrente é parte própria e legítima para a instauração do presente recurso.
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da Port.ª 80/2006 de 23-1; a qual viola os princípios constitucionais consagrados nos artigos 81, al. f) e art.º 86 da Constituição da Republica Portuguesa.
Foi a questão da inconstitucionalidade suscitada nos autos no recurso da decisão administrativa para o Juízo de Instância Criminal – Juiz 1 da Comarca do Baixo Vouga a fls. E ainda no recurso interposto da sentença a quo para o Tribunal de Relação de Coimbra (fls. ).
Pretende-se ainda a verificação da ilegalidade da Port.ª 80/2006 de 23-1.
A Portaria n.º 80/2006 estabeleceu uma nova contraordenação desobedecendo ao princípio da legalidade previsto no art.º 2 do D.L. 433/82 e ao disposto nos art.º 165, n.º 1, al. d) e art.º 198, n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa.”
A recorrente apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«[…]
Da Inconstitucionalidade da Portª 80/2006
a) Foi a Recorrente condenada no processo acima referenciado da prática da contraordenação p. p. pelos arts. 20, ns. 1, 2 e 3, artº 34, nº 2, al. f) do D.L. 78/2004, conjugada com a Portª 80/2006 de 23-01.
b) O artº 20 do D.L. 78/2004 estabelece os pressupostos para a obrigatoriedade de monitorização em contínuo;
c) A Portª 80/2006 estabelece os limiares mássicos mínimos e os limiares mássicos máximos para a aplicação da monitorização em contínuo.
d) No anexo desta portaria, na Tabela nº 1, primeiro asterisco é criada a obrigatoriedade da monitorização em contínuo, independentemente do volume mássico máximo, quando o combustível utilizado é o coque de petróleo.
e) Cria o asterisco uma descriminação de tratamento entre empresas do mesmo setor e do mesmo ramo quando todas obedecem às mesmas regras de autorização, licenciamento e de controlo dos limites de emissão.
f) Apenas é exigida a medição em contínuo de um único elemento, o dióxido de carbono (SO2).
g) A composição do coque de petróleo e a forma da sua combustão nos fornos das cerâmicas torna impossível em termos químicos que os limites estabelecidos na lei sejam ultrapassados.
h) O coque de petróleo tem um valor de enxofre constante, sempre inferior ao limite, ou seja, é impossível ultrapassar os limites legais do SO2.
i) Apenas para a combustão de coque de petróleo é imposta a monitorização independentemente de se atingir ou não os limites máximos.
j) A lei estabelece que se o caudal mássico for inferior ao mínimo não há obrigatoriedade de medição (D.L. 78/2004, artº 40, al. f))
k) No caso da combustão de coque de petróleo não existe essa exceção.
1) Até para a incineração de resíduos o nº 7 do artº 30 do D.L. 85/2005 de 28-4 prevê exceções na realização da monitorização em contínuo, tal não acontece na combustão de coque de petróleo.
m) Não há motivos económicos para a diferenciação em relação ao combustível porque Portugal não é autossuficiente ou produtor de qualquer combustível utilizado na indústria cerâmica – gás natural e coque de petróleo.
n) Viola a Portaria nº 80/2006 de 23-1 o princípio da universalidade previsto no artº 12, nº 2 da CRP no tratamento e abrangência de todas as empresas; o princípio da livre concorrência e acesso igual de todas as empresas no mercado estabelecido no artº 81, al. f) da CRP ao criar regras diferentes para situações iguais interferindo ao nível da concorrência empresarial; e o artº 86 da CRP, pois ao criar desigualdades de tratamento obsta ao incentivo e, mesmo, à eficaz fiscalização das empresas.
o) Pelo que o asterisco primeiro previsto na Portª 80/2006 deve ser declarado inconstitucional, não podendo as normas que preveem a monitorização em contínuo para a combustão de coque de petróleo serem aplicadas.
Da não apreciação da ilegalidade da Portª 80/2006
p) A Recorrente está a ser condenada pela prática de uma contraordenação inexistente no ordenamento jurídico.
q) O D.L. 78/2004 não estabelece uma contraordenação para a situação em que não existe a medição em contínuo nos estabelecimentos que utilizam coque de petróleo, mas sim uma contraordenação para aqueles que não realizam a medição em contínuo quando ultrapassados os limites mássicos máximos estabelecidos na Portª 80/2006.
r) Nos termos do artº 70, nº 1, al. f) e nº 2 da Lei nº 28/82 pode ser apreciada a ilegalidade suscitada durante o processo.
s) A Portª 80/2006 viola o estabelecido na Lei nº 13/95 de 5-5 que autoriza o governo a rever o regime social do ilícito de mera ordenação social.
t) Autorização que impõe o reforço das garantias dos arguidos perante o exercício do poder sancionatório (artº 2) uma das quais é o princípio da legalidade (artº 29 da CRP), do qual o artº 2 do D.L. 433/82 é corolário.
Da Ilegalidade/inconstitucionalidade da Portª 80/2006
u) A Portaria nº 80/2006 estabeleceu uma nova contraordenação desobedecendo aos preceitos previstos nos artº 165, nº 1, al. d) e artº 198, nº 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa.
v) O D.L. 78/2004 fixa no artº 20 que estão sujeitas à monitorização em contínuo as emissões que ultrapassem os limites mássicos máximos fixados nas portarias.
w) A Portª 80/2006 de 23-1 fixa os limiares mássimos mínimos e máximos das emissões e amplia o disposto no artº 20 do D.L. 78/2004 ao impor na tabela nº 1, primeiro asterisco, um novo elemento típico da contraordenação, o combustível.
x) É da competência relativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime dos atos ilícitos de mera ordenação social e respectivos pressupostos (artº 165. nº 1, al. d) da C.R.P.).
y) A portaria visa complementar o decreto-lei 78/2004 mas fixa a obrigatoriedade de monitorização em contínuo quando utilizado o combustível coque de petróleo.
z) Ultrapassando assim quer a competência do governo para criar e alterar as normas e os pressupostos de aplicação de uma contraordenação.
aa) Pelo que deve ser apreciada a questão da ilegalidade/inconstitucionalidade pois há a criação de um ilícito de mera ordenação social por portaria, sem competência por parte do órgão emitente (uma vez que desacompanhado da respetiva autorização legislativa);
bb) Constituindo uma inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto no artº 165, nº 1, al. d) e artº 198, nº 1, al. b) da C.R.P..»
A recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«1. Foi imputada à recorrente a prática de uma contraordenação prevista e punida nos art. 20.º e 34.º n.º 2 alínea f) do Decreto Lei n.º 78/2004, pelo incumprimento da obrigação de proceder à monitorização em continuo das emissões poluentes resultantes da utilização de coque de petróleo como combustível na respetiva indústria.
2. A obrigação da monitorização em contínuo das emissões do poluente SO2, no caso de utilização de coque de petróleo como combustível, está prevista na Portaria n.º 80/2006, de 23 de dezembro, que define os valores dos limiares mássicos máximos e mínimos dos elementos poluentes na emissões (VLE).
3. A Portaria foi emitida ao abrigo da norma habilitante do art.º 17.º n.º 1 do Decreto-Lei 78/2004.
4. A monitorização em contínuo do SO2 independentemente dos VLE é uma exceção prevista na Portaria que sujeita o operador ao regime previsto no art.º 20.º do Decreto-Lei n.º 78/2004.
5. A referida exceção não contende com os princípios da igualdade e da universalidade, na medida em que o legislador ao fixar regras específicas para situações de utilização de um determinado tipo de combustível não limita a escolha das empresas quanto ao tipo de combustível a utilizar na respetiva atividade produtiva.
6. A Portaria não criou nenhum ilícito de mera ordenação social. Na verdade, apenas se limitou a estabelecer os valores dos limiares de emissões poluentes. Limites dos quais decorre o regime material ao qual ficam obrigados os operadores, consoante sejam abrangidos pelo art.º 19º ou 20º do Decreto lei nº 78/2004
7. O facto de se fixar a monitorização em continuo como obrigatória mais não é do que uma exceção à definição dos limites mássicos, não constituindo um novo ilícito. Continua a integrar o conceito de limites mássicos que, na situação do SO2 proveniente do coque de petróleo tem de ser monitorizado em continuo, independentemente desses valores.
8. A apresentação gráfica da norma através do recurso a um asterisco é irrelevante quanto ao sentido e conteúdo da mesma.
9. Improcede o pedido de declaração de inconstitucionalidade por violação dos princípios constitucionais.
10. Uma vez que o diploma habilitante é um Decreto-lei do Governo emitido no uso de poder legislativo, o Tribunal não deve conhecer do pedido de declaração de inconstitucionalidade ao abrigo da alínea f) do artº 70 da LOFPTC.
Termos em que decidindo da forma supra exposta Vossas Excelências, Colendos Conselheiros, decidirão como é de JUSTIÇA!»
O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
«[…]
1.º Porque não era enquadrável em nenhuma das alíneas do n.º 1 do art.º 70.º da LTC - única ilegalidade para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional é competente -, não se deve conhecer do pedido de ilegalidade da Portaria n.º 90/2006, de 23 de janeiro.
2.º Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, 2 e 3 e 34.º, n.º 2, alínea f) e 3 do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, na redação do Decreto-Lei n.º 126/2006, de 3 de julho constitui contraordenação punível, no caso de negligência, com coima de € 250 a € 22.400, a não monitorização em contínuo das emissões poluentes, quando tal monitorização é obrigatória.
3.º Tendo o Decreto-Lei n.º 78/2004, sido emitido pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria (artigo 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição), mas mostrando-se respeitador do Regime Geral de Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), aquelas normas não são organicamente inconstitucionais (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição).
4.º O artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 78/2004 ao remeter para a portaria a fixação do limiar mássico máximo a partir do qual a monitorização em contínuo é obrigatória, não viola o princípio da legalidade.
5.º A Portaria n.º 80/2006 (Tabela n.º 1, do Anexo) é perfeitamente clara – sendo indiferente que tal disposição conste de um asterisco – quando dispõe que para as instalações que consomem coque de petróleo como combustível, a monitorização em contínuo é de caráter obrigatório, independentemente do caudal mássico.
6.º Atendendo aos objetivos visados pelo legislador ao editar o Decreto-Lei n.º 78/2004 e gozando ele de uma ampla liberdade de conformação, a maior exigência para aqueles agentes que utilizam coque de petróleo nas instalações, não se traduz numa opção arbitrária e desprovida de fundamento material bastante, não sendo violadora do princípio da igualdade e da livre concorrência.
7.º Assim, não sendo inconstitucional a Portaria, na parte referida, deve negar-se provimento ao recurso.»
Fundamentação
1. Do não conhecimento do recurso na parte respeitante à questão da ilegalidade da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro
As hipóteses em que, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, está cometida ao Tribunal Constitucional a competência para apreciação de determinadas e específicas ilegalidades “qualificadas”, reportadas a normas necessariamente constantes de determinados diplomas, encontram-se tipificadas nas alíneas c), d), e) e f), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC.
Tais situações integram a figura da “inconstitucionalidade indireta”, decorrente de certas normas não se conformarem com a hierarquia das fontes normativas delineada pela própria Constituição. Atribui-se, assim, ao Tribunal Constitucional, um específico e particular controlo da legalidade normativa nos casos em que esta se conexiona com a garantia da legalidade (constitucionalmente) reforçada (alínea c)) ou com a tutela da autonomia regional e respetivos limites (alíneas d) e e)).
Assim, e face à enumeração taxativa constante deste preceito, está subtraída ao Tribunal Constitucional a competência para apreciar e sindicar, no âmbito da fiscalização concreta, outros possíveis fundamentos de ilegalidade normativa (os quais competem, nos termos gerais, às diferentes ordens jurisdicionais).
A Recorrente alega que foi condenada pela prática de uma contraordenação que não existe no ordenamento jurídico, uma vez que o Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, não estabelece nenhuma contraordenação para a situação em que não existe a medição, em contínuo, nos estabelecimentos que utilizam coque de petróleo, mas sim uma contraordenação para aqueles que não realizam a medição em contínuo quando ultrapassados os limites mássicos máximos estabelecidos na Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro. Sustenta, por isso, que esta portaria viola o estabelecido na Lei n.º 13/95, de 5 de maio, que autoriza o governo a rever o regime do ilícito de mera ordenação social.
Conclui que a ilegalidade da referida Portaria deve ser apreciada nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2 da LTC.
Segundo este preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e), do n.º 1 do aludido artigo.
Ou seja, o recurso ao abrigo desta alínea f) pressupõe a aplicação de norma cuja ilegalidade tenha sido suscitada com um dos seguintes fundamentos:
- aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (alínea c);
- aplicação de norma constante de diploma regional, com fundamento na sua ilegalidade, por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República (alínea d);
- aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma (alínea e).
No caso dos autos, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Coimbra, a Recorrente não suscitou, de forma clara, expressa e precisa, a ilegalidade de qualquer norma, com qualquer dos citados fundamentos.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a Recorrente refere que pretende a apreciação da ilegalidade da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, porque esta “estabeleceu uma nova contraordenação desobedecendo ao princípio da legalidade previsto no art.º 2 do D.L. 433/82 e ao disposto nos art.º 165, n.º 1, al. d) e art.º 198, n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa”.
E, nas suas alegações de recurso, a Recorrente sustenta nas respetivas conclusões que:
«s) A Portª 80/2006 viola o estabelecido na Lei nº 13/95 de 5-5 que autoriza o governo a rever o regime social do ilícito de mera ordenação social.
t) Autorização que impõe o reforço das garantias dos arguidos perante o exercício do poder sancionatório (artº 2) uma das quais é o princípio da legalidade (artº 29 da CRP), do qual o artº 2 do D.L. 433/82 é corolário».
Ora, conforme resulta da passagem transcrita, o fundamento da ilegalidade normativa que a Recorrente pretende ver sindicada não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas nas alíneas c) a f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pelo que o Tribunal Constitucional não tem competência para conhecer do recurso nesta parte, sem prejuízo de, com base em alguns dos fundamentos invocados, poder ser apreciada, como a seguir se fará, a inconstitucionalidade orgânica da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro.
2. Do mérito do recurso
A Recorrente invocou a inconstitucionalidade orgânica da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, alegando que esta criou uma nova contraordenação, desobedecendo aos preceitos previstos nos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e artigo 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Invocou ainda a Recorrente a inconstitucionalidade material da referida portaria, sustentando que a mesma, ao criar a obrigatoriedade de monitorização em contínuo, independentemente do volume mássico, quando o combustível utilizado é o coque de petróleo, viola o princípio da universalidade, previsto no artigo 12.º, n.º 2, da Constituição, no tratamento e abrangência de todas as empresas, o princípio da livre concorrência e acesso igual de todas as empresas no mercado, estabelecido no artigo 81.º, alínea f), da Constituição, ao criar regras diferentes para situações iguais interferindo ao nível da concorrência empresarial, e o artigo 86.º da Constituição, pois, ao criar desigualdades de tratamento, obsta ao incentivo e mesmo à eficaz fiscalização das empresas.
2.1. Da inconstitucionalidade orgânica
Segundo a Recorrente, a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro estabeleceu uma nova contraordenação, desobedecendo aos preceitos previstos nos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Concretizando, alega a Recorrente que o Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03 de abril, estabelece no seu artigo 20.º que estão sujeitas à monitorização em contínuo as emissões superiores aos limites mássicos máximos, remetendo para as portarias previstas no artigo 17.º, n.º 1, a fixação desses mesmos limites.
Contudo, sustenta a Recorrente, que a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, para além de fixar os limiares mássicos mínimos e máximos das emissões, criou um novo elemento do tipo para a contraordenação prevista no artigo 20.º e na alínea f) do n.º 2 do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, criando deste modo uma nova contraordenação, uma vez que o referido Decreto-Lei não fixa o caráter obrigatório para a medição em contínuo nos estabelecimentos que utilizam coque de petróleo, nem estabelece qualquer sanção específica para essa factualidade.
Assim, continua a Recorrente, sendo da competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime dos atos ilícitos de mera ordenação social e respetivos pressupostos (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição), a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, ao fixar a obrigatoriedade de monitorização em contínuo, quando utilizado o combustível coque de petróleo, determinando o sancionamento do seu incumprimento, ultrapassou a competência do Governo para criar e alterar as normas e os pressupostos de aplicação de uma contraordenação.
Conclui, por isso, que foi criado um ilícito de mera ordenação social por portaria, sem competência por parte do órgão emitente, uma vez que desacompanhado da respetiva autorização legislativa, o que constitui uma inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Antes de mais, vejamos o teor das normas pertinentes para apreciação da presente questão de constitucionalidade, tendo presente que está em causa, no que para o caso releva, a condenação da Recorrente pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 20.º e 34.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, conjugados com a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro.
Estas normas estão integradas em legislação que tem como escopo a proteção do ar, enquanto componente do ambiente natural.
Não obstante existirem anteriormente diversas medidas dispersas, o primeiro diploma que assumidamente pretendeu definir uma política nacional de gestão do ar, intervindo nesta matéria, foi o Decreto-Lei n.º 255/80, de 30 de julho, tendo como objetivo o controlo da poluição atmosférica, com vista a reduzir ou eliminar os perigos para a saúde das populações e limitar os danos ambientais a um mínimo compatível com o interesse da comunidade, designadamente, através da definição de valores limites de concentração para os vários poluentes.
Posteriormente, coube à Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de abril), definir a orientação de partida da proteção do ar como componente ambiental natural.
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 352/90, de 9 de novembro, que revogou o Decreto-Lei n.º 255/80, de 30 de julho, procedeu-se à regulamentação das disposições em matéria de proteção do ar previstas na Lei de Bases do Ambiente, visando-se adotar medidas legislativas para salvaguarda da qualidade deste recurso natural através da redução e do controlo das emissões de contaminantes para a atmosfera, consignando-se ainda o quadro habilitante à transposição para direito interno da legislação comunitária existente na matéria, nomeadamente, da diretiva relativa às grandes instalações de combustão (n.º 88/609/CEE), da diretiva sobre prevenção da poluição atmosférica provocada por incineradores (n.º 89/369/CEE) e da diretiva que fixou novos valores limites e novos valores guias de qualidade do ar para o dióxido de enxofre e partículas (n.º 89/427/CEE), integrantes do quadro da estratégia comunitária para reduzir a poluição atmosférica.
O Decreto-Lei n.º 352/90, de 9 de novembro, veio a ser parcialmente revogado com a publicação do Decreto-Lei n.º 276/99, de 23 de julho, que procedeu à transposição para o direito interno da Diretiva n.º 96/62/CE, relativa à gestão da qualidade do ar, introduzindo mecanismos e instrumentos de intervenção mais eficazes e modernos.
A parte remanescente, do referido Decreto-Lei n.º 352/90, de 9 de novembro, que se encontrava ainda em vigor, veio a ser revogada pelo Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, que procedeu à sua completa reforma.
Como consta do seu preâmbulo, este Decreto-lei n.º 78/2004, de 3 de abril, teve como propósito «possibilitar uma resposta mais eficaz e ajustada às necessidades de atualização de conceitos, metodologias, princípios e objetivos e, de um modo geral, definir os traços fundamentais de uma verdadeira política de prevenção e controlo da poluição atmosférica, estabelecendo um adequado regime sancionatório», bem como «a introdução de mecanismos económicos e fiscais na área das emissões de poluentes que tornem possível a satisfação de compromissos internos e internacionais em sede de prevenção e redução da poluição atmosférica, bem como a definição da base estruturante da elaboração dos inventários de emissões nacional e regionais».
No que respeita aos referidos compromissos internacionais, assume particular relevância o Protocolo relativo à redução da acidificação, da eutrofização e do ozono troposférico («Protocolo de Gotemburgo»), adotado em 30 de novembro de 1999, pelo órgão executivo da Convenção sobre a poluição atmosférica transfronteiriça a longa distância, no qual se fixam os níveis máximos tolerados de emissão (valores-limite de emissão) aplicáveis em cada parte nacional, a ser atingidos até 2010, no que respeita aos quatro principais poluentes precursores responsáveis pela acidificação, eutrofização ou ozono troposférico: o dióxido de enxofre, os óxidos de azoto, os compostos orgânicos voláteis e o amoníaco. Protocolo esse que, conforme resulta do seu artigo 2.º, tem como objetivo “(…) controlar e reduzir as emissões de enxofre, óxidos de azoto, amoníaco e compostos orgânicos voláteis, causadas por atividades antropogénicas e suscetíveis de provocar efeitos nocivos sobre a saúde humana, os ecossistemas naturais, os materiais e as culturas, devido à acidificação, à eutrofização ou ao ozono a nível do solo, em resultado do transporte atmosférico transfronteiriço a longa distância, e assegurar, na medida do possível, que a longo prazo e numa abordagem progressiva, tendo em conta os progressos do conhecimento científico (…)”.
A Comunidade Europeia aderiu a este protocolo por Decisão do Conselho de 13 de junho de 2003 (cfr. JOCE n.º L 179, de 17 de julho de 2003, pág. 1 e ss.).
No entanto, ao nível da União Europeia, assumem também relevância outros instrumentos normativos que haviam sido já adotados nesta matéria, designadamente, a Diretiva 2001/81/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2001, relativa ao estabelecimento de valores-limite nacionais de emissão de determinados poluentes atmosféricos, que fixava já valores-limite nacionais vinculativos de emissão, a ser atingidos o mais tardar em 2010 (e que eram iguais ou mais ambiciosos do que os exigidos no Protocolo de Gotemburgo para cada Estado-Membro), bem como a Diretiva 1999/30/CE do Conselho, de 22 de abril de 1999, relativa a valores-limite para o dióxido de enxofre, dióxido de azoto e óxidos de azoto, partículas em suspensão e chumbo no ar ambiente.
Inserindo-se nesta estratégia definida ao nível da União Europeia, o Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, veio fixar os principais objetivos e instrumentos apropriados à garantia da proteção do recurso natural ar, bem como as medidas, procedimentos e obrigações dos operadores das instalações abrangidas, com vista a evitar ou reduzir a níveis aceitáveis a poluição atmosférica originada nessas mesmas instalações.
Um dos instrumentos inseridos nessa estratégia de prevenção e controlo da poluição atmosférica é, justamente, a fixação de valores limite de emissão na fonte para os poluentes mais significativos (aplicáveis às emissões de SO2, NOx, COV, NH3, para além dos compostos halogenados, partículas e metais), pelos seus efeitos na saúde das populações e no ambiente em geral.
Assim, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, começa com a clarificação de alguns conceitos e definições, para efeitos deste diploma e demais legislação complementar. De acordo com esta norma, entende-se por:
“[…]
g) «Caudal mássico» a quantidade emitida de um poluente atmosférico, expressa em unidades de massa por unidade de tempo;
[…]
ii) «Limiar mássico máximo» o valor do caudal mássico de um dado poluente atmosférico acima do qual se torna obrigatória a monitorização em contínuo desse poluente;
jj) «Limiar mássico mínimo» o valor do caudal mássico de um dado poluente atmosférico abaixo do qual não é obrigatório o cumprimento do respetivo valor limite de emissão;
[…]
aaa) «Valor limite de emissão ou VLE» a massa de um poluente atmosférico, expressa em termos de determinados parâmetros específicos, em concentração, percentagem e ou nível de uma emissão que não deve ser excedida durante um ou mais períodos determinados e calculada em condições normais de pressão e temperatura.”
O artigo 17.º deste Decreto-Lei define em que termos são fixados os valores limite de emissão (VLE):
«Artigo 17.º
Aplicação de VLE
1 — Os VLE aplicáveis às fontes de emissão abrangidas pelo presente diploma são fixados por portarias conjuntas dos Ministros da Economia, da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas e das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente.
2 — A aplicação e o cumprimento dos VLE fixados nas portarias referidas no número anterior são obrigatórios para todas as fontes de emissão, sem prejuízo do disposto no artigo 27.º
3 — O cumprimento dos VLE presume-se assegurado desde que observadas as disposições constantes dos artigos 18.º a 27.º do presente diploma.
4 — As disposições legais relativas às grandes instalações de combustão, às instalações abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 242/2001, de 31 de agosto, e às instalações de incineração de resíduos prevalecem sobre as constantes do presente diploma, sem prejuízo da sua aplicação subsidiária.»
O artigo 20.º do referido Decreto-Lei, por seu turno, determina quais as emissões de poluentes sujeitas a monitorização em contínuo:
«Artigo 20.º
Monitorização em contínuo
1 — Estão sujeitas a monitorização em contínuo as emissões de poluentes cujo caudal mássico de emissão ultrapasse o limiar mássico máximo fixado nas portarias a que se refere o n.º 1 do artigo 17.º
2 — Para obtenção de um valor médio diário válido não podem ser excluídos mais de seis valores médios horários num mesmo dia devido a mau funcionamento ou à reparação/manutenção do sistema de medição em contínuo.
3 — Caso se verifique a anulação de mais de 36 valores médios diários num ano, devida a mau funcionamento ou à reparação/manutenção do sistema de medição em contínuo, o IA pode exigir que o operador tome as medidas adequadas para melhorar a fiabilidade do sistema em causa.
4 — As situações abrangidas pelo n.º 1 em que se comprove não ser tecnicamente possível proceder à monitorização em contínuo das emissões de poluentes atmosféricos são analisadas caso a caso.
5 — Para efeitos do número anterior, o operador apresenta um plano de monitorização alternativo à entidade coordenadora do licenciamento, que o remete ao IA, para decisão sobre a aprovação do plano, no prazo de 90 dias seguidos a contar da data da sua receção.»
Por sua vez, o artigo 34.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03 de abril, estabelece que:
«2 — Constitui contraordenação grave, punível com coima de €500 a €3700, no caso de pessoas singulares, e de €5000 a €44 800, no caso de pessoas coletivas:
[…]
f) Não cumprimento da obrigação de monitorização em contínuo, nos termos exigidos nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 20.º;
[…]»
Na altura, as Portarias que definiam os valores a que se referiam os artigos 17.º e 20.º, eram as Portarias n.º 286/93, de 12 de março, n.º 1058/94, de 2 de dezembro, e 1387/2003, de 22 de dezembro, tendo o artigo 42.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, determinado que com a entrada em vigor de novas portarias ficaria revogado o disposto nos n.º 5 e 6, da Portaria n.º 286/93, de 12 de março e as restantes portarias.
Só em 23 de janeiro de 2006 é que foi publicada a Portaria 80/2006, que dispõe, no seu artigo 1.º:
«Os limiares mássicos mínimos e os limiares mássicos máximos que definem as condições de monitorização das emissões de poluentes para a atmosfera, previstas nos artigos 19.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, são os fixados no anexo da presente portaria, da qual faz parte integrante.»
A Tabela n.º 1 do Anexo referido neste artigo 1.º da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, tem o seguinte teor:
De acordo com esta tabela, o limiar mássico mínimo relativo ao dióxido de enxofre é de 2 quilogramas/hora, sendo o respetivo limiar mássico máximo de 50 quilogramas/hora. Contudo, conforme consta de nota, assinalada com um asterisco, tais valores não são aplicáveis às instalações de combustão que consomem coque de petróleo como combustível, para os quais o regime de monitorização em contínuo é de caráter obrigatório independentemente do caudal mássico.
É esta previsão específica para as instalações que utilizam coque de petróleo como combustível que a Recorrente questiona, sustentando que, ao fixar-se desta forma a obrigatoriedade de monitorização em contínuo quando utilizado o combustível coque de petróleo, ultrapassando a competência do Governo para criar e alterar as normas e os pressupostos de aplicação de uma contraordenação, foi criado um ilícito de mera ordenação social por portaria, sem competência por parte do órgão emitente, uma vez que desacompanhado da respetiva autorização legislativa
Vejamos se lhe assiste razão.
Conforme dispõe o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, inclui-se na reserva legislativa parlamentar, a definição do regime geral dos atos ilícitos de mera ordenação social.
Relativamente a esta questão, o Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência no sentido de que apenas é matéria de competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social e do respetivo processo, ou seja, sobre a definição da natureza do ilícito contraordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contraordenações, a fixação dos limites das coimas e a definição das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções. Assim, dentro dos limites do regime geral, pode o Governo, no exercício da sua competência legislativa concorrente, criar contraordenações novas e estabelecer a correspondente punição, modificar ou eliminar contraordenações já existentes e moldar regras secundárias do processo contraordenacional (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 56/84, 158/92, 269/87, 345/87, 412/87, 175/97, 236/03 e 578/2009, acessíveis na Internet, como os restantes acórdãos que a seguir se referem sem outra menção, em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, não restam dúvidas que a definição de contraordenações e o estabelecimento da respetiva punição se inserem na competência legislativa do Governo, que goza de uma ampla liberdade nessa matéria, desde que a sua atuação se contenha dentro dos limites do regime geral do ilícito de mera ordenação social.
No caso dos autos, o comportamento objeto de censura contraordenacional consiste na violação da imposição da obrigatoriedade de monitorização em contínuo de determinadas emissões poluentes, resultando claro do Decreto-lei n.º 78/2004, de 3 de abril, concretamente, dos artigos 20.º, n.ºs 1 a 3, e 34.º, n.º 2, alínea f), que fixam o conteúdo de tal obrigação e a sanção para o incumprimento da mesma, qual a conduta que os agentes económicos dele destinatários devem adotar.
O referido Decreto-Lei foi emitido pelo Governo no uso da sua competência própria (cfr. artigo 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição), com respeito pelos limites estabelecidos no Decreto-Lei n.º 433/82, de 21 de outubro.
Por outro lado, a norma remissiva do artigo 20.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei não é uma norma em branco que delegue na portaria o poder de definir o conteúdo da incriminação ou a própria incriminação. Os critérios do ilícito contraordenacional encontram-se nas referidas normas dos artigos 20.º e 34.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, sendo que a fixação, feita pela portaria, dos limites a partir dos quais existe obrigatoriedade de monitorização em contínuo das emissões de poluentes não traduz um critério autónomo de ilicitude ou a formulação de um juízo valorativo de natureza contraordenacional, mas apenas a concretização da obrigação já constante do referido Decreto-Lei, sendo legítimo que o legislador remeta tal matéria para portaria por a mesma não estar sujeita a qualquer reserva de lei.
Daí que, quando na Portaria n.º 80/2006, de 23 de Janeiro, se estabelece que, para as instalações de combustão que consomem coque de petróleo como combustível, o regime de monitorização em contínuo é de caráter obrigatório, independentemente do caudal mássico, o legislador atua ainda com base nos poderes decorrentes da remissão efetuada pelo artigo 20.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, não se podendo concluir que, desta forma, tenha sido criada uma nova contraordenação, por portaria. Impor-se que, relativamente ao consumo de determinado produto, a monitorização em contínuo é sempre obrigatória, não deixa de se inserir na tarefa concretizadora de fixação dos limites a partir dos quais a emissão de poluentes deve ser monitorizada continuamente.
Em suma, o artigo 20.º do Decreto-Lei 78/2004, de 3 de abril, remete para portaria apenas o estabelecimento dos limites a partir dos quais é exigida a monitorização em contínuo das emissões de poluentes, não sendo a previsão contida no primeiro asterisco da Tabela n.º 1 do Anexo referido no artigo 1.º da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, que, em si mesma, cria qualquer contraordenação.
Finalmente, não se estando, nos termos expostos, perante matéria integrante da reserva de competência relativa da Assembleia da República (que, como vimos, abrange apenas o regime geral do ilícito de mera ordenação social e do respectivo processo), a intervenção legislativa do Governo na criação da contraordenação em causa nos autos e no estabelecimento da correspondente punição não carecia de qualquer autorização parlamentar, contrariamente ao que entende a Recorrente.
Não se pode, pois, entender, ao contrário do que sustenta a Recorrente, que tenha sido violado o disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
2.3. Da inconstitucionalidade material
A Recorrente pretende ainda ver sindicada a constitucionalidade material da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, alegando que a mesma viola os princípios constitucionais consagrados nos artigos 12.º, n.º 2, 81.º, alínea f), e 86.º da Constituição.
Segundo a Recorrente, no anexo desta portaria, na Tabela n.º 1, no primeiro asterisco, é criada a obrigatoriedade da monitorização em contínuo, independentemente do volume mássico máximo, quando o combustível utilizado é o coque de petróleo, originando-se, dessa forma, uma discriminação de tratamento entre empresas do mesmo setor e do mesmo ramo quando todas obedecem às mesmas regras de autorização, licenciamento e de controlo dos limites de emissão.
Refere ainda a Recorrente que apenas é exigida a medição em contínuo de um único elemento, o dióxido de enxofre (SO2), apesar de a composição do coque de petróleo e a forma da sua combustão nos fornos das cerâmicas tornar impossível em termos químicos que os limites estabelecidos na lei sejam ultrapassados, uma vez que o coque de petróleo tem um valor de enxofre constante, sempre inferior ao limite legal, sendo, por isso, impossível ultrapassar os limites estabelecidos para o SO2.
No entanto, alega a Recorrente, apenas para a combustão de coque de petróleo é imposta a monitorização independentemente de se atingir ou não os limites máximos, não estando prevista qualquer exceção, não havendo motivos económicos para a diferenciação em relação a este combustível porque Portugal não é autossuficiente ou produtor de qualquer combustível utilizado na indústria cerâmica – gás natural e coque de petróleo.
Sustenta, por isso, que a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, viola o princípio da universalidade previsto no artigo 12.º, n.º 2, da Constituição, no tratamento e abrangência de todas as empresas; o princípio da livre concorrência e acesso igual de todas as empresas no mercado, estabelecido no artigo 81.º, alínea f), da Constituição, ao criar regras diferentes para situações iguais interferindo ao nível da concorrência empresarial; e o artigo 86.º da Constituição, pois, ao criar desigualdades de tratamento obsta ao incentivo e, mesmo, à eficaz fiscalização das empresas.
a) Da violação do princípio da universalidade
Sob a epígrafe, “princípio da universalidade”, o artigo 12.º da Constituição dispõe, no seu n.º 1, que “todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”, acrescentando o n.º 2 que “as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.”
Trata-se de um princípio geral dos direitos fundamentais, do qual decorre que todas as pessoas são, ipso facto, titulares de direitos (e deveres) fundamentais.
Relativamente às pessoas coletivas, é-lhes reconhecida no n.º 2 deste artigo a capacidade de gozo de direitos (e de submissão a deveres), superando assim uma conceção de direitos fundamentais exclusivamente centrada sobre os indivíduos. Contudo, as pessoas coletivas não podem ser titulares de todos os direitos e deveres fundamentais, mas apenas daqueles que sejam compatíveis com a sua natureza. Saber quais são esses direitos implica uma análise casuística, que tenha em conta, desde logo, a própria natureza de cada um dos direitos fundamentais – sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas –, bem como da natureza das pessoas colectivas em causa.
No caso dos autos, não se vislumbra de que modo é que as normas sindicadas possam contender com o princípio da universalidade, sendo que a Recorrente se limita a afirmar que a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, viola o referido princípio consagrado no artigo 12.º, n.º 2, da Constituição, “no tratamento e abrangência de todas as empresas”.
Com efeito, a portaria em questão estabelece a obrigatoriedade de monitorização em contínuo das emissões por parte das empresas que utilizem o coque de petróleo como combustível. Ou seja, estabelece esta exigência para todas as empresas que usem este combustível, tendo em atenção os riscos especiais que resultam da utilização do mesmo, não se vendo, pois, que exista qualquer fundamento para que se conclua pela violação do aludido parâmetro constitucional.
b) Da violação do artigo 81.º, alínea f), da Constituição
A Recorrente sustenta ainda que a Portaria 80/2006, de 23 de janeiro, viola “o princípio da livre concorrência e acesso igual de todas as empresas no mercado estabelecido no artigo 81.º, al. f), da CRP, ao criar regras diferentes para situações iguais interferindo ao nível da concorrência empresarial”.
Este preceito constitucional dispõe o seguinte:
«Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:
[…]
f) Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”.
O princípio da concorrência é assumido como valor da organização económica, não devendo o Estado adotar medidas que injustificadamente prejudiquem uma oferta diversificada e competitiva no mercado, numa visão de que esse é o modo de racionalização da vida económica que mais beneficia o progresso económico e as condições de vida dos cidadãos.
As “incumbências” enunciadas no artigo 81.º da Constituição constituem um desenvolvimento, especificação e concretização, no plano económico-social das tarefas fundamentais do Estado contidas no art. 9.º (v., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, pág. 965-966, da 4.ª Edição Revista, da Coimbra Editora), sendo que tais “incumbências” terão maior ou menor determinabilidade jurídico-constitucional, maior ou menor densidade jurídica, consoante o seu maior ou menor grau de generalidade e de abstração.
Tratando-se de uma tarefa económica do Estado suportada numa norma constitucional com uma menor densidade e imediação de conteúdo, como é o caso da tarefa de “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas” estabelecida na norma do artigo 81.º, alínea f), da Constituição, o legislador está vinculado a um “dever de actividade finalisticamente orientado”, sendo que na realização de tal tarefa o legislador seleciona “determinantes autónomas” de atuação” (cfr. Gomes Canotilho, “Constituição dirigente e vinculação do legislador - Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas”, pág. 286-287, da 2.ª Edição, da Coimbra Editora).
Assim, a existência de inconstitucionalidade com fundamento na violação desta norma pressupõe que se conclua que, no caso concreto, o Estado não só não está a realizar esta tarefa, como, ao invés, está a contrariá-la diretamente.
Por outro lado, não se pode esquecer a possibilidade de conflitos positivos entre duas ou mais das tarefas da incumbência do Estado, tornando-se necessária uma tarefa de compatibilização ou concordância prática entre princípios conflituantes, tendo em consideração os princípios que definem as opções políticas e económicas fundamentais da Constituição e os critérios de ponderação que delas resultem. Assim, na concretização daquelas tarefas, o legislador não pode deixar de ter em atenção também a concretização de outras tarefas fundamentais do Estado previstas no artigo 9.º, da Constituição, entre as quais se inclui “d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;” e “e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território;”. Como não pode também esquecer outros valores e direitos constitucionalmente protegidos, como seja o direito, consagrado no artigo 66.º, n.º 1, da Constituição, a “um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado”, incumbindo ao Estado para assegurar o direito ao ambiente, nos termos da al. a) do n.º 2 deste artigo, “Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”.
A Recorrente entende que há uma discriminação de tratamento entre empresas do mesmo setor e do mesmo ramo devido ao combustível utilizado, sem que exista, em termos científicos, naturais ou económicos, qualquer justificação para essa diferenciação.
Para sustentar esta afirmação a Recorrente alegou que, atenta a composição do coque de petróleo e a forma da sua combustão nos fornos das cerâmicas, é impossível, em termos químicos, que os limites estabelecidos na lei sejam ultrapassados, uma vez que o coque de petróleo tem um valor de enxofre constante, sempre inferior aos limites legais, sendo impossível que pela combustão esse valor aumente. Mais refere que empresas que têm um risco muito maior, designadamente as que procedem à queima de resíduos perigosos, podem ficar sujeitas a monitorização pontual, desde que o respetivo operador faça prova que as emissões nunca ultrapassarão os limites estabelecidos, exceção essa que não se encontra prevista para a utilização de coque de petróleo, mesmo que se prove que os limites legais estabelecidos nunca foram nem serão ultrapassados.
Em primeiro lugar, há que referir que a opção normativa aqui sob fiscalização não deve ser considerada, em si mesma, uma limitação ao princípio da livre concorrência, nem uma discriminação entre empresas. Desde logo, porque todas as empresas que utilizem coque de petróleo estão sujeitas às mesmas regras, sendo que a todas é dada a possibilidade de optar por outro tipo de combustível.
Acresce que esta obrigação de monitorização em contínuo, especificamente para as empresas que utilizem este combustível, não visa discriminar arbitrariamente estas empresas em relação às restantes, assentando a opção questionada em critérios claros e objetivos, enunciados anteriormente à Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, no preâmbulo da portaria que a antecedeu na fixação dos referidos limites e que os introduziu - a Portaria n.º 1387/2003, de 22 de dezembro:
“Em anos recentes tem-se verificado um interesse crescente da indústria pela utilização do combustível sólido designado por coque de petróleo. Sendo este combustível tipicamente portador de elevados teores de impurezas difíceis de remover previamente à sua utilização, urge introduzir medidas de segurança e controlo para a proteção da vida humana e do ambiente.
Na verdade, não obstante o reconhecimento de um potencial de perigosidade gerador de nefastas consequências para a saúde humana e para o ambiente, nem todos os estabelecimentos industriais interessados no seu uso foram, até ao presente, obrigados a dispor de monitorização em contínuo das suas emissões atmosféricas.”
Acrescentando-se ainda nesse mesmo preâmbulo que “(...) a natureza dos processos da combustão do coque de petróleo não permite garantir sempre a eficácia e a representatividade de verificações pontuais espaçadas no tempo;”
Não se revelando demonstradas, num critério de evidência, as afirmações da Recorrente sobre a desnecessidade de um regime de monitorização em contínuo, a consagração do dever questionado apoia-se numa justificação suficiente para o afastar de qualquer juízo de arbitrariedade e que visa a persecução de políticas e valores constitucionalmente garantidos acima referenciados (artigos 9.º, alíneas d) e e) e 66.º, n.º 1, da Constituição).
Face ao exposto, não se pode concluir que a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, viole o disposto no artigo 81.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, pois a tarefa cometida ao Estado de “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas” não fica defraudada ou inviabilizada pela norma sindicada, sendo que a mesma visa ainda dar cumprimento a outras imposições constitucionais.
c) Da violação do artigo 86.º da Constituição
A Recorrente alega, finalmente, que se mostra violado o artigo 86.º da Constituição, uma vez que a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, ao criar desigualdades de tratamento, obsta ao incentivo e, mesmo, à eficaz fiscalização das empresas.
O artigo 86.º da Constituição dispõe o seguinte:
«Empresas privadas
1. O Estado incentiva a atividade empresarial, em particular das pequenas e médias empresas, e fiscaliza o cumprimento das respetivas obrigações legais, em especial por parte das empresas que prossigam atividades de interesse económico geral.
2. O Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial.
3. A lei pode definir setores básicos nos quais seja vedada a atividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza.»
Embora a recorrente refira que está em causa a violação do disposto no artigo 86.º da Constituição, depreende-se, da argumentação por esta sustentada, que a norma constitucional que entende ter sido violada é a do n.º 1 deste artigo, concretamente, na parte em que dispõe que o Estado “incentiva a atividade empresarial, em particular das pequenas e médias empresas, e fiscaliza o cumprimento das respetivas obrigações legais”.
Este preceito constitucional deve ser visto conjuntamente com o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, onde se encontra a garantia da liberdade de iniciativa económica privada.
Isto porque, embora a lei fundamental garanta a iniciativa económica privada como direito fundamental, tal não significa que a gestão de cada empresa fique entregue ao puro arbítrio do empresário, pois que, conforme resulta do referido artigo 61.º, n.º 1, a iniciativa económica privada exerce-se livremente “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.
Daí que incumba ao Estado não só uma obrigação de estímulo à actividade empresarial privada, mas também, concomitantemente, a obrigação de regulação e fiscalização dessa atividade.
Sobre esta questão Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. ob. cit., pág. 1015) escrevem o seguinte:
«IV. As empresas privadas estão sujeitas a fiscalização estadual (rectius: fiscalização pública) do cumprimento das obrigações legais das empresas (n.º 1, 1.ª parte). Ao abrigo da CRP, respeitado o núcleo essencial da liberdade de empresa (art. 61.º) e o princípio da liberdade de iniciativa e de organização e gestão empresarial (art. 80.º/ c), a lei é livre para estabelecer, havendo motivo razoável, um enquadramento da empresa privada que pode variar largamente entre um mínimo de condicionantes à sua atividade e liberdade de atuação e um máximo de exigências mais ou menos apertadas. Desde o condicionamento da implantação de estabelecimentos fabris até à qualidade dos produtos, passando pelas questões de higiene e segurança e tudo o que tem a ver com as condições de trabalho, é vasto o conjunto de deveres a que se podem achar sujeitas as empresas. É o cumprimento dessas obrigações legais (lato sensu, incluindo as de origem comunitária, bem como a vertida em regulamentos internos) que a CRP manda ao Estado «fiscalizar».
A noção de fiscalização não pode ser interpretada restritivamente, no sentido de observação, monitorização e supervisão. Na verdade, trata-se de verificar se as obrigações legais são cumpridas e punir as infrações verificadas. Por isso, ela pode revestir variadas formas, que vão desde as medidas de polícia económica (inspeções, etc.) até às figuras sancionatórias mais graves que constituem o direito penal da economia. A função jurídico-constitucional desta norma é, desde logo, a de afastar qualquer dificuldade à admissibilidade dessas medidas, que pudesse resultar da garantia constitucional da liberdade de iniciativa privada.»
As normas dos artigos 20.º e 34.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, e da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, têm em vista, justamente, a proteção do interesse geral, que terá sempre de ser tido em conta, não obstante o reconhecimento da liberdade de iniciativa privada, pretendendo-se proteger um outro direito constitucionalmente tutelado, como é o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, consagrado no referido artigo 66.º, n.º 1, da Constituição). Assim, a opção do legislador (que nesta matéria goza de ampla liberdade de conformação) no sentido de estabelecer a obrigatoriedade de monitorização em contínuo das emissões de dióxido de enxofre pelas empresas que usem coque de petróleo, tendo em vista este desiderato, não se pode considerar arbitrária ou destituída de fundamento material bastante.
Assim, a intervenção do Estado ao fixar a obrigatoriedade de monitorização em contínuo das emissões de dióxido de enxofre pelas empresas que usem coque de petróleo, apesar de implicar um acréscimo de custos de produção para estas empresas, não pode ser considerada um desincentivo ilegítimo à atividade empresarial.
Deste modo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a norma objeto de fiscalização também não viola o disposto no artigo 86.º da Constituição.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não conhecer do recurso de constitucionalidade na parte respeitante à questão da ilegalidade da Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro;
b) Não julgar inconstitucional a Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro, na parte em que estabelece, no que respeita às instalações de combustão que consomem coque de petróleo como combustível, a obrigatoriedade de monitorização em contínuo das emissões de dióxido de enxofre (SO2) independentemente do caudal mássico;
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de maio de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido nos termos da declaração que junto) – Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto do Senhor Conselheiro Sousa Ribeiro, que acompanho).
DECLARAÇÃO DE VOTO
O artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril, sujeita a monitorização em contínuo «as emissões de poluentes cujo caudal mássico da emissão ultrapasse o limiar mássico fixado nas portarias a que se refere o n.º 1 do artigo 17.º». O não cumprimento dessa obrigação de monitorização em contínuo constitui contraordenação grave, nos termos de artigo 34.º, n.º 2, alínea f), do referido diploma.
O valor máximo a ter em conta, para este efeito, veio a ser fixado pela Portaria n.º 80/2006, de 23 de janeiro. A tabela n.º 1, constante do anexo, discrimina os limiares máximos de cada poluente. O correspondente ao dióxido de enxofre vem acompanhado de um asterisco, explicitando-se, em rodapé, que esse limite é «não aplicável às instalações de combustão que consomem coque de petróleo como combustível, para as quais o regime de monitorização em contínuo é de caráter obrigatório independentemente do caudal mássico».
Entende o Acórdão, na tese que fez vencimento, que esta prescrição excecional para as emissões de coque de petróleo representa apenas «a concretização da obrigação já constante do referido Decreto-Lei», atuando o legislador, ao estabelecer esse regime, «ainda com base nos poderes decorrentes da remissão efetuada pelo artigo 20.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de abril», concluindo:
«Impor-se que, relativamente ao consumo de determinado produto, a monitorização em contínuo é sempre obrigatória, não deixa de se inserir na tarefa concretizadora de fixação dos limites a partir dos quais a emissão de poluentes deve ser monitorizada continuamente».
Discordo deste entendimento. O reenvio normativo para portaria tinha um objeto muito preciso, de complementação concretizadora da disciplina primária de uma determinada norma legislativa. Essa disciplina fez depender a obrigação de monitorização em contínuo, sem exceções, da ultrapassagem de certos limiares máximos de caudal poluente. À norma regulamentar, como norma secundária, subordinada à lei, cabia apenas quantificar esses limiares.
Ora, ao estabelecer que, no caso do coque de petróleo, a monitorização em contínuo é de caráter obrigatório, “independentemente do caudal mássico”, a Portaria n.º 80/2006, contraria aquele regime, alterando o alcance da prescrição legal, que lhe competia executar. Em resultado dessa Portaria, não vale, para o coque de petróleo, o critério básico da obrigação de monitorização fixado no artigo 20.º
Tal não é constitucionalmente admissível, por força do princípio da preeminência da lei.
-Joaquim de Sousa Ribeiro