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Processo n.º 125/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., representada pelos seus pais, estudante, candidata ao Ensino Superior para o ano letivo 2010/2011, intentou no T.A.C. de Lisboa processo cautelar (por convolação do processo previsto nos artigos 109.º e seguintes, do CPTA, determinada pelo tribunal) contra o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, pedindo a colocação da Requerente no curso de medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa ou na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa no ano letivo 2010/11, aplicando as normas do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, antes da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei nº 272/2009, de 1 de outubro.
Por decisão de 14 de julho de 2011 foi julgado procedente o pedido.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior recorreu desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul, o qual, por acórdão proferido em 12 de janeiro de 2012, declarou nula a decisão cautelar, convolou o processo para a forma prevista nos artigos 109.º e seg., do CPTA, e julgou procedente o pedido, intimando o Réu a aceitar de imediato e definitivamente o requerimento de matrícula e inscrição da Requerente no par de “curso de Medicina da Universidade de Lisboa” e “curso de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, aplicando as normas do Decreto-Lei n.º 393-A/99, antes da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro.
Para aplicação daquele diploma, a decisão recorrida, na sua fundamentação, recusou a aplicação à presente situação do regime do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, na parte em que dispôs sobre o regime especial de acesso ao ensino superior reservado aos praticantes desportivos de alto rendimento.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, relativamente à recusa de aplicação do disposto nos artigos 27.º e 46.º, do Decreto-Lei n.º 272/2009.
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1.ª No douto Acórdão recorrido, decidiu-se convolar a tramitação dos autos, de processo cautelar em intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (artigo 109º e ss. do CPTA) – revogando assim decisão oposta proferida em 1ª instância – e desaplicar o disposto nos artigos 27º e 46º do Decreto-Lei nº. 272/2009, de 1.10, que alterou o regime especial de acesso ao ensino superior estabelecido pelo Decreto-Lei 393-A/99, de 2/10 para “atletas praticantes com estatuto de alta competição ou integrados no percurso de alta competição” ou “praticantes desportivos de alto rendimento”, por entender que a sua aplicação violava o princípio constitucional da confiança. Por isso,
2.ª O douto Acórdão confirmou a decisão proferida de procedência do pedido (cautelar) “… intimando o R. a aceitar de imediato e definitivamente o requerimento de matrícula e inscrição da Requerente no par de “curso de Medicina da Universidade de Lisboa” e “curso de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa” aplicando as normas do DL 393-A/99 antes da alteração legislativa operada pelo DL nº. 272/2009, pretensão que lhe tinha sido indeferida por não ter obtido a classificação mínima em todas as provas de ingresso exigidas para candidatura aos referidos pares estabelecimento/curso.
3.ª O acesso ao ensino superior é reservado a titulares de curso do ensino secundário ou de habilitação legalmente equivalente, que façam prova de capacidade para a sua frequência (cf. artigo 7º do 296-A/98, de 25 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 99/99, de 30.03, e 26/2003, de 7.02).
4.ª A avaliação da capacidade dos estudantes para a frequência dos cursos a que se candidatam compete aos estabelecimentos do ensino superior e é feita através da definição das notas mínimas obtidas na nota de candidatura e nas provas de ingresso, no caso do concurso para o ano letivo de 2010/2011, coincidentes com exames nacionais do ensino secundário (cf. artigo 8º e 16º e ss. do cit. diploma).
5.ª As classificações mínimas exigidas no concurso de acesso ao ensino superior no ano letivo de 2010/2011 foram de 150 pontos para a nota de candidatura e de 140 pontos para as notas das disciplinas de ingresso (cf. número 9 da Matéria de Facto, considerando-se não escrita a parte em que refere a alteração de notas, nos termos do artigo 646º, nº. 4 do C.P.C., porque as notas são anualmente definidas – cf. artigos 24º e 25º do Decreto-Lei nº. 296-A/98)
6.ª O acesso ao ensino superior pode ter lugar através do regime geral, acessível a todos, nos limites das vagas disponíveis, que são distribuídas pelos candidatos com as notas mais elevadas (cf. Decreto-Lei nº. 296-A/98, de 25.09, alterado pelos Decretos-Leis nºs 99/99, de 30.03, e 26/2003, de 7.02, artigos 7º, 8º e 16º e seguintes) e,
7.ª Pode ter lugar através de regimes especiais, nomeadamente o regime de que a Recorrida é beneficiária, destinado aos “atletas praticantes com estatuto de alta competição ou integrados no percurso de alta competição” ou, na atual designação, “praticantes desportivos de alto rendimento”, criado pelo Decreto-Lei 393-A/99, de 2.10.
8.ª Em cada ano, dez por cento das vagas aprovadas para o concurso nacional ou local são reservadas aos candidatos pelo regime especial e, se o seu número for superior ao das vagas, o diretor-geral do Ensino Superior e o estabelecimento de ensino podem acordar em que o número de colocações exceda aquele limite, pelo que estes candidatos têm o acesso ao ensino superior garantido, em princípio no estabelecimento de ensino por eles escolhido.
9.ª Na redação originária do Decreto-Lei 393-A/99, os atletas podiam ingressar no estabelecimento de ensino superior a que se candidatassem, desde que fossem titulares de um curso de ensino secundário português e tivessem obtido aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas pelo par estabelecimento/ curso que pretendiam frequentar.
10.ª Na redação do Decreto-Lei 393-A/99 introduzida pelo Decreto-Lei nº. 272/2009, de 1.10, os atletas beneficiários do regime especial podem ingressar no estabelecimento de ensino superior a que se candidatem desde que tenham concluído o ensino secundário, para o que é necessária a realização de exames finais nacionais (cf. artigos 14º e 15º, nº. 3 e 8 do Decreto-Lei nº. 74/2004, de 26.03, alterado pelo Decreto-Lei nº. 24/2006, de 6.02) mas, além disso,
11.ª O novo regime exige que os atletas tenham obtido, nas provas de ingresso (no caso dos autos, os exames nacionais do ensino secundário) e na nota de candidatura (definida pelo estabelecimento de ensino, respeitado o disposto no artigo 26º do Decreto-Lei nº. 296-A/98, de 25.09), valores superiores aos mínimos definidos pelos estabelecimentos de ensino em que pretendem ingressar.
12.ª As provas de ingresso ao curso de Medicina integram, obrigatoriamente, as áreas de Biologia, Física, Matemática e Química (cf. artigo 20º-B do Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro).
13.ª A Recorrida candidatou-se ao curso de Medicina para o ano letivo de 2010/2011 e realizou o exame de Biologia no dia 17.06.2010, no qual obteve a classificação de 123 pontos e no dia 16.7.2010, no qual obteve a classificação de 138 pontos, quando a nota mínima exigida era de 140 pontos (cf. números 9, 10 e 14 da Matéria de Facto).
14.ª Nas provas de ingresso de Física e Química, realizada em 19.6.2009, a Recorrida obteve a nota de 175 pontos e, na prova de ingresso de Matemática A, realizada em 21.6.2010, a nota de 160 pontos (cf. números 10 e 12 da Matéria de Facto). Deste modo,
15.ª A candidatura da Recorrida ao ensino superior foi recusada por não ter obtido no exame de Biologia nota superior ao mínimo fixado para o concurso desse ano (140 pontos - número 9 da matéria de facto).
16.ª Nos dias em que realizou a prova de Biologia o DL nº. 272/2009, de 1.10, já estava em vigor há nove meses e, segundo os factos alegados, a Recorrida tinha conhecimento da necessidade de obter aprovação com nota superior ao mínimo definido pelo estabelecimento de ensino que pretendia frequentar, embora dela discordasse (cf. documentos números 18 e 19 juntos à p.i.).
17.ª Não ocorreu, assim, qualquer aplicação retroativa do DL 272/2009, porque a candidatura da Recorrida ao ensino superior é muito posterior à sua entrada em vigor.
18.ª E também não se pode afirmar que houve aplicação retrospetiva, porque a não obtenção da nota superior ao mínimo exigido pelo estabelecimento de ensino em apenas uma prova de ingresso é fundamento de recusa da matrícula e a prova de Biologia, que é uma das provas de ingresso (cf. artigo 20º-B do Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro) realizou-se quando o diploma em causa vigorava há mais de nove meses. Mas, ainda que assim não fosse,
19.ª De acordo com a Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, apenas é inadmissível a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os seus destinatários não pudessem contar e não tenha sido ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Ora,
20.ª A exigência de notas mínimas aos candidatos de regimes especiais com direito a ingressar no ensino superior resulta da necessidade de provarem dispor da capacidade para a sua frequência, desde sempre existente (cf. artigo 7º do Decreto-Lei nº. 296-A/98, de 25.09), pelo que,
21.ª Esta exigência não constitui uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os seus destinatários não pudessem contar e foi ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que se devem considerar prevalecentes, a saber, a qualidade do ensino superior e as necessidades do País em possuir quadros qualificados (cfr. artigo 76º da Constituição). Acresce que,
22.ª O Decreto-Lei n.º 272/2009 iniciou a sua vigência menos de um mês após o início do 12.º ano da A., que assim dispôs do ano letivo de 2009/2010 quase completo para conformar o seu comportamento de acordo com as novas regras, podendo programar com bastante antecedência realizar melhoria de nota nos exames que havia realizado no fim do 11.º ano.
23.ª E não se diga que o esforço a que a Autora ficaria sujeita para realizar a melhoria de notas “poderia comprometer (certamente comprometeria)” (cit. do douto Acórdão recorrido) as notas que ela precisava de obter nesse 12 º ano: no critério do legislador, as notas mínimas exigidas definem os conhecimentos necessários para a frequência do ensino superior, cuja falta terá de ser suprida pelo estudante, por si só, para apreender as matérias lecionadas na Universidade, nesta hipótese enquanto estudante universitário, o que decerto exigirá esforço significativamente superior. Ainda que assim se não entenda, sem conceder,
24.ª O Decreto-Lei n.º 272/2009 iniciou a sua vigência com antecedência suficiente para que a Recorrida programasse o seu trabalho de forma a obter, na prova de ingresso que ainda não tinha realizado, a melhor nota possível, para que fosse superior ao mínimo exigido. Assim,
25.ª Nenhum comportamento pode ser imputado ao Estado suscetível de gerar nos destinatários do Decreto-Lei nº. 393-A/99 a expectativa de acesso ao ensino superior independentemente da capacidade para a sua frequência;
26.ª O diploma cuja aplicação se recusou foi publicado em outubro de 2009 e o concurso pelo qual a Recorrida pretendia ingressar no ensino superior realizou-se no ano seguinte;
27.ª A Recorrida não alegou a frustração de planos de vida que, aliás, a existirem, não ficaram comprometidos, pois os candidatos que não tenham feito melhoria de nota podem concorrer ao concurso do ano seguinte e, se não lograrem obter a nota mínima, é de presumir que também não obteriam aproveitamento no curso em que pretendiam ingressar; e, por último,
28.ª Ocorrem razões de interesse público que justificam, em ponderação, a alteração efetuada, uma vez que se trata de garantir que só acede ao ensino superior quem dispõe dos conhecimentos necessários à sua frequência. Pelo exposto,
29.ª A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 2º e 205º da Constituição, devendo, em consequência, ser o presente recurso julgado procedente, não julgando inconstitucional o disposto nos artigos 27º e 46º do Decreto-Lei nº. 272/2009, de 1.10, na parte em que alteraram o regime jurídico do acesso ao ensino superior destinado aos praticantes desportivos de alto rendimento estabelecido pelo Decreto-Lei 393-A/99, de 2/10, quando aplicado ao caso dos autos, e ordenando a reforma do douto Acórdão recorrido de acordo com o juízo de constitucionalidade a formular, apenas assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”
A Recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Fundamentação
A decisão recorrida disse recusar a aplicação à presente situação do regime do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, na parte em que dispôs sobre o regime especial de acesso ao ensino superior reservado aos praticantes desportivos de alto rendimento.
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, limitou o seu objeto à recusa de aplicação do disposto nos artigos 27.º e 46.º, do referido diploma, à situação em causa nos presentes autos.
Da leitura integral da decisão recorrida conclui-se que, efetivamente, apenas se pretendeu recusar a aplicação das disposições do referido diploma que passaram a condicionar o acesso ao ensino superior à obtenção das classificações mínimas fixadas pelos respetivos estabelecimentos deste grau de ensino para as provas de ingresso e para nota de candidatura e que se encontram nos artigos 27.º, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, e no artigo 19.º, do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, quando quando parte dessas provas foi realizada antes da entrada em vigor deste último diploma.
Por isso justifica-se que no presente recurso apenas se proceda à fiscalização da constitucionalidade destes preceitos quando interpretados no sentido de exigir a praticante desportivo de alto rendimento que para ingresso no ensino superior obtenha as classificações mínimas fixadas pelos respetivos estabelecimentos de ensino para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso, quando parte dessas provas foi realizada antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro.
A questão de constitucionalidade colocada neste recurso já foi objeto de decisão por esta mesma secção do Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 176/12, proferido em 28 de março de 2012.
Não sendo aduzidos nas alegações deste recurso novos argumentos e não se vislumbrando razões para alterar a posição anteriormente seguida, deve manter-se o mesmo juízo de inconstitucionalidade, com os fundamentos que constam do referido acórdão n.º 176/12, julgando-se improcedente o recurso.
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, dedutíveis do artigo 2.º, da Constituição, as normas dos artigos 27.º, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, e 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, quando interpretadas no sentido de exigir a praticante desportivo de alto rendimento que, para acesso ao ensino superior, obtenha as classificações mínimas fixadas pelos respetivos estabelecimentos de ensino para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso, quando parte dessas provas foi realizada antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro.
b) Julgar improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Sem custas.
Lisboa, 23 de maio de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.