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Processo n.º 1380/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo - norma ou interpretação normativa – como alvo da apreciação, o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), a aplicação da norma como ratio decidendi da decisão recorrida, a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais requisitos se encontram preenchidos, no caso.
(…) Comecemos por analisar este último pressuposto, que se consubstancia na exigência de que o recorrente coloque a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Torna-se indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que o critério normativo, cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar, tem necessariamente de assentar num preceito ou conjunto de preceitos legais, que deverão ser individualizados e especificados, com acerto, de forma a que seja possível encontrar correspondência entre o seu enunciado e um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como respetivo suporte.
A norma ou interpretação normativa colocada em crise deverá ainda ser enunciada, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Aplicando as considerações expendidas ao caso concreto - independentemente de qualquer outra apreciação específica sobre a formulação e natureza da questão enunciada, no requerimento de interposição de recurso - impõe-se analisar se o recorrente cumpriu o referido ónus de suscitação prévia, perante o tribunal a quo.
No presente caso, não tendo o tribunal a quo convocado qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente, extraída dos preceitos invocados pelo recorrente - que, caso tivesse sido adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma - deduz-se que a admissibilidade do presente recurso estaria dependente da circunstância de o recorrente ter problematizado, na motivação do recurso, que deu origem à decisão recorrida, ou na resposta a que alude o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a constitucionalidade de critério normativo, que, sendo extraível das disposições legais indicadas - os artigos 414.º, 411.º, n.º 6 e 413.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal - tivesse sido adotado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
Ora, analisadas tais peças processuais – em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – conclui-se que, em nenhum momento, o recorrente antecipa e enuncia qualquer questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, extraída das disposições legais indicadas.
Acresce que a questão suscitada não pode considerar-se coincidente com a que surge enunciada como objeto do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, na motivação do recurso, a propósito da violação da Lei Fundamental, diz o recorrente o seguinte:
“(…) a decisão proferida, ao determinar a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, antes do prazo legalmente previsto no CPP, além de violar o disposto nos artigos 411º, n.º 6 e 413º, n.º 1 do CPP, padece ainda de inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 32.º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as legais consequências.
(…) Devendo ser declarada inconstitucional a norma do art.º 414º, que admita a subida e remessa do recurso ao Tribunal Superior se e quando ainda se encontrar em curso o prazo para resposta a recurso nos termos dos art.ºs 411º, n.º 6 e 413º, n.º 1 do CPP.
(…) Assim, considera o arguido, ora recorrente, que o despacho que ordenou a subida e remessa dos autos ao Tribunal superior é nulo violando os artigos 414º, art.ºs 411º, n.º 6 e 413º, n.º 1 do CPP, bem como é inconstitucional por violação dos artigos 32.º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (…).”
Na resposta ao parecer do Ministério Público, apresentada ao abrigo do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente reitera a argumentação já utilizada a propósito da violação da Lei Fundamental, referindo o seguinte:
“(…) A decisão proferida, ao determinar a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, antes do prazo legalmente previsto no CPP e antes do terminus do prazo constante da notificação efetuada ao arguido (…) além de nula por violar o disposto nos artigos 411º, n.º 6 e 413º, n.º 1 do CPP, padece ainda de inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 32.º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as legais consequências.
(…) Deve, pois, ser declarada inconstitucional a norma do art.º 414º, que admita a subida e remessa do recurso ao Tribunal Superior se e quando ainda se encontrar em curso o prazo para resposta a recurso nos termos dos art.ºs 411º, n.º 6 e 413º, n.º 1 do CPP.”
Dos excertos transcritos, resulta que o recorrente imputa o vício de inconstitucionalidade à própria decisão jurisdicional, não manifestando preocupação em autonomizar e enunciar um específico critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – que, tendo integrado a ratio decidendi do acórdão recorrido, pudesse constituir objeto de ulterior recurso de constitucionalidade.
Aliás, mesmo quando o recorrente refere que deverá “ser declarada inconstitucional a norma do art.º 414.º” do Código de Processo Penal, verifica-se que a enunciação que apresenta, logo a seguir, não corresponde a qualquer sentido interpretativo suscetível de ser extraído do identificado preceito, que, acentue-se, dispõe de vários números, sendo, necessariamente, plurinormativo.
Pelo exposto, não tendo o recorrente colocado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, uma questão de constitucionalidade que pudesse considerar-se coincidir com a questão que erige como objeto do recurso - desde logo, não tendo sequer feito coincidir o respetivo arco de disposições legais de suporte - sempre estaria definitivamente prejudicada a admissibilidade de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, circunstância que torna ociosa a apreciação dos restantes pressupostos de admissibilidade do recurso – face à sua necessária verificação cumulativa – concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do mesmo.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo entender ter suscitado a questão de constitucionalidade, previamente, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Acrescenta que deve prevalecer a verdade material, independentemente das rigorosas formalidades exigidas para a admissibilidade do recurso, face ao direito do arguido, aqui recorrente, à tutela jurisdicional efetiva, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Mais refere que rejeitar o recurso constitui a negação do aludido direito fundamental, explicitando que a “tutela judicial efetiva é negada quando, como no caso em apreço, se suscita uma questão de inconstitucionalidade e o Tribunal se recusa[ ] a aplicar ou não, expressa ou implicitamente, as normas cuja constitucionalidade foi suscitada, designadamente invocando uma falta de coincidência entre as questões suscitadas perante o Tribunal recorrido e perante o Tribunal Constitucional.”
Assim, sustenta que, no caso concreto, não há qualquer dúvida que, expressa ou implicitamente, a questão normativa da inconstitucionalidade, cuja apreciação se pretende, foi suscitada no recurso ordinário interposto pelo arguido, aqui recorrente, e foi, efetivamente, aplicada pelo tribunal recorrido. Nestes termos, deve tal questão ser apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Conclui pugnando pela revogação da decisão sumária proferida e pela admissão e conhecimento do objeto do recurso.
4. O Ministério Público, respondendo à reclamação, manifesta a sua concordância com a decisão reclamada.
Acentua que, nos dois momentos processuais de que o recorrente dispôs, não logrou cumprir o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa pertinente, não correspondendo os excertos que o recorrente transcreve, na reclamação, à enunciação de verdadeiras questões normativas de constitucionalidade.
Aliás, o acórdão recorrido, em conformidade, conclui que não ocorreu qualquer violação do disposto nos artigos 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, “[n]ão se detetando, também, que a decisão proferida na 1.ª instância tenha infringido qualquer norma da Constituição da República Portuguesa, designadamente alguma daquelas que o recorrente invoca.”
Pelo exposto, conclui pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, em nenhum momento, quer na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, quer na resposta a que se refere o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente suscitou uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, extraível da conjugação de preceitos que indica no requerimento de interposição de recurso.
Ao invés, nas referidas peças processuais, repetidamente imputa o vício de inconstitucionalidade à própria decisão jurisdicional, a par da violação de preceitos infraconstitucionais.
Como bem refere o Magistrado do Ministério Público, na sua resposta, são pertinentes as considerações feitas, a este propósito, nomeadamente no Acórdão n.º 489/04 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“(…) se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infra-constitucional que se tem por violado com essa decisão (…)”
Ao contrário do que pretende o reclamante, a decisão sumária reclamada em nada belisca o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, sendo certo que o exercício do direito ao recurso de constitucionalidade se encontra condicionado ao cumprimento de regras e ónus legais que não contendem com o núcleo essencial desse direito, sendo a exigência plasmada no n.º 2 do artigo 72.º, da LTC, nesse contexto, adequada e constitucionalmente conforme.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação.
III – Decisão
6. Assim, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 9 de janeiro de 2014, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.