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Proc. nº 502/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
AI..., Lda., com sede na Rua do Rego Lameiro nº, 38, Porto, interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso do despacho do Ministro da Justiça (de facto, do Secretário de Estado da Justiça) que indeferiu recurso hierárquico de despacho do Director Geral dos Serviços do Registo e do Notariado que, por seu turno, indeferira 'reclamação' hierárquica do acto do notário do 6º Cartório Notarial confirmativo da imposição do pagamento da quantia de 18.150.351$00, a título de emolumentos, cobrados por escritura de compra e venda de fracções autónomas de vários prédios urbanos lavrada naquele cartório.
A esse recurso contencioso foi apensado um outro interposto pela mesma recorrente de outro despacho do Ministro da Justiça (também, na realidade, do Secretário de Estado da Justiça) proferido em idêntico procedimento e relativamente à imposição do pagamento da quantia de 15.639.000$00 a título de emolumentos, cobrados por escritura de mútuo com hipoteca sobre fracções autónomas identificadas em documento complementar àquela escritura.
Por acórdão de 28/1/98 da Secção de Contencioso Tributário do STA, os recursos foram rejeitados, por manifesta ilegalidade da sua interposição – os despachos impugnados eram irrecorríveis por não lesivos.
A fundamentação deste acórdão é, em síntese, a seguinte:
a. os emolumentos notariais, sejam impostos ou taxas, constituem receitas tributárias; b. após a entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº. 129/84, de 27 de Abril, e por força dos artigos 62º nº. 1 alínea a) e 121º nº. 1 desse Estatuto, foram revogados os artigos 69º do Decreto-Lei nº. 591-F2/79, de 29 de Dezembro e 134º e 140º do Regulamento dos Serviços dos Registos e do Notariado, aprovado pelo Dec. Reg. nº. 55/80, de 8 de Outubro que previam uma reclamação necessária contra qualquer erro de conta para o notário e para o Director--Geral dos Registos e do Notariado, cabendo recurso contencioso da decisão do primeiro, quando a do segundo fosse desfavorável; c. o disposto no artigo 62º nº. 1 alínea a) do ETAF abrange a liquidação de qualquer receita tributária estadual, seja qual for a entidade liquidadora; d. não têm aplicação ao caso os artigos 92º nº. 2 e 100º do Código de Processo Tributário que vieram permitir recurso contencioso da decisão sobre recurso hierárquico e que apenas abrangem as receitas tributárias administradas pela Direcção-Geral dos Impostos, configurando 'um desvio à teoria geral do acto administrativo'; e. sendo a impugnação judicial da liquidação dos emolumentos o meio contencioso próprio para reagir contra a sua eventual ilegalidade, os despachos que recaíram sobre os recursos hierárquicos não definiram as respectivas situações jurídicas que o foram pelas liquidações dos emolumentos inicialmente feitas pelo notário.
A ora recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Pleno da Secção, formulando, nas suas alegações, diversas conclusões que se destacam – por se reportarem a questões de constitucionalidade – as seguintes:
'11º - E ao entender que o art. 62º nº. 1 alínea a) do ETAF, sem mais, obriga a um recurso imediato da 'liquidação emolumentar' para o Tribunal Tributário de 1ª Instância, como meio único e exclusivo de se atacar tal conta emolumentar, apesar do disposto nos arts. 69º do DL 519-F2/79 e 139º do DR 55/80, e sobretudo nos arts. 118º e 92º nº. 2 e 100º nº. 2 do Código de Processo Tributário, e sob pena da preclusão total da garantia de acesso à jurisdição administrativa e fiscal, ofende a Constituição, nos seus arts. 18º e 268º nº. 4. Ou seja, essa interpretação da regra do art. 62º nº. 1 a) – que daí extrai aliás o que não está lá expressamente dito e de forma inequívoca – não é conforme com a Constituição, nomeadamente com o verdadeiro princípio 'pro actione' postulado no art. 268º nº. 4 e reforçado pela aplicação a esta garantia do regime consagrado no art. 18º da Lei Fundamental. Tem vindo a ser, na verdade, intenção do legislador constituinte acabar com autênticos 'alçapões' por onde se escapam decisões da Administração sem controlo jurisdicional, pretendendo antes oferecer uma efectiva tutela judicial para as relações jurídicas administrativas e fiscais. O mesmo é dizer, assegurando plenamente o direito a uma decisão de fundo sobre a relação controvertida, que não encalhe liminarmente em 'labirínticos formalismos' – excepto os casos em que haja limites claramente estabelecidos pelo legislador e que de uma forma necessária e proporcionada veiculam uma salvaguarda a outros valores concretos constitucionalmente protegidos.
12º - Do mesmo modo ofenderá o disposto nos arts. 13º, 18º e 268º nº. 4 da CRP, a interpretação conjugada dos arts. 92º nº. 2, 118º nº. 2 alínea a) e 123º nº. 1 do CPT, segundo a qual já não é contenciosamente recorrível o acto que decidiu um recurso hierárquico interposto de 'acto materialmente tributário' (ou 'de liquidação de receitas fiscais') de que se não deduziu nenhuma impugnação jurisdicional – quando tais actos, embora tributários, tenham sido praticados por administração não fiscal.'
Juntou parecer que unicamente versa toda a aplicação do direito infra--constitucional.
Por acórdão de 12 de Maio de 1999, o Pleno da Secção negou provimento ao recurso, confirmando a tese sustentada no acórdão impugnado.
Fê-lo, dizendo ainda que:
a. as normas do ETAF atributivas de competência são-no também de consagração dos meios processuais respectivos; b. a alteração introduzida pelo ETAF suprime apenas a reclamação necessária e a competência material do tribunal de comarca; c. o anterior procedimento gracioso necessário não resultará da natureza das coisas e não tinha em conta o acto de liquidação na sua verdadeira natureza como definidor da situação jurídica, para privilegiar, de modo inteiramente artificial, a decisão administrativa. d. as normas dos artigos 99º e 100º do CPT, que se não aplicam no caso dos autos, são especiais em relação à teoria geral do acto administrativo, na medida em que admitem recurso contencioso de actos meramente confirmativos que, em consequência, não definem a situação jurídica, não são actos lesivos.
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada escreveu-se no mesmo acórdão, depois de se dizer que os artigos 99º e 100º do CPT não eram aplicáveis:
'Nem tal tem de causar qualquer estranheza pois não é imperioso que a lei ordinária consagre uma de duas vias de recurso à escolha do contribuinte. Não se verifica, assim, qualquer 'preclusão' da 'garantia de acesso à jurisdição administrativa e fiscal' ou de 'recurso contencioso contra actos de autoridade'. A exigência constitucional refere-se apenas a uma.'
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso ao abrigo do artigo 70º nº
1 alínea b) da Lei nº 28/82.
Nas suas alegações de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
1ª - A Recorrente sustenta que somente poderá existir uma diminuição ao direito de recorrer contenciosamente contra actos da autoridade, consagrado no art.268° n° 4 da Constituição no caso de ser restrição ou limite consagrado expressamente
, que veicule ou se justifique num valor constitucionalmente atendível e que não ultrapasse o necessário para salvaguardar a protecção destes valores (art. 212° n° 3, art. 268° n° 4 e arts. 17° e 18° da CRP).
2ª - Assim, as dimuições ou limitações do acesso à justiça administrativa e fiscal devem, antes de mais, ser claras e precisas: sendo devidamente formuladas pelo legislador por forma nítida e perceptível. Somente assim se poderá dar seguimento a um princípio 'pro actione' implicado na garantia constitucional.
3ª - O legislador poderia, porventura, ter dito, de uma forma clara e inequívoca, que a reacção contra as 'liquidações emolumentares' proferidas pelos Notários era única e exclusivamente a 'impugnação judicial' prevista no art. 62° nº. 1 - a) do ETAF. Mas não o disse assim. Apenas estatuiu que aos Tribunais Tributários de 1ª instância cabe conhecer dos
'recursos de actos de liquidação das receitas tributárias estaduais'.
4ª - Esta norma atributiva de competência, por si só, não impede que de tais actos se possa recorrer na ordem hierárquica e que das decisões do Ministro da
área administrativa respectiva caiba depois recurso contencioso para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos dos arts. 32° n° 2 c) do ETAF, conjugado com os arts. 92° n° 2, 100 n° 2 e 123° do Código de Processo Tributário.
5ª - Não é de modo nenhum clara a revogação total das normas específicas (arts.
69° do DL 519-F2/79 e 139!' do DR 55/80) dos diplomas sobre orgânica e competência dos serviços notariais e sobre 'liquidações de contas emolumentares'
– na parte em que estatuem meios graciosos de impugnação. Pois que o ETAF trata de 'competência' do Tribunal, e não sobre outros pressupostos processuais, como a 'imediata recorribilidade do acto'. Sobre este ponto valem as leis de processo contencioso, administrativo e/ou tributário.
6ª - E em qualquer dos sistemas instituídos por estas duas leis de processo contencioso, o tipo de actos como o do Secretário de Estado agora sub judice é um acto plenamente recorrível.
7ª - Na primeira (na lei do contencioso administrativo), porquanto teria de se partir então da definição de estar em causa um 'acto administrativo respeitante a questão fiscal' (art. 118 n° 3 do CPT), e como 'acto administrativo' de órgão situado numa hierarquia sujeito então ao recurso hierárquico prévio, dado não se tratar de competência 'exclusiva' ou 'reservada' ou 'delegada' a do Notário.
8ª - Na segunda - lei do contencioso tributário - porquanto aí expressamente se consagra a opção do particular-contribuinte em, dentro dos respectivos prazos, ou impugnar logo judicialmente a liquidação (art. 123° do CPT) ou desta reclamar e recorrer graciosamente, cabendo depois, das decisões negativas, o respectivo recurso contencioso' – salvo se houver sido deduzida já impugnação judicial sobre a questão de fundo (arts. 92° n° 2 e 100 n° 2 do CPT). Não tendo sido deduzida ainda nenhuma 'impugnação judicial' , a via de tutela judicial da pretensão mantém-se intocada, dentro dos prazos dos respectivos recursos.
9ª - Por outro lado, náo poderá ser considerado um 'acto meramente confirmativo' de outro anterior, quando nos dois actos os sujeitos não são os mesmos (Notário e Secretário de Estado da .Justiça), e a fundamentacão é muito diferente nos dois casos.
10ª - O entendimento ou regra segundo a qual o art. 62° n° 1 alínea a) do ETAF, sem mais, obriga a um recurso imediato da 'liquidação emolumentar' para o Tribunal Tributário de 1ª instância, como meio único e exclusivo de se atacar tal conta emolumentar, apesar do disposto nos arts. arts. 69° do DL 519-F2/79 e
139° do DR 55/80, e sobretudo nos arts 118° e 92° n° 2 e 100 n° 2 do Código de Processo Tributário, e sob pena da preclusão total da garantia de acesso à jurisdição administrativa e fiscal, ofende a Constituição, no seus arts. 18° e
268° n° 4. Ou seja, essa interpretação da regra do art. 62° n° 1 a) - que daí extrai aliás o que não está lá expressamente dito e de forma inequívoca - não é conforme com a Constituição, nomeadamente com o verdadeiro princípio 'pro actione' postulado no art. 268° n° 4 e reforçado pela aplicação a esta garantia do regime consagrado no art. 18°da Lei Fundamental. Tem vindo a ser, na verdade, intenção do legislador constituinte acabar com autênticos 'alçapões' por onde se escapavam decisões da Administração sem controlo jurisdicional, pretendendo antes oferecer uma efectIva tutela judicial para as relações jurídicas administrativas e fiscais. O mesmo é dizer, assegurando plenamente o direito a uma decisão de fundo sobre a relação controvertida, que não encalhe liminarmente em 'labirínticos formalismos' - excepto os casos em que haja limites claramente estabelecidos pelo legislador e que de uma forma necessária e proporciornada veiculem uma salvaguarda a outros valores concretos constitucionalmente protegidos.
11° - Do mesmo modo ofenderá o disposto nos arts. 13°, 18° e 268° nº 4 da CRP, a interpretação conjugada dos arts. 92° n° 2, 100 nº2, 118° nº 2 alínea a) e 123° nº 1 do CPT, segundo a qual já não é contenciosamente recorrível um acto que decidiu um recurso hierárquico interposto de 'acto materialmente tributário' (ou
'de liquidação de receitas fiscais') de que se não tenha deduzido nenhuma impugnação jurisdicional - quando tais actos, embora tributários hajam sido praticados por administracão não fiscal.
12ª - Com efeito, violam o princípio constitucional da igualdade (e o princípio da justiça e da proporcionalidade) as normas dos arts. 92° e 100º do Código de Processo Tributário quando interpretadas no sentido de que o 'sistema de alternatividade e livre opção' aí preconizado se aplica apenas às relações jurídicas tributárias em que o particular-contribuinte seja destinatário de acto de liquidação tributária' emitido por órgãos da administração fiscal, e não também às relações jurídicas tributárias em que o particular-contribuinte é destinatário de um 'acto de liquidação tributária' mas emitido por outros órgãos do Estado. Nada há que substantivamente o justifique.
13ª - Com efeito, por força da própria realidade institucional subjacente aos actos (substantivamente) tributários, deverá constituciornalmente entender-se hoje que a garantia do acesso à justiça tributária abrange as situações de
'actos confirmativos' (tempestivamente provocados) de actos de 'liquidação' ainda não judicialmente impugnados.
14ª- O sistema da 'alternatividade livre' mais abrangente para o exercício da garantia de recurso, que é desenhado nos arts. 92° e 100º do CPT, deverá, constitucionalmente, e na medida do possível, aplicar-se a todos os actos autoritários de 'liquidacão de receitas', a que, de resto, se aplica o Código: aos actos substantivamente tributários, de 'liquidação de tributos'.
15ª- De acordo com o princípio constitucional da igualdade perante a lei, o particular contribuinte deve, gozar da mesma amplitude na garantia do recurso contra os 'actos de liquidação de receitas tributárias', ou 'actos substantivamente tributários', amplitude esta que abrange quer a impugnacão directa do acto de liquidação quer também o recurso contra actos 'confirmativos'
(convocados por meios graciosos tempestivamente provocados) de actos primários ainda não jurisdicionalmente impugnados.
16ª - Uma eventual restrição da garantia do recurso contencioso deve provir de lei expressa (o que não é o caso das 'liquidações emolumentares', pois o CPT estabelece expressamente e literalmente um só regime, sem distinções específicas; o mesmo acontecendo com o art. 62° do ETAF), e deve além disso ser justificada em razão institucional necessária para proteger outro valor constitucional atendível, sob pena da violação dos princípios da proporcionalidade e da Justiça (arts. 18° e 268° nº 4 da CRP).
17ª - Por outro lado, a noção de 'acto confirmativo' é uma noção
'constitucionalmente relevante'. Ligada à operacionalidade do conceito funcional de 'acto lesivo' torna-se também em noção de recorte e alcance constitucional.
18ª - Assim, entender que o 'acto confirmativo' nunca é, por si, um 'acto lesivo' para efeitos da admissibilidade do recurso contencioso, é ofender o conteúdo da garantia constitucional de acesso à justiça tributària através do recurso contencioso.
19ª - Pelo contrário: o 'acto confirmativo' deve ser tomado como um verdadeiro
'acto que lesa direitos e interesses legítimos dos particulares', para efeitos de preencher o pressuposto constitucional da garantia da recorribilidade contenciosa, em casos em que incida sobre um acto primário arguido de ilegal, mas ainda não impugnado em Tribunal antes só recorrido graciosamente e no devido tempo.
20ª - E em casos onde a situação inicial quanto às vias de recorribilidade não fosse, ao tempo, totalmente clara e incontroversa, e por isso a conduta adoptada por parte do particular recorrente não revele qualquer negligência em contestar a situação, nem lhe fosse manifestamente e claramente exigível, à data, uma outra opção processual.
21ª - E, ainda, em casos em que a situação, a acrescer às anteriores, diga respeito a meros actos de 'liquidação de receitas tributárias', onde não se justifica substancialmente a restrição operada pelo efeito preclusivo implicado na noção.
22ª- Deste modo, é inconstitucional a norma do art. 62° n1 alínea a) do ETAF, e bem assim a do art. 120° e 123° do CPT, quando interpretadas no sentido de o recurso ou a impugnação judicial aí consagrados não abranger nunca os casos de recurso de actos confirmativos, nomeadamente actos conf'irmativos das
'liquidações de receita emolumentar' ainda não impugnadas em Tribunal mas recorridas graciosamente. Nestes termos. e nos melhores de Direito que V. Exas mais doutamente suprirão: a)- devem ser julgadas inconstitucionais as normas dos arts. 92º e 100º do CPT quando interpretadas no sentido de a possibilidade de recurso contencioso aí prevista contra actos confirmativos de actos primários de liquidação ainda não judicialmente impugnados, não abranger o caso em que os actos primários de liquidação de receita tributária provenham de órgãos do Estado não inseridos na DGI; b) - devem ser julgadas inconstitucionais as normas dos arts. 120º e 123° do CPT sobre a 'impugnação judicial', no chamado 'processo de justiça tributário'
(Capítulo II do Título III do CPT), quando interpretadas no sentido de que esse
'processo de impugnação' nos Tribunais Tributários não admite, nunca, a impugnação de actos que sejam confirmativos de actos de liquidação anteriores não judicialmente impugnados. c) - deve ser julgada inconstitucional a norma do art. 62° nº1 a) do ETAF (e bem assim as anteriores 120º e 123º do CPT) quando interpretada no sentido de o recurso ou a impugnação judicial aí consagradas não abranger nunca os casos de recurso de 'actos confirmativos', nomeadamente actos confirmativos das
'liquidações de receita emolumentar' ainda não impugnadas em Tribunal mas recorridas graciosamente. ' Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – As normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada são as dos artigos 62º nº 1 alínea a) do ETAF, 92º nº 2, 100º, 118º nº 2 e 123º do CPT.
A primeira na interpretação que lhe teria sido dada no acórdão recorrido de que da liquidação de emolumentos cabe única e exclusivamente recurso para o tribunal tributário de 1ª instância, ficando precludida a possibilidade de serem sindicados actos administrativos de superiores hierárquicos que indefiram recurso graciosos daquele acto tributário.
As restantes na interpretação de que a opção concedida por tais disposições ao particular contribuinte (impugnação judicial ou reclamação e recurso gracioso, mas sempre com a possibilidade de recurso contencioso do acto desfavorável do superior hierárquico) se não aplica às liquidações efectuadas pela Administração não fiscal.
Por último, quanto a todas as normas conjugadas entre si na interpretação de que o acto confirmativo de um acto de liquidação emolumentar se não considera acto lesivo, mesmo que não tenha sido deduzida impugnação judicial.
Os princípios constitucionais violados seriam o da garantia de acesso à jurisdição administrativa e fiscal e a uma tutela judicial efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos e o da igualdade previstos nos artigos 13º,
18º e 268º nº 4 da CRP.
3 – Começa por se salientar que se não integra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional sindicar o acerto da interpretação e aplicação do direito infra--constitucional feitas na decisão recorrida.
Ao Tribunal cabe apenas confrontar as normas aplicadas, na interpretação que lhes foi dada, com normas ou princípios constitucionais, os quais funcionam como parâmetro do juízo de constitucionalidade que lhe é pedido.
Não está, assim, em causa, no presente recurso, saber se, correctamente interpretado, o direito aplicado imporia, ou não, a rejeição dos recursos contenciosos interpostos pela recorrente, por manifesta ilegalidade – a irrecorribilidade dos actos impugnados por falta de lesividade.
Com efeito, a decisão recorrida infere do disposto no artigo 62º nº 1 alínea a) do ETAF que da liquidação dos emolumentos notariais cabe recurso directo para o tribunal tributário de 1ª instância, tendo aquele preceito, ainda em conjugação com o disposto no artigo 121º nº 1 do mesmo Estatuto, revogado os artigos 69º do Decreto-Lei nº 519 F2/79 e 139º e 140º do Regulamento dos Serviços dos Registos e do Notariado aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 55/80.
Por outro lado, considera inaplicáveis à liquidação dos mesmos emolumentos os artigos 92º nº 2 e 100º do CPT, não havendo, assim, lugar a recurso contencioso do acto de liquidação praticado e confirmado em reclamação pelo notário.
A tese do acórdão recorrido é, em suma, a de que o acto de liquidação lesivo – e logo directamente recorrível – é o acto praticado pelo notário; isto – note-se – sem embargo da faculdade de o interessado utilizar meios graciosos de impugnação que, como meios facultativos, dão lugar, em caso de indeferimento, a actos confirmativos, não lesivos, irrecorríveis contenciosamente.
Por outras palavras, para impugnar o acto de liquidação de emolumentos notariais, o interessado dispõe de duas vias: a contenciosa, com recurso directo do acto para o tribunal tributário e a graciosa sem que, porém, esta proporcione, a final, em caso de indeferimento, o recurso contencioso.
A recorrente, para além de questionar o acerto deste entendimento (conclusões 4ª a 9ª das alegações) no estrito plano do direito infra-constitucional – o que, pelas razões apontadas, não será apreciado por este Tribunal – sustenta que as normas em causa, com a interpretação dada no acórdão recorrido ofendem o direito de acesso à justiça e à tutela efectiva dos direitos dos cidadãos e o princípio da igualdade.
Vejamos se é assim, começando precisamente pela invocada violação deste último princípio.
Para a recorrente, o tratamento discriminatório que deriva da aludida interpretação normativa residiria no seguinte:
Relativamente à liquidação das receitas tributárias em geral, mas, mais precisamente, às receitas dos impostos, o CPT consagra um regime que permite ao interessado a impugnação contenciosa directa do acto de liquidação e, paralelamente, a impugnação por via graciosa – reclamação e recurso hierárquico
– não ficando impedido, neste caso, o acesso à via contenciosa, mediante a impugnação do acto que decida desfavoravelmente o recurso hierárquico.
O regime de impugnação da liquidação de emolumentos notariais, tal como ele foi interpretado no acórdão recorrido e que acima se expôs, envolve uma diminuição das garantias dos interessados, facultando o acesso à via contenciosa unicamente através da impugnação do acto de liquidação praticado pelo notário.
Esta diferenciação não assentaria em nenhum fundamento razoável, constituindo uma discriminação constitucionalmente reprovada.
A resolução da questão de constitucionalidade passa, nem primeiro momento, para elucidação do verdadeiro sentido da diferença dos dois regimes, não se suscitando dúvidas de que estes não são, em rigor, iguais.
Em ambos os casos, como se viu, o acesso à via contenciosa está garantido: no caso dos autos, com a recorribilidade do acto de liquidação praticado pelo notário, no regime geral, com a recorribilidade quer do acto de liquidação da receita tributária, quer do acto que decide desfavoravelmente o recurso hierárquico.
No que concerne às vias graciosos de impugnação, não há, por outro lado, qualquer distinção: em ambos os casos, o interessado tem a faculdade de reclamar e recorrer na via administrativa, no primeiro por 'a reclamação ou o recurso hierárquico (serem) sempre obviamente admissíveis na cadeia hierárquica, em relação às decisões do subalterno (...) quando este age no exercício de uma competência reservada', como se escreve no acórdão recorrido, no segundo por expressa disposição da lei (artigos 95º, 98º, 99º e 100º do CPT).
Por esta via administrativa e em ambos os casos podem, pois, os interessados obter a satisfação dos seus direitos, com a revogação dos actos de liquidação impugnados.
Ainda em ambos os casos e quanto aos efeitos dos recursos administrativos, não há qualquer distinção, pois os recursos não têm efeito suspensivo nos termos gerais e por força dos artigos 92º nº 1 e 100º nº 1 do CPT.
Daqui resulta que a única verdadeira diferença reside na recorribilidade do acto que desfavoravelmente decide o recurso hierárquico no regime geral, em contrário do que se verificaria quanto à liquidação dos emolumentos notarias.
Mas daqui deverá inferir-se que se verifica uma restrição minimamente significativa dos direitos dos interessados relativamente aos actos de liquidação daqueles emolumentos ?
Crê-se que não.
Na verdade, o que se pretende com a utilização da via administrativa é a revogação pelo superior hierárquico do acto de liquidação desfavorável e isso, como se viu, é viável em ambas as situações.
A recorribilidade do acto que decide desfavoravelmente a impugnação hierárquica pouco adianta na defesa dos direitos do interessado no ponto em que, mantida a decisão do subalterno, já esta poderia ter sido impugnada na via contenciosa.
Por outras palavras, o recurso contencioso do acto 'confirmativo' do acto de liquidação – e só neste caso a questão de igualdade de direitos se coloca – sem que a utilização dos meios impugnatórios administrativos tenha sequer efeitos suspensivos, acaba por redundar, em direitas contas, no retardamento do acesso à via judicial e da resolução definitiva do litígio do interessado com a Administração.
E não pode aqui deixar de se recordar que, na perspectiva dos direitos dos administrados, as críticas mais persistentes e com pretenso apoio constitucional, se têm até concentrado na necessidade de recursos hierárquicos com prejuízo da imediata recorribilidade de actos de subalternos face ao disposto no artigo 268º nº 4 da CRP.
Mas há outra razão para a resposta negativa à questão suscitada.
É que a recorribilidade do acto que decide o recurso hierárquico nos termos regulados pelo CPT pressupõe que o interessado não tenha impugnado judicialmente a liquidação.
Isto significa que a situação é absolutamente idêntica em ambos os casos que se têm vindo a confrontar quando os interessados impugnam imediatamente na via contenciosa o acto de liquidação, sem prejuízo de, paralela e simultaneamente, fazerem uso de meios graciosos.
A diferença acaba por residir, afinal, no facto de, nos termos regulados no CPT, o interessado poder recorrer contenciosamente ou do acto de liquidação ou da decisão desfavorável do recurso hierárquico enquanto, no caso dos emolumentos notariais, só poder fazê-lo daquele primeiro acto.
Ora, esta escolha do interessado – sendo certo que, nas duas alternativas, os actos se configuram como igualmente desfavoráveis e em circunstâncias semelhantes (particularmente no que respeita ao efeito não suspensivo do recurso hierárquico) – mesmo a reconhecer-se como um direito, não assume relevo suficiente para que, constitucionalmente e em obediência ao princípio da igualdade, se impusesse a sua atribuição também a quem pretende impugnar a liquidação de emolumentos notariais.
Trata-se, na verdade, de uma diferença de regulamentação jurídica – porventura questionável do ponto de vista do direito ordinário tal como interpretado no acórdão recorrido – que não afecta a defesa dos direitos impugnatórios dos actos de liquidação de emolumentos notariais.
De resto, as leis tributárias respeitantes especificamente a determinados tributos – todos eles fazendo parte das 'receitas tributárias' – consagram muitas vezes regras próprias, em matéria de garantias de defesa, não inteiramente coincidentes com as regras gerais constantes do CPT (tenha-se p. ex. em vista a regra do efeito meramente devolutivo do recurso hierárquico expressa no artigo 92º nº 1 do CPT, que não é seguida no Código do IRC – artigo
112º nº 3), tudo no âmbito da liberdade de conformação do legislador a quem compete 'definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente'
(Gomes Canotilho e Vital Moreira 'Constituição da República Portuguesa Anotada', nota V ao artigo 13º, p. 127).
No caso não é o facto de os emolumentos notariais se qualificarem como 'receitas tributárias' que obrigaria o legislador, no respeito pelo princípio da igualdade, a regular as garantias de defesa em termos absolutamente idênticos aos que para a liquidação daquelas e, em geral, constam do CPT, o qual, de resto, ao menos primariamente, prevê a impugnação de impostos.
Ponto é que (e mesmo sem abordar a questão de saber se os emolumentos notariais de todo o modo não revestem características justificativas de um regime particular) a diferença de regime não afecte aquelas garantias – e foi esta a conclusão a que atrás se chegou.
Em suma, pois, não violam o princípio da igualdade as normas dos artigos na interpretação dada no acórdão recorrido.
4 – O que se deixa dito aponta, também, para a resposta ao segundo e terceiro fundamentos de inconstitucionalidade – a violação do direito ao acesso aos tribunais (no caso, à jurisdição administrativa e fiscal) e a uma tutela jurídica efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos.
Para a recorrente, como se viu, a invocada violação da Constituição residiria essencialmente do entendimento de não ser recorrível o acto que decide o recurso hierárquico, não tendo ocorrido impugnação judicial do acto de liquidação dos emolumentos notariais.
Note-se, antes do mais, que esta pronúncia do acórdão recorrido supõe a impugnabilidade contenciosa directa do acto de liquidação dos emolumentos, como acto lesivo dos direitos do interessado.
O que significa que, para a recorrente, mesmo admitindo essa impugnabilidade directa, o artigo 268º nº 4 da CRP impõe a recorribilidade também da decisão desfavorável do recurso hierárquico.
Mas sem razão.
O princípio ínsito no artigo 268º nº 4 da CRP, fazendo valer para os actos administrativos 'a doutrina geral consignada pela primeira parte do artigo 20º' da CRP (Acórdão nº 84/84 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 4º vol. p. 91) garante aos administrados, em termos amplos, a 'tutela judiciária efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos', através 'nomeadamente' da
'impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem'.
A Constituição impõe, assim, ao legislador que não obste à defesa judicial dos direitos e interesses lesados pela Administração – a toda a lesão dos direitos ou interesses mediante um acto administrativo corresponderá um recurso contencioso que permita ao cidadão eliminá-la.
Não está, porém, o legislador impedido, na regulação deste meio contencioso de impugnação, de determinar quais os actos da Administração que se devem considerar lesivos para efeito de facultar a sua recorribilidade; o que a Constituição impede, nessa determinação dos actos (lesivos) recorríveis, é que o legislador deixe de fora actos que efectivamente afectam a esfera jurídica dos administrados.
Tem sido este, aliás, o entendimento do Tribunal Constitucional, ao julgar constitucionalmente admissível a irrecorribilidade de actos sujeitos a recurso hierárquico necessário e de actos confirmativos (cfr., entre outros, Acórdãos nºs 159/95 e 603/95 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 30º vol. p. 795 e 32º vol. p. 411, respectivamente).
Por outro lado e suposta, no regime de impugnações contenciosas a 'cobertura' completa dos actos lesivos, não impõe, também o artigo 268º nº 4 da CRP que o legislador ofereça ao interessado, à sua escolha, várias alternativas de impugnação – deste ou daquele acto – quando uma delas, e relativa a um determinado acto, é bastante para o administrado obter do tribunal a eliminação da lesão sofrida.
Assim, aliás, se compreende que, no acórdão recorrido, se refiram as normas do regime estabelecido no CPT como 'espúrias à teoria geral do acto administrativo', ao permitirem que, sendo impugnável directamente na via contenciosa o acto de liquidação tributária e por se não utilizar essa via, se recorra da decisão desfavorável do recurso hierárquico que, afinal mantém ou confirma aquele acto de liquidação (o mesmo é dizer os efeitos lesivos deste acto) – trata-se, manifestamente, de um regime não imposto pela Constituição .
Facultando, pois, o ETAF (artigo 62º nº 1 alínea a)) a impugnação directa do acto de liquidação dos emolumentos notariais, cumprida fica a exigência constitucional de garantir o acesso à jurisdição administrativa e fiscal e de assegurar a tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, não impondo os mesmos comandos constitucionais (artigos 20º nº 1 e
268º nº 4 da CRP) que, paralelamente, se faculte, ainda o recurso de decisão desfavorável da impugnação hierárquica.
E é por isso que se revela impertinente a invocação do disposto no artº 18º da CRP: não está em causa uma restrição do direito ao recurso contencioso, que não
é configurado na Constituição como um direito à impugnação de quaisquer actos de autoridade – ele reporta-se apenas a actos lesivos, não abrangendo os que, posteriormente e sem que se amplie a lesão, os confirmam expressamente ou indeferem pretensões revogatórias dos primeiros.
Improcedem, pois, todas as arguições de inconstitucionalidade sustentadas pela recorrente.
5 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 5 de Abril de 2000 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa