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Processo n.º 19/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, relativamente ao objeto respetivo, pode ler-se o seguinte:
“ (…) a recorrente esclarece que, com o presente recurso, pretende:
(…) Que o Tribunal Constitucional aprecie a “constitucionalidade do artigo 498º nº2 do Código do Processo Civil quando interpretado no sentido de que o falido António Fernando da Cruz Novo e a “Massa Falida” de António Fernando da Cruz Novo são sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica a mesma identidade de sujeitos.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) No requerimento de interposição do recurso, a recorrente identifica a decisão recorrida como correspondendo ao acórdão, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 10 de novembro de 2011, que – na perspetiva da recorrente – é “parte integrante” do acórdão de 15 de setembro do mesmo ano.
A formulação escolhida pela recorrente, partindo do equívoco de desconsiderar a autonomia dos dois referidos arestos, acaba por não identificar a concreta decisão recorrida.
Na verdade, o acórdão de 10 de novembro de 2011 não defere a arguição de nulidade invocada, pelo que não procede a qualquer correção ou aditamento que se possa considerar, nos termos do artigo 670.º do Código de Processo Civil, parte integrante do aresto precedente.
Independentemente da referida deficiência, relativamente ao cumprimento do ónus de identificação inequívoca da decisão recorrida, o presente recurso sempre seria inadmissível – quer consideremos a decisão recorrida como correspondendo ao acórdão de 15 de setembro de 2011, quer a perspetivemos como correspondendo ao aresto proferido em 10 de novembro do mesmo ano – por não se encontrarem cumulativamente verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, como melhor analisaremos.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Comecemos por verificar a natureza do objeto do recurso.
Como já aflorámos, o recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
Nestes termos, recai sobre a parte, que pretender interpor recurso de constitucionalidade, o ónus de selecionar o critério normativo – entendido como regra tendencialmente abstrata, vocacionada para aplicação a uma generalidade de situações – utilizado como ratio decidendi da decisão recorrida, identificando o preceito ou conjugação de preceitos de que tal critério foi extraído e em que encontra um mínimo de correspondência literal.
Ora, na presente situação, a recorrente enunciou a questão, que erigiu como objeto do recurso, reportando-a diretamente ao caso concreto e às partes envolvidas nas ações em análise, que identificou nominalmente, pretendendo aparentemente a sindicância da decisão, na sua componente de aplicação ao caso concreto de determinado critério normativo, dimensão que se encontra subtraída à apreciação deste Tribunal.
Porém, sempre se dirá que, ainda que a recorrente tivesse formulado, de forma correta, uma questão normativa, depurada de elementos casuísticos, no requerimento de interposição de recurso, estaria prejudicada a admissibilidade do mesmo, por uma segunda ordem de razões.
Se considerarmos como decisão recorrida a correspondente ao acórdão de 10 de novembro de 2011, teremos de concluir que um recurso de constitucionalidade, que tivesse como objeto uma norma ou interpretação normativa extraível do artigo 498.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, seria inadmissível, por tal decisão não aplicar qualquer critério normativo extraível do referido preceito, limitando-se a indeferir a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, assim se centrando primacialmente no artigo 668.º do mesmo diploma.
Se, por outro lado, considerarmos como decisão recorrida a correspondente ao acórdão de 15 de setembro de 2011, é notória a falta de cumprimento adequado do ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade normativa, perante o tribunal a quo.
O cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão de constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, in casu, analisada a motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça – peça processual em que a recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso a interpor para o Tribunal Constitucional – constata-se que a recorrente se reporta à alegada violação da Lei Fundamental, nos seguintes termos:
“ (…) Há inconstitucionalidade do (…) artigo 498º, nº 2, quando interpretado no sentido de que o Falido António Fernando da Cruz Novo e a “Massa Falida” de António Fernando da Cruz Novo são, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, a mesma identidade de sujeitos;
Inconstitucionalidade essa que, desde já, se invoca.”
Do excerto transcrito conclui-se que, além de a recorrente não autonomizar o critério normativo do momento da sua aplicação ao caso concreto, igualmente não densifica argumentativamente o seu juízo de inconstitucionalidade, por referência aos parâmetros da Lei Fundamental que considera violados, e que, de resto, nem sequer identifica, como salienta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de setembro de 2011.
Ora, seria na referida peça processual que a recorrente deveria suscitar a questão, que pretendesse apresentar como objeto em ulterior recurso de constitucionalidade, não relevando já qualquer suscitação em incidente posterior à decisão.
Por tudo quanto fica exposto, conclui-se pela inadmissibilidade do presente recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. A reclamante reconhece que “poderia ter formulado as alegações de recurso de forma mais perfeita”; porém, afirma que não pretendeu a sindicância da decisão jurisdicional proferida, mas de um critério normativo, consubstanciado na “interpretação do artigo 498.º, n.º 2, do CPC, no sentido de que falido e massa falida são, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, a mesma identidade de sujeitos processuais”, defendendo que tal critério constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida.
Relativamente à alegada falta de cumprimento adequado do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, refere a reclamante, reportando-se à motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça que “tudo nos autos indica que o STJ considerou essa motivação incompleta, insuficiente, obscura, complexa ou que nela se não procedeu às especificações relativas às normas violadas, ao fundamento jurídico da decisão ou a erro na determinação da norma aplicável, (…) pelo que o STJ estava legalmente obrigado a convidar a Recorrente a apresentar, completar, esclarecer ou sintetizar essa motivação alegadamente imperfeita”.
Conclui que a aludida omissão de convite “postergou o direito da Recorrente a ver analisada naquele Tribunal o mérito da questão de inconstitucionalidade que foi suscitada em tempo útil”. Assim, a reclamante apenas veio a abordar tal questão, de forma mais desenvolvida, na “reclamação que culminou com o acórdão STJ de 10 de novembro de 2011”, por ter sido “esse o único momento em que pôde intervir processualmente para corrigir as imperfeições da suscitação prévia de inconstitucionalidade”.
Nesta consonância, termina pedindo que seja revogada a decisão reclamada, ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação de mérito.
Apenas o reclamado Albino Faria Lages apresentou resposta, referindo que a reclamação não abala, de modo algum, os fundamentos da decisão sumária, pelo que deve ser indeferida.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pela reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, parece inferir-se da alegação da reclamante a convicção de que o não cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade - reportado a ulterior e, na altura, hipotético recurso de constitucionalidade – se encontra justificado face à circunstância de não lhe ter sido dirigido convite ao aperfeiçoamento, por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Tal alegação, porém, não procede. Aliás, argumentação paralela já resultava da arguição de nulidade apresentada junto do tribunal a quo, tendo sido julgada improcedente por acórdão de 10 de novembro de 2011.
Não tendo sido aduzidos novos argumentos, que abalem os fundamentos da decisão reclamada, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 23 de maio de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.