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Processo nº 312/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. L. R. interpôs dois recursos do acórdão da 5ª Vara Criminal de Lisboa que o condenou, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de quatro anos e quatro meses de prisão e na pena acessória de expulsão do território nacional por cinco anos: um, para o Tribunal da Relação de Lisboa, subscrito pelo advogado que o representava anteriormente no processo; outro, através de um novo advogado, nomeado por procuração que revogou a inicial, para o Supremo Tribunal de Justiça. O Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 19 de Janeiro de 2000, fls. 18, considerando que a revogação da procuração passada ao advogado constituído em primeiro lugar só produziu efeitos após este ter interposto e motivado o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do disposto no nº 2 do artigo
39º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal, entendeu ser inadmissível o segundo recurso. 'De facto, quando este segundo recurso foi interposto estava já validamente exercido o direito de recorrer daquele acórdão por banda do arguido, não sendo, pois, legítima a repetição de tal acto. Assim, o segundo recurso é inadmissível, pelo que dele se não pode conhecer'. No que respeita ao recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, o Supremo Tribunal de Justiça determinou 'a remessa dos autos para o Tribunal da Relação de Lisboa a fim de se conhecer do primeiro recurso interposto pelo arguido'. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que fosse julgada inconstitucional a norma, constante do nº 1 do artigo 150º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal, 'quando interpretado tal normativo no sentido dado pelo Tribunal ‘a quo’ e constantes do douto Ac. proferido a fls., ou seja, que não era de se pronunciar pelo recurso a si dirigido, rejeitando-o, por ter sido interposto subsequentemente a um outro, tendo-se esgotado o direito a recorrer.
(...) Devendo, ao invés, interpretar tal normativo no seu verdadeiro alcance, ou seja, que a data processual daquele que chama ‘segundo recurso’ é a mesma do que a que consta daquele que designa por ‘primeiro recurso’, estando perante dois actos processuais praticados na mesma data, não tendo o direito de ‘escolher’ que recurso deve precludir o outro'. Em seu entender, o Supremo Tribunal de Justiça 'interpretou e aplicou o disposto no art. 150º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal, no sentido do recurso que a si (S.T.J.) foi dirigido, a que designou de ‘segundo recurso’ foi interposto em data (desse acto processual) subsequente ao do ‘primeiro recurso’, este dirigido (pelo primeiro e anterior mandatário do recorrente) para o Tribunal da Relação de Lisboa'. Ora esta interpretação violaria 'o disposto no art. 32º, nºs 1 e 6 da Constituição, não se assegurando um direito efectivo ao RECURSO, nem se respeitando, por outro lado, o princípio do contraditório, havendo igualmente violação do princípio da igualdade (art. 13º, nº 1 da C.R.P.). O recurso, porém, não foi admitido, pelo despacho de fls. 22, com o fundamento de que 'este Supremo Tribunal, no referido acórdão não interpretou nem aplicou, mesmo implicitamente, o artº 150º, nº 1 do Cód. Proc. Civil. Só por total sofisma se pode afirmar o contrário'.
2. Inconformado, L. R. reclamou para o Tribunal Constitucional, 'nos termos do nº 4 do art. 76º da Lei nº 28/82, de 15 de' Novembro, sustentando que
'A decisão de rejeição do recurso assenta em duas ordens de considerações, a saber:
1. Que no Ac. recorrido o Supremo Tribunal de Justiça não interpretou nem aplicou, mesmo implicitamente a norma constante do art. 150, n.º 1 do C.P.C. 'Só por total sofisma se pode afirmar o contrário'.
2. Da existência de um primeiro recurso, dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, sobre a mesma questão controvertida, o que impede a entrada e posterior análise do segundo recurso, este dirigido ao Tribunal 'a quo'. Invoca-se, nesse despacho a final. Em que não foi admitido recurso para esse Tribunal Constitucional, face ao disposto nos arts. 70º, n.º 1 al. b) e 76º n.º
2 da Lei 28/82. Porém, constata-se que nenhuma referência foi expendida, no despacho de que ora se reclama, qualquer consideração sobre o circunstancialismo descrito no art.
70º n.º 1 al. b), o qual dispõem: 'Cabe recurso para o TC, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', pelo que se considera dever tratar-se de lapso material, ou, a não ser assim, trata-se da aplicação de uma disposição legal (o referido art. 70º n.º 1 al. b)) sem ter na sua base qualquer fundamentação invocada no despacho de que se reclama. Por seu lado, consideramos que não foi devidamente exposta a razão (de entre aquelas que a Lei possibilita o indeferimento) ou razões em que o Mmº Juiz Conselheiro 'a quo' assentou a sua decisão, isto é, deveria, o decisor, invocar por que razão 'in casu' não cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em que previsão do n.º 2 do art. 76º da Lei 28/82 se fundou essa decisão. A não ser assim, constata-se que a decisão reclamada invoca tão só a matéria de facto (que aliás esteve na base do seu Ac. inicial) para rejeitar o recurso para esse Tribunal Constitucional, quando, ao invés, e por se tratar de matéria relacionada com a al. b) do n.º 1 do art. 70º (em nenhuma linha, reiteramos, a decisão reclamada refere que esta questão da inconstitucionalidade da norma invocada não foi suscitada 'durante' o processo) deveria, salvo melhor opinião, ter aquele Supremo Tribunal invocado matéria relacionada com a previsão legal constante daquele referido artigo 70º! Embora, a nosso ver, a posição do Tribunal 'a quo' não se enquadre no estatuído nos arts. 70º n.º 1 al. b) e 76º n.º 2 da Lei n.º 28/82 sempre diremos, relativamente à questão de mérito, que a decisão tomada falece de razão, uma vez que é óbvio que o art. 150º n.º 1 do C.P.C. existe no nosso ordenamento jurídico, e não é pelo simples facto de constar ou não de um processo a prova do registo de correio que se deverá aplicar ou não esse dispositivo. Tanto assim é que o que aquela norma veio resolver (enganou-se o legislador) foi a centralização e congestionamento das Secretarias Judiciais, estabelecendo que todas aquelas peças processuais 'podem ser entregues na Secretaria ou a esta remetidos pelo correio, sob registo ... (...) valendo, neste caso, como data do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal (Vd. art. 150º n.º
1 do CPC). Veja-se, a este respeito o Ac. RL, de 25.6.1998 in CJ, 1998, 3º Tomo, pág. 133 em anotação ao art. 150º n.º 1 do CPC, referido no Código de processo Civil Anotado, de Abílio Neto, 15ª Edição Actualizada, de Setembro de 1999, 'III - Diversamente, o art. 150º n.º 1 do CPC não se refere à hora, pelo que a data a que se reporta é o dia em que o registo foi realizado na estação de correios'. E ainda, o Ac. do STJ, de 19.11.97, in CJ do STJ, 1997, 3º Tomo, pág. 243 'O art. 150º do Código de Processo Civil é aplicável no processo penal'. Como vemos, vai noutro sentido o entendimento do Ac. e agora também do despacho reclamado, em que o que conta é o número de registo de entrada no Tribunal (o que se relaciona claramente com as horas de entrada), não obstante o 1º e 2º recursos (um entregue na Secretaria outro nos Correios) terem a mesma data aposta. Com esta decisão do Supremo Tribunal está abalada a confiança que o recorrente depositava naquela norma processual civil (aplicável ao processo penal por força do art. 4º do CPP). Sendo certo que o Tribunal 'a quo' conhece perfeitamente a disposição processual constante do aludido art. 150º n.º 1 do CPC, embora a ela não se tenha referido expressamente, claro está que, no caso sub judice, ao invocar o art. 39º n.º 2 do CPC feriu gravemente o que dispõe, e certamente não deixou se interpretar e de aplicar (mesma de forma implícita) o referido art. 150º n.º 1 do mesmo Código, de uma forma que viola claramente o disposto no art. 32º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, já que ao que atendeu foi à hora de entrada (o n.º registo) e não ao dia de entrada com equivalência ao dia em que se efectivou o registo postal. Com o entendimento do tribunal 'a quo' a incidir, reiterou-o claramente com o despacho de que agora se reclama, sobre as horas (números de registo de entrada) e não sobre o dia, com que este entendimento, com este interpretação e aplicação
(a qual jamais necessitou que o Mmº Juiz Conselheiro referisse expressamente qual a norma processual a que se reportava) do art. 150º n.º 1 do CPC (ainda por cima etiquetando o recorrente de sofista) está o Supremo Tribunal de Justiça a violar claramente o art. 32º n.º 1 e 6 da CRP. Reitera-se, o despacho que negou a admissão do recurso para o Tribunal Constitucional não possui base legal, não tendo o Sr. Juiz Conselheiro Relator invocado, melhor, fundamentado, por que razão estava o recorrente a violar o disposto nos arts,. 70º n.º 1 al. b) e 76º, n.º 2 da Lei 28/82. Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, consequentemente, ser admitido o recurso.'
O relator manteve o despacho de não admissão. Notificado para o efeito, o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido da não admissão do recurso, pela mesma razão de não ter sido aplicada pela decisão recorrida a norma impugnada.
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público, notificado nos termos previsto no nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, reiterou a falta de fundamento da reclamação. Em seu entender, é
'verdadeiramente ininteligível qual a verdadeira ‘questão de constitucionalidade normativa’ que o ora reclamante pretende reportar ao art. 150º, nº 1, do CPC – preceito que se limita a admitir a prática de actos das partes através de registo postal, valendo como data do acto a da efectivação do respectivo registo'.
'Na verdade, na situação dos autos, interpõe o arguido, de forma insólita, dois recursos concomitantes e 'alternativos', dirigido um à Relação e o outro ao STJ
– entendendo o Supremo que o exercício do direito de impugnar a decisão proferida em 1ª instância, invocando razões de facto e de direito como fundamento da dissidência, havia esgotado e precludido a possibilidade legal de recorrer 'per saltum' para o STJ. Ora, tal raciocínio do Supremo, claramente expresso na decisão recorrida, não é, desde logo, moldado em função de uma estrita 'cronologia' dos ditos requerimentos de interposição de recurso – antes assentando, como 'ratio decidendi' essencial, na estruturação e precedência lógico-jurídica entre a concomitante utilização daqueles dois meios impugnatórios. Tal implica que a norma do art. 150º, n.º 1, do CPC não haja efectivamente servido de suporte à decisão recorrida, não tendo sido por ela 'aplicada', o que faz naturalmente cair pela base o recurso da fiscalização concreta que o arguido pretendeu interpor. Acresce que não compete a este Tribunal Constitucional sindicar matéria de facto
'processual', traduzida em saber qual dos dois recursos terá sido primeiramente
'apresentado' em juízo – já que, como é óbvio e inquestionável, tal matéria se não situa dentro dos parâmetros de uma questão de 'inconstitucionalidade normativa', susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta.'
4. Como exige a citada Lei nº 28/82 e o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, é pressuposto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para o que agora releva, que a norma impugnada tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, como sua ratio decidendi
(cfr., por exemplo, o acórdão nº 367/94, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 28, pág. 147). Ora o nº 1 do artigo 150º do Código de Processo Civil tem o seguinte conteúdo:
'1. Os articulados, requerimentos, respostas e as peças referentes a quaisquer actos que devam ser praticados por escrito pelas partes no processo podem ser entregues na secretaria judicial ou a esta remetidos pelo correio, sob registo, acompanhados dos documentos e duplicados necessários, valendo, neste caso, como data do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal.' Sustenta o reclamante que este preceito foi interpretado de forma a permitir que o Supremo Tribunal de Justiça tenha considerado como segundo o recurso que lhe foi dirigido, o que seria inconstitucional pelos motivos apontados; da norma apenas poderia resultar que os recursos tinham a mesma data, não podendo, então, o Supremo Tribunal de Justiça '‘escolher’ que recurso deve precludir o outro'. Ora a verdade é que não foi em consequência da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 150º do Código de Processo Civil que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não conhecer do recurso perante ele interposto. Com efeito, o que determinou esse juízo foi o disposto no nº 2 do artigo 39º do Código de Processo Civil, relativo à fixação do momento a partir do qual se considera revogado o mandato judicial: 'Os efeitos da revogação (...) produzem-se a partir da notificação (...)' , que deve ser feita (nº 1) 'tanto ao mandatário (...), como à parte contrária'. Ora o acórdão que o reclamante impugnou perante o Tribunal Constitucional baseou-se, justamente, na circunstância de, à data da interposição do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, não estar eficazmente revogada a procuração outorgada ao primeiro mandatário, havendo, pois, de considerar-se exercido o direito de recorrer com a interposição de recurso feita por seu intermédio. Não foi por entender que este recurso foi interposto em data anterior àquele que foi dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça que este Tribunal decidiu não conhecer do recurso. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 8 de Junho de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida