Imprimir acórdão
Processo n.º 1238/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, ANEPE – Associação Nacional de Empresas de Parques de Estacionamento veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Assim, importa apreciar se tais requisitos se encontram preenchidos, no presente caso.
(…) Analisada a decisão recorrida, conclui-se que a questão de constitucionalidade, erigida como objeto do recurso – independentemente de qualquer outra apreciação sobre a sua formulação - não encontra reflexo na fundamentação da solução dada ao caso pela decisão recorrida.
Na verdade, o acórdão proferido, em 4 de abril de 2013, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não adere a qualquer entendimento que considere que as “opiniões confrontadas por um maior ou menor número de associados e leituras que dela podem virtualmente fazer, não refletidas na decisão nem dela decorrentes e pelas quais a associação não é nem pode ser responsável” preencham o conceito legal de “decisão de associação de empresas”.
Tal enunciado da questão de constitucionalidade, que a recorrente constrói, assenta, aparentemente, na sua subjetiva apreciação dos factos valorados pela decisão recorrida, que – em conformidade com a sua tese – deveria conduzir à conclusão do não preenchimento, in casu, da previsão legal do tipo contraordenacional em análise.
Essa subjetiva apreciação não é partilhada, porém, pelo tribunal a quo, que confirma o sentido da sentença da 1.ª Instância, expresso, nomeadamente, no seguinte excerto:
“ O artigo 4.º, nº 1, estabelece que “São proibidos (…) as decisões de associações de empresas (…)” O preceito em análise refere-se a “decisões de associações de empresas”, não introduzindo nenhuma exceção. Ora ao falar em decisão este artigo tem em vista todo e qualquer comportamento que traduza uma orientação emitida por, no caso, uma associação, seja qual for a forma exterior que reveste.
O que está em causa é a manifestação de uma vontade coletiva por parte de um conjunto de empresas agrupadas em torno de uma estrutura comum visando a adoção de um determinado comportamento alinhado. Não é necessário que a decisão seja vinculativa ou tenha a pretensão de o ser, bastando que tenha como objeto ou efeito influenciar o comportamento comercial dos seus membros. Assim, uma mera recomendação pode ser considerada como uma decisão. (…)
A “decisão” (…) da ANEPE que está em causa é a carta que esta dirigiu aos seus associados, à Secretaria de Estado do Comércio e Defesa do Consumidor e à Associação Nacional dos Municípios Portugueses, de 9 de maio de 2006. É o culminar da estratégia de reação à entrada em vigor do regime de determinação de preços pela utilização de parques de estacionamento previsto no DL nº 81/2006 de 20.04 que a AdC lhe imputa, e consubstancia a tomada de posição pública da Associação a respeito da matéria.
(…)
Todo e qualquer comportamento que traduza uma orientação emitida por uma associação, seja qual for a forma externa que possa concretamente revestir, desde que tenha a susceptibilidade de exercer uma influência sensível sobre o jogo da concorrência no mercado em causa, pode ser considerada como uma decisão para os efeitos do art. 4 nº 1 da LdC.
É o que se verifica no caso sub judice. A ANEPE, associação nacional de empresas de parques de estacionamento, manifestou publicamente a sua posição face à introdução da Lei 81/2006 de 20.04 e em especial à determinação que dela consta a respeito do preço nos parques de estacionamento, recomendando/orientando/defendendo, visando a adopção dos comportamentos que preconiza no texto da carta de 9 de maio de 2006 (e que mais explicitamente já dera a conhecer aos associados, sob a forma de documentos subscritos pela Secretária Geral ou por membros dos seus órgãos sociais, circulados entre vários associados).
(…)
Tratou-se, pois, de uma decisão de associações de empresas.”
De facto, apreciando tal sentença, na perspetiva da “invocada não subsunção dos factos provados no tipo infracional sub judice”, refere o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 4 de abril de 2013, o seguinte:
“(…) A estratégia da recorrente passa, assim, uma vez mais, por tentar reduzir a sua conduta (i) à sua intervenção ainda no processo legislativo (parecer sobre o projeto de diploma remetido ao Governo a 22.12.2005) e (ii) à carta oficial circular de 9.5.2005;
(…) Deve, pois, segundo a recorrente, ignorar-se o discutido nas reuniões da Associação 21.3.2006 e de 20.4.2006 (…)
As comunicações circuladas pela Secretária-geral da ANEPE (…) pelas empresas associadas entre 20.4.2006 e 2.5.2006 (…)
Nas várias versões do texto circuladas havia referências a quebra de receitas na ordem dos 15% e à inevitabilidade da subida das tarifas em vigor nos parques de estacionamento, ou através de uma taxa de ativação nos primeiros 15 minutos conjugada com um aumento de cerca de 2.5% das tarifas então em vigor, ou através de um aumento de 15% das tarifas então em vigor.
Em todas as versões do texto circuladas está presente a mesma representação gráfica que ilustra as situações descritas.
Na versão de 2.5.2006, “recomenda-se”, expressamente, a instituição de um preço de ingresso ou, em alternativa, aumento de 15% (…)
Tais versões não só foram do conhecimento das empresas associadas, como foram sendo comentadas por várias delas.
Ora, reitere-se, a comunicação formal da ANEPE (carta de 9.5.2006) é a expressão pública da posição desta associação, mas não esgota o seu comportamento neste domínio (…)
Para que estejamos perante uma “decisão de associação de empresas” abrangida pela previsão do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003, não se afigura necessário, sequer, que a mesma apresente efeitos jurídicos obrigatórios ou vinculativos: a decisão existe, para efeitos da aplicação do regime jusconcorrencial, quer os respetivos associados a cumpram ou não, e independentemente da forma que tal decisão possa revestir.
Como tal, estas recomendações podem verificar-se através dos mais variados meios: circulares, boletins informativos, cartas, mensagens de correio eletrónico, declarações a órgãos de comunicação social por diretores ou representantes das associações; e podem, em igual medida, apresentar os mais variados teores, mais ou menos explícitos quanto ao seu objeto e conteúdo (…)
O facto de se recorrer a meios mais ou menos explícitos de recomendação ou sugestão de uma determinada conduta não evita o caráter restritivo da conduta da associação, se o teor for transmitido de modo adequado a coordenar o comportamento comercial ou no mercado das empresas associadas.
(…)
A decisão do Tribunal a quo não merece, pois, qualquer reparo neste domínio, não tendo existido qualquer errada aplicação do direito aos factos.”
Pelo exposto, conclui-se que, em nenhum momento, foi convocado o entendimento plasmado na questão enunciada pela recorrente, pelo que - ainda que se entenda que de tal questão é possível extrair um sentido normativo útil – é manifesto que a mesma não integra a ratio decidendi da decisão recorrida.
Nestes termos, atenta a demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do seu objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo que apenas foi considerado, para delimitar o objeto do recurso, o teor do ponto 4.º do respetivo requerimento de interposição, desconsiderando-se a “explicação e a enunciação da inconstitucionalidade que constam dos restantes 61 artigos” da mesma peça processual.
Defende o reclamante que, nesses pontos, explicitou a questão, que pretendia sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional, em termos coincidentes com a interpretação assumida pelo Tribunal da Relação.
Mais refere o reclamante que a solução da decisão sumária resulta ainda de uma leitura inadequada do acórdão recorrido, o qual, na verdade, assumiu, como ratio decidendi, a norma contida no artigo 4.º da Lei da Concorrência, no sentido invocado pelo reclamante.
Acrescenta o reclamante que, de todo o modo, sempre será de concluir que a decisão reclamada adota uma interpretação demasiado restritiva dos requisitos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, ao contrário da restante jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, conclui pugnando pela revogação da decisão sumária proferida e pela consequente admissão do recurso.
4. O Ministério Público, respondendo à reclamação, manifesta a sua concordância com a decisão reclamada.
Por um lado, acentua que é, desde logo, duvidoso que a recorrente tenha apresentado uma verdadeira dimensão normativa para a questão de constitucionalidade que pretendia suscitar. Por outro lado, a questão de constitucionalidade que apresenta não coincide com a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Conclui, nestes termos, que a reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento, sendo mantida a decisão sumária proferida.
5. A Autoridade da Concorrência igualmente apresentou resposta, pugnando pelo indeferimento da reclamação, que classifica como manifestamente dilatória.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
De facto, impende sobre o recorrente o ónus de enunciar o específico critério normativo que reputa inconstitucional, de forma clara, precisa – e necessariamente sucinta - em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
No caso, a decisão sumária transcreveu o excerto do requerimento de interposição de recurso, em que o recorrente delimitou o respetivo objeto, enunciando a questão que pretendia ver apreciada.
A explicitação dos contornos casuísticos da situação concreta, que deu origem ao processo base, ou a fundamentação do juízo de inconstitucionalidade defendido não podem ser considerados para efeito de delimitação do objeto do recurso, não se inserindo, aliás, em rigor, no âmbito legalmente definido do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, quer por dizerem respeito a matéria não sindicável pelo Tribunal Constitucional, quer por constituírem exposição prematura própria da peça processual de alegações, respetivamente.
Nestes termos, não é atendível a aparente expetativa do reclamante de transformar o ónus de seleção e enunciação certeira da questão de constitucionalidade, que sobre si recai, numa espécie de ónus de construção, pelo Tribunal, de questão coincidente com a ratio decidendi da decisão recorrida, a partir da alegação difusa e prolixa contida no requerimento de interposição de recurso.
Saliente-se que, no presente caso, não estamos perante uma situação em que o recorrente não tenha enunciado o objeto do recurso – omissão, que poderia ser suprida através de resposta a convite ao aperfeiçoamento. Pelo contrário, o recorrente enunciou a questão, cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, permitindo ao Tribunal constatar, afirmativamente, a falta de coincidência da mesma com a ratio decidendi da decisão recorrida, como se explica na decisão sumária reclamada, cuja fundamentação se reitera.
Mais se acrescenta que o critério de apreciação dos pressupostos de admissibilidade do recurso, utilizado na decisão sumária reclamada, não é – ao contrário do que defende o reclamante – demasiado restritivo nem se afasta do sentido geral da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação.
III – Decisão
7. Assim, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 12 de dezembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.