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Processo n.º 100/14
Plenário
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
A – O pedido e apresentação do objeto do referendo.
1. O Presidente da República, nos termos do n.º 8 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 26º e 29º, n.º 1 da Lei n.º 15-A/98, de 3 de abril, requereu ao Tribunal Constitucional, em 28 de janeiro de 2014, a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução n.º 6-A/2014 da Assembleia da República, publicada no Suplemento da 1ª Série do Diário da República n.º 13, de 20 de janeiro de 2014.
A resolução em causa é do seguinte teor:
«Propõe a realização de um referendo sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto.
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115.º e da alínea j) do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa, apresentar a Sua Excelência o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre as perguntas seguintes:
1 — «Concorda que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo possa adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto?»
2 — «Concorda com a adoção por casais, casados ou unidos de facto, do mesmo sexo?».
2. Admitido o pedido pelo Presidente do Tribunal Constitucional, o processo foi concluso ao Relator, em 28 de janeiro de 2014, para efeitos de elaboração do memorando referido nº 2 do artigo 30º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de abril, alterada pelas Leis Orgânicas n.º 4/2005, de 8 de setembro, n.º 3/2010, de 15 de outubro e n.º 1/2011, de 30 de novembro – doravante Lei Orgânica do Regime do Referendo (LORR).
3. Apresentado o memorando, com as indicações referidas no nº 3 do artigo 30º da LORR, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do nº 3 do artigo 31ºda mesma Lei.
4. Na origem da Resolução n.º 6-A/2014 esteve o projeto de resolução n.º 857/XII (Diário da Assembleia da República, II Série A, n.º 14/XII/3, de 24 de outubro de 2013), apresentado por sete deputados do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata (PSD), em que se “propõe a realização de um referendo sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto».
Os subscritores do projeto apontaram os seguintes fundamentos para o mesmo:
«A adoção de crianças por casais do mesmo sexo foi já, por duas vezes, rejeitada na Assembleia da República.
Todavia, foi recentemente aprovada na generalidade uma iniciativa legislativa que visa possibilitar a adoção do filho do cônjuge ou do unido de facto do mesmo sexo, isto é, e usando a terminologia empregue nessa iniciativa, a coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo.
As audições havidas no âmbito do trabalho legislativo de especialidade dessa iniciativa (num total de 17 audições nas mais diversas áreas do conhecimento desde o Direito à Psicologia, passando pela Saúde Mental) permitiram evidenciar que este tema está longe de colher qualquer consenso generalizado e que a diversidade de opiniões é manifesta.
No entanto, esta matéria não foi objeto de discussão pública aturada e repetida, como merecem ser as questões que implicam diretamente a assunção comunitária de um caminho de não retorno e cuja decisão final, sem comprometer a liberdade democrática que avaliza a discórdia, não admite tibiezas no cumprimento daquela que é a vontade maioritária.
Sem respaldo no debate eleitoral das últimas legislativas, sede por excelência da afirmação das convicções e projetos políticos das diferentes candidaturas, os partidos com assento parlamentar não devem, pois, eximir-se de tudo fazer para promover o mais amplo debate nacional sobre esta matéria. De resto, quando os Deputados signatários votaram, na generalidade, a iniciativa legislativa que visa possibilitar a adoção do filho do cônjuge ou do unido de facto do mesmo sexo, fizeram-no em plena consciência individual, sem descurar nenhum destes pressupostos.
A seriedade dos efeitos que uma decisão nos moldes propostos acarretará, a que se liga a fragilidade daqueles por ela visados demandam, de resto, que o debate se faça de forma plena quanto à matéria e cristalina quanto às suas consequências.
Por méritos que se achem na iniciativa parlamentar supramencionada, ninguém, em consciência, pode desmentir o caráter parcelar e tendencialmente insuficiente de uma proposta que visava apenas uma fração da realidade abarcada pela discussão sobre a adoção por casais do mesmo sexo, elas próprias credoras da consideração plena que somente um debate inteiro sobre o universo de direitos que, enquanto cidadãos, lhes cabem pode garantir.
Os deméritos de uma solução legislativa disruptiva, como esta indiscutivelmente se demonstra ser, mas meramente parcelar nos seus efeitos, aparecem sempre como desproporcionados se for possível legislar, como aqui manifestamente se conclui que é o caso, atendendo à completude da realidade a abarcar.
Discutir parcelarmente a adoção de crianças por casais do mesmo sexo não difere, no que à valia da solução final respeita, de anteriores discussões, igualmente parciais, sobre questões ditas fraturantes ou, para nós, de construção de um modelo de sociedade.
Os ónus políticos e as fraturas sociais criadas com a discussão de uma parte destas realidades não é menor do que aqueles que resultam do debate franco sobre a plenitude da temática a tratar.
E os ganhos que se obtêm pela discussão plena destes assuntos, resulte ela na aceitação parcial ou na negação total das soluções apresentadas, podendo ser insatisfatórias para quem defende perspetivas ditas progressistas, permitem, até nessa perspetiva, a possibilidade de se consagrarem soluções de muito maior alcance sem prejudicarem a hipóteses de se gerarem consensos sobre denominadores comuns mínimos entre as visões em confronto.
Estamos, portanto, perante uma matéria que divide a sociedade portuguesa sendo, por isso, convicção dos Deputados proponentes que legitimar qualquer ação futura através de um mandato claro e inequívoco dos cidadãos eleitores, tão direto e imediato quanto possível apenas traz claro ganho ao exercício do mandato parlamentar.
Para tanto, deverão os portugueses ser chamados a pronunciar-se mediante a realização de um referendo nacional.
Os Deputados proponentes entendem ser imperativo proporcionar ao povo português a oportunidade de se pronunciar sobre esta questão que toca em valores e direitos fundamentais que devem ser assumidos na base da liberdade das convicções de cada um.
Assim, nos termos constitucionais, legais e regimentais aplicáveis, os Deputados do PSD, abaixo assinados, apresentam o seguinte projeto de resolução:
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos dos artigos 115º e 161º alínea j) da Constituição da República Portuguesa, apresentar a Sua Excelência o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que todos os cidadãos portugueses eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre as perguntas seguintes:
1. “Concorda que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo possa adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto?”
2. “Concorda com a adoção por casais, casados ou unidos de facto, do mesmo sexo?”».
5. Admitido, sem reservas, pela Presidente da Assembleia da República, o projeto de resolução n.º 857/XII baixou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para discussão e elaboração de parecer.
Após parecer favorável daquela Comissão (Diário da Assembleia da República, II Série - A, n.º 33, de 12 de dezembro de 2013), o projeto foi remetido a plenário, para votação da proposta.
Submetida à votação, na Reunião Plenária, de 17 de janeiro de 2014, a proposta de resolução n.º 857/XII foi aprovada com votos a favor do Partido Social Democrata (PSD), abstenção do Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS), e com votos contra do Partido Socialista (PS), do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda (BE) e Partido Ecologista “os Verdes” (PEV) – cfr. Diário da Assembleia da República, n.º 38, I Série, de 18 de janeiro de 2014.
O texto final, assim aprovado, resultou na resolução agora em análise.
B. Enquadramento atual da questão objeto da proposta de referendo.
6. A capacidade para a coadoção e a adoção conjunta, por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, nunca foi reconhecida na ordem jurídica portuguesa.
O regime jurídico da adoção, como um complexo normativo sistematizado, só recentemente foi introduzido no nosso Direito, designadamente com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, apesar de, no direito anterior, se encontrarem referências avulsas à entrega de menores a «famílias adotivas» (cfr. artigo 20º do Decreto n.º 10 767, de 15 de maio de 1925).
A função que o instituto desempenha – de cariz social ou individualista – não foi constante no tempo, refletindo sempre as dificuldades em assegurar o necessário equilíbrio entre os direitos dos menores e o direito de constituir família dos candidatos a adotantes. Entendido inicialmente como satisfação de um interesse dos adotantes, uma forma de compensar uma situação de esterilidade, é hoje orientado, e tem que ser, pelo «superior interesse da criança» (cfr. artigos 69º da CRP e 1974º do Código Civil). A verdade que subjaz ao instituto dita tal imperativo: «por oposição ao parentesco natural, que é o verdadeiro parentesco, a adoção é assim um parentesco legal, criado à semelhança daquele. Não quer isso dizer, porém, que se trate de uma ficção da lei. O que acontece é que a adoção assenta em outra verdade, uma verdade afetiva e sociológica, distinta da verdade biológica em que se funda o parentesco» (cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, vol. I, Coimbra Editora, 2001, pág. 46).
A evolução que o instituto da adoção sofreu ao longo dos últimos anos, acompanhando a evolução sociológica da família e da parentalidade, com o consequente reflexo no Direito de Família, acentuou-se mais nos requisitos relativos à capacidade para adotar. E percebe-se bem porquê: o superior interesse da criança adoptanda arvora-se em fundamento de restrições legais a direitos, liberdades e garantias dos adotantes (cfr. n.º 2 do artigo 18º da CRP). Todavia, o desenvolvimento físico, intelectual e moral do menor adotando tem que estar ao cuidado de quem tem disponibilidade para satisfazer essas necessidades, e sobretudo de quem tem capacidade para ter com ele uma relação afetiva profunda.
As alterações ocorridas ao longo do tempo no regime da adoção foram no sentido de facilitar a constituição da relação adotiva.
Na primeira versão do Código Civil, apenas era reconhecida capacidade para adotar às pessoas que estivessem casadas entre si há mais de dez anos, não separadas judicialmente de pessoas e bens, que já tivessem completado trinta anos (artigo 1981.º, n.º 1), prescindindo-se deste requisito nos casos em que o adotante era filho ilegítimo de um dos adotantes.
Em 1977, a reforma levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, eliminou o requisito da inexistência de filhos legítimos do casal, tendo em consideração o princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos dentro e fora do casamento; permitiu a adoção por casais que já tivessem filhos; reconheceu a capacidade para adotar às pessoas que estivessem casadas há mais de cinco anos; fixou a idade mínima de 25 anos para ambos os cônjuges; passou admitir a adoção singular por pessoa com mais de trinta e cinco anos de idade; e introduziu ainda o limite máximo de sessenta anos relativamente à idade dos adotantes (artigo 1979.º do Código Civil).
O Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de maio, baixou a idade máxima dos adotantes para cinquenta anos, dispensando este requisito apenas quando o menor adotando fosse filho do cônjuge do adotante; a duração mínima do casamento foi também diminuída para quatro anos; e a idade mínima da adoção singular foi baixada para trinta anos, ou para vinte e cinco anos, no caso de adoção do filho do cônjuge.
Com objetivo de «facilitar a adoção, dando aos futuros adotantes mais segurança contra eventuais reivindicações da família de sangue, mas, garantindo, tanto quanto possível, que a vontade dos pais naturais de “dar” o menor em adoção é genuína e definitiva» (cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 49), o Decreto-lei n.º 120/98, de 8 de maio, veio permitir a adoção por candidatos maiores de sessenta anos, desde que a diferença de idades entre os adotantes e os adotados não fosse superior a 50 anos, ou pelo menos, entre estes e um dos cônjuges adotantes.
Através da aprovação da Lei n.º 135/99, de 28 agosto, a noção jurídica de família sofreu uma evolução, ao atribuir-se efeitos jurídicos às uniões de facto com duração superior a dois anos. Um desses efeitos foi o de reconhecer às pessoas de sexo diferente, que vivessem em união de facto, o direito de adotarem em condições análogas às das pessoas unidas pelo casamento. Porém, essa lei foi substituída pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que veio estender a regulação das uniões de facto às pessoas do mesmo sexo, mas reconhecendo o direito de adoção conjunta apenas aos unidos de facto de sexo diferente (artigo 7.º).
A Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, introduzindo uma ampla reforma no regime da adoção, veio erigir o princípio do superior interesse da criança em finalidade suprema do instituto e reforçar a ideia de que a adoção, em todos os seus estádios, deveria guiar-se por esse fim primacial. No que respeita especificamente aos requisitos dos adotantes, esta lei eliminou o limite máximo de idade do adotante, mantendo porém o requisito de que a partir dos cinquenta anos de idade só poderá haver adoção se a diferença de idades entre o adotante e o adotando não for superior a cinquenta anos, limites que não se aplicam à adoção do filho do cônjuge ou unido de facto. Por outro lado, esses limites podem ser supridos em situações excecionais, sempre que o interesse superior da criança o exija.
Em 2010 foi aprovada a Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Mas quanto à capacidade para adotar, o n.º 1 do artigo 3.º prescreveu que as «alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adoção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuges do mesmo sexo»; e no n.º 2 do mesmo artigo diz-se que «nenhuma disposição legal em matéria de adoção pode ser interpretada em sentido contrário ao disposto no número anterior».
Assim, apesar do casamento entre pessoas do mesmo sexo produzir em tudo o mais os efeitos equivalentes ao casamento civil de pessoas de sexo diferente, está expressamente afastada a possibilidade de adoção por cônjuges do mesmo sexo. Essa é, de resto, também a situação relativa às uniões de facto de pessoas do mesmo sexo que, como se viu, não possuem, contrariamente às pessoas unidas de facto de sexos diferentes, a possibilidade de adotar (cfr. artigo 7.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).
Ante o que fica dito, podemos concluir que o instituto da adoção tem evoluído em dois sentidos: por um lado, reforçar a ideia de que o seu fim último é a promoção do supremo interesse da criança, adotando-se medidas que o promovam, como, por exemplo, a flexibilização dos requisitos da capacidade para adotar no que respeita aos limites etários e ao mínimo de convivência conjugal; por outro lado, a adoção deixou de ser vista como um direito exclusivo de um casal unido pelo matrimónio, passando a permitir-se, inicialmente, a adoção singular, e por fim, a adoção conjunta por casais unidos de facto, desde que de sexo diferente.
A flexibilização desses requisitos não foi porém desenvolvida pelo legislador ao ponto de acompanhar a proteção jurídica que foi sendo concedida às uniões de pessoas do mesmo sexo – seja uma união de facto ou uma união conjugal, neste último caso desde 2010. Aos casais do mesmo sexo é vedada a adoção conjunta e a adoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo do filho do seu cônjuge ou unido de facto.
É neste contexto que várias têm sido as iniciativas legislativas tendentes a consagrar essa possibilidade, e em que se insere a matéria da decisão referendária objeto do presente processo de fiscalização preventiva.
7. De facto, nas sessões legislativas anteriores, as questões sobre as quais versa o referendo foram objeto de vários procedimentos legislativos visando a legalização da coadoção e da adoção conjunta por casais do mesmo sexo.
Na primeira sessão legislativa, os deputados do Bloco de Esquerda apresentaram, em 22 de dezembro de 2011, duas iniciativas legislativas tendentes a eliminar os impedimentos legais de adoção e apadrinhamento civil por pessoas casadas ou em união de facto do mesmo sexo: (i) o Projeto de Lei n.º 126/XII, que tinha por objeto a “alteração da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, e do Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro, eliminando os impedimentos legais de adoção e apadrinhamento civil por pessoas casadas ou em união de facto, com pessoas do mesmo sexo”; (ii) e o Projeto de Lei n.º 127/XII, que tinha por objeto a “alteração do Código do Registo Civil, assegurando a igualdade de tratamento no registo civil para a adoção, apadrinhamento civil e procriação medicamente assistida quando os adotantes, padrinhos, ou um dos progenitores, estejam casados ou unidos de facto com pessoa do mesmo sexo”.
Na exposição de motivos desses projetos, para além do mais, invoca-se o seguinte:
«A adoção homoparental é um direito bloqueado, nomeadamente pelo quadro legal que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É pelo fim desta discriminação e pelo superior interesse das inúmeras crianças que, em Portugal, aguardam a oportunidade de uma família que as acolha e lhes dê todos os cuidados a que têm direito, que se impõe a consagração deste direito na legislação nacional.
Cada criança tem o direito a ser adotada por quem lhe der as melhores condições e a orientação sexual não é um critério que possa intrometer-se no trabalho dos técnicos da Segurança Social que procedem à avaliação de candidatos e candidatas. Retenha-se, neste contexto, a posição assumida em 2010 pela Associação Americana de Psiquiatria: 'A Associação Americana de Psiquiatria apoia as iniciativas que permitam a casais de pessoas do mesmo sexo adotar e coeducar crianças”.
(…)
A adoção por casais do mesmo sexo é hoje legal em 11 países da Europa, como a Holanda, a Suécia, primeiros países a legalizar a adoção por casais homossexuais, Andorra, Bélgica, Noruega, Dinamarca, Islândia, a Inglaterra, o País de Gales e a Escócia, sendo a coadoção aqui permitida e em países como a Alemanha e a Finlândia. Além destes países, a vizinha Espanha procedeu, desde 3 de julho de 2005, à legalização deste direito ao generalizar os requisitos e efeitos de todos os casamentos.
Destaque-se, aliás, que o caminho percorrido em Portugal se distancia do da maioria dos países, onde a adoção foi reconhecida em simultâneo com o casamento, casos da Holanda e da Espanha, ou onde a adoção precedeu o reconhecimento do direito ao casamento».
Na mesma sessão, o Grupo Parlamentar do Partido Ecológico “os Verdes”, apresentou, em 17 de fevereiro de 2012, o Projeto de Lei n.º 178/XII, tendo em vista «alargar as famílias com capacidade de adoção, procedendo à alteração da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio e da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio».
Os três projetos foram discutidos conjuntamente na Reunião Plenária n.º 77, de 24 de fevereiro de 2012, tendo sido todos rejeitados, com votos contra dos Grupos Parlamentares do PSD, CDS-PP e PCP e nove deputados do PS – cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 77/XII/1, de 25 de fevereiro de 2012.
Ainda durante a primeira sessão legislativa, um grupo de deputados do PS tomou a iniciativa de apresentar o Projeto de Lei n.º 278/XII, tendo por objeto “consagra(r) a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e procede(r) à 23.ª alteração ao Código do Registo Civil”.
Apresentaram os subscritores deste projeto os seguintes fundamentos para o mesmo:
«Nos últimos anos tem-se tornado cada vez mais claro o aumento do número de casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, que constituem família e cujos filhos, biológicos ou adotados, crescem num contexto familiar desprovido de proteção jurídica adequada. Com vista a dar uma resposta clara ao problema, o presente projeto de lei destina-se a oferecer um quadro jurídico mais seguro a situações residuais não solucionadas por institutos conhecidos como o da adoção.
(….)
Conscientes de que a adoção singular já é permitida, independentemente da orientação sexual do adotante, mas já não a adoção conjunta por um casal do mesmo sexo, vedada pelo artigo 3º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio e pelo artigo 7º da lei 7/2001, de 11 de maio, politicamente não é possível pôr termo a todos os resquícios de discriminações fundadas no preconceito quanto à homossexualidade.
Para muitos ainda não é líquido, por mais que a realidade e os estudos sobre a matéria demonstrem o contrário, que decorre, sem especificidade justificante que o excecione, do princípio da justiça, do princípio da igualdade, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, do direito à parentalidade e do superior interesse da criança a atribuição em matéria familiar e parental às famílias homoparentais de todos os direitos das demais.
(…)
É justo perguntar: como é que o Direito não impede, pelo menos, esta cegueira perante o que já existe? A resposta passa por permitir que, havendo um casal casado ou unido de facto do mesmo sexo e sendo um dos elementos do casal progenitor de uma criança possa, por sentença judicial, permitir-se a coadoção por parte do membro do casal não progenitor. A coadoção é irrevogável, desde que outra parentalidade, claro, não esteja estabelecida.
(…)
Faça-se um teste à coerência do nosso sistema jurídico à luz do princípio da justiça e das realidades familiares já existentes: num casal de sexo diferente recém-casado, por exemplo, o cônjuge – mesmo que conheça o filho há um mês - pode coadotar, caso a criança só esteja legalmente registada no nome da mãe. Mas numa família em que duas mães planearam e levaram a bom termo a gravidez, a criança não tem, nem pode ter em Portugal, um vínculo legal de qualquer espécie à mãe não biológica. Isto não faz sentido. Salta aos olhos.
O projeto que apresentamos faz apenas isto: introduz coerência valorativa no sistema jurídico português, reconhecendo as famílias diversas com crianças cujos interesses superiores não estão acautelados; permite a coadoção por parte do cônjuge ou unido de facto do pai ou mãe da criança, desde que não exista outra parentalidade anteriormente estabelecida».
Na segunda sessão legislativa, o Grupo Parlamentar do BE apresentou novos projetos de leis – Projeto de Lei n.º 392/XII e Projeto de Lei n.º 393/XII – retomando a iniciativa legislativa de eliminar os bloqueios legais à adoção por parte de casais do mesmo sexo, invocando que «novos dados assinalam a urgência do reconhecimento da adoção homoparental. O Parlamento francês aprovou em 12 de fevereiro o casamento e a adoção por casais do mesmo sexo. Uma vitória marcada por 100 votos de diferença, que assinala os compromissos políticos assumidos pelo novo presidente e pelo partido que o suporta. Poucos dias depois, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou o Governo da Áustria pela recusa da co parentalidade, pondo fim à proibição de adoção por um casal do mesmo sexo, quando a parentalidade estava apenas legalmente atribuída a um dos elementos do casal. Portugal é, aliás, citado como um mau exemplo pela discriminação que permanece em matéria de co adoção. É pois a hora de acabar com estas discriminações, pelo que o Bloco de Esquerda retoma a iniciativa legislativa que elimina os bloqueios legais para a adoção, por parte de casais do mesmo sexo».
A mesma iniciativa teve o Grupo Parlamentar “Os Verdes”, que apresentou, em 10 de maio de 2013, o Projeto de Lei n.º 412/XII, de conteúdo idêntico ao que havia sido anteriormente rejeitado, invocando na Nota Justificativa que «há diversos países na União Europeia que permitem a adoção de crianças por casais homossexuais. Em Portugal caminhou-se progressivamente na erradicação de discriminações absolutamente incompreensíveis de homossexuais, designadamente reconhecendo que todas as formas de constituição de família não discriminam ninguém em função da orientação sexual das pessoas, de resto como determina a Constituição da República Portuguesa. Não se compreende, por isso, que se reconheça plena igualdade do conceito familiar, independentemente do sexo das pessoas, e não se reconheça a plena consequência de se ser uma família».
Os quatros Projetos de Lei – nº 278/XII, nº 392/XII, nº 393/XII e nº 412/XII – foram discutidos em conjunto, na Reunião Plenária n.º 91, de 17 de maio de 2013, tendo sido rejeitados os projetos apresentados pelo BE e PEV e aprovado na generalidade o Projeto de Lei apresentado pelo grupo de deputados do PS – cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 91/XII, de 18 de maio de 2013.
O Projeto de Lei n.º 278/XII baixou à Comissão de especialidade, não obtendo ainda aprovação final.
C. Requisitos formais e materiais do referendo.
8. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115º, n.º 8 e 223º, n.º 2, alínea f), da Constituição, 26º da LORR e 11º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), cumpre a este Tribunal proceder à prévia verificação da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao universo dos eleitores chamados a participar.
Os pressupostos subjetivos e objetivos da validade constitucional e legal da proposta do referendo estão enunciados no referido artigo 115º da CRP e nos artigos 2º a 9º da LORR.
No que se refere aos pressupostos objetivos ligados ao próprio processo de formação da resolução referendária, desde já se assinala que a presente proposta respeitou as exigências constantes dos artigos 10º a 14º da LORR, bem como a que resulta do artigo 15º do mesmo diploma legal. Com efeito, a proposta de referendo coube a Deputados da Assembleia da República e assumiu a forma de projeto de resolução, o qual foi devidamente aprovado e posteriormente publicado na 1ª Série do Diário da República.
Por outro lado, não há qualquer indicação por parte da Assembleia da República que a proposta de resolução de referendo envolva, no ano económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas no Orçamento; e também estão respeitadas as exigências temporais previstas na lei (artigos 8º e 11º da LORR).
9. Passando a considerar a competência do órgão que aprovou a proposta referendária, dúvidas não podem existir que os deputados que tomaram a iniciativa e a Assembleia da República que a aprovou são entidades competentes na matéria. Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 115º da CRP, o referendo é uma decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República, «em matérias das respetivas competências».
Ora, no caso vertente, as questões sobre as quais versa o referendo são matérias da reserva relativa da Assembleia da República, quer por respeitarem à «capacidade das pessoas», quer por se incluírem no âmbito dos «direitos, liberdades e garantias» (cfr. alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP). A matéria sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, respeita à capacidade para adotar e também pode ter a ver com o direito fundamental a constituir família.
A legislação que vier a ser criada na eventualidade de resposta ou respostas afirmativas às perguntas referendárias insere-se nos requisitos concernentes à capacidade de adotar. Os diversos requisitos que o candidato terá atualmente de preencher para ver constituída uma relação adotiva entre si e o menor adotando estão prescritos no artigo 1979º do Código Civil, que tem como epígrafe “quem pode adotar plenamente”. Mas o segmento normativo «duas pessoas casadas» tem que ser interpretado em conjugação com as normas do artigo 3º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, que veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e do artigo 7º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que regula as relações jurídicas das pessoas que, independentemente do sexo, vivam em união de facto, normas que não reconhecem capacidade para a adoção conjunta aos casais do mesmo sexo, bem como igualmente, não permitem que nessas uniões um companheiro ou cônjuge adote os filhos do outro. As respostas afirmativas ou negativas, caso tenham eficácia vinculativa, alteram ou mantêm a limitação à capacidade para adotar, de forma conjunta e (ou) sucessiva, conforme for o caso. Portanto, a questão sobre a qual os cidadãos terão que se pronunciar é uma matéria relativa à limitação da capacidade jurídica das pessoas singulares para serem sujeitos de uma relação jurídica adotiva.
Mas também pode ter a ver com o direito fundamental a constituir família e com a “garantia institucional” da adoção, consagrados nos n.ºs 1 e 7 do artigo 36º da CRP. A adoção não só pode ser uma forma de constituir família (cfr. artigo 1576º do Código Civil), como é um instrumento fundamental de proteção das crianças abandonadas, discriminadas, oprimidas ou abusadas (cfr. artigo 69º n.º 1 da CRP). Apesar da adoção constituir um “vínculo semelhante ao da filiação”, pode questionar-se também se não estará abrangida no âmbito de proteção do n.º 1 do artigo 36º da CRP. E sendo fonte de uma relação familiar, «a garantia institucional da adoção, consagrada no artigo 36º, n.º 7, constitui apenas uma das várias dimensões do estatuto jusfundamental da família adotiva», defende alguma doutrina que «do artigo 36º n.º 1, resulta também – embora, obviamente, sem caráter absoluto e incondicional, – uma pretensão constitucionalmente tutelada à constituição de uma relação jurídica de adoção» (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo I, 2ª ed. págs. 814 e 840).
Atualmente, uma das características essenciais da adoção conjunta é que ela só é permitida a casais ou unidos de facto de sexo diferente. Todavia, com a possibilidade de respostas afirmativas aos quesitos referendários, ou a um deles, pode alterar-se tal pressuposto, dada a possibilidade de consagração legal da homoparentalidade que daí pode resultar.
10. A oportunidade para desencadear o referendo também é um pressuposto de constitucionalidade e de legalidade, na medida em que a proposta referendária, no que se refere à primeira pergunta, surge no decurso de um procedimento legislativo que aprovou, na generalidade, a matéria dela constante, e quanto à segunda, diz respeito a matéria constante de projetos de lei que anteriormente foram rejeitados pelo parlamento.
O n.º 4 do artigo 167º da CRP determina que os projetos e as propostas de lei que forem definitivamente rejeitados não podem ser renovados na «mesma sessão legislativa». Os Projetos de Lei acima referidos, apresentados pelo BE e PEV – n.º 126/XII, n.º 178/XII, n.º 392/XII e n.º 412/XII –, apesar da identidade do sentido prescritivo das normas rejeitadas com o conteúdo dos quesitos referendários, foram rejeitados na primeira e segunda sessões legislativas, pelo que, no caso de resposta afirmativa às perguntas do referendo, há mediação temporal suficiente para que na terceira sessão legislativa se possa criar um ato legislativo de sentido correspondente àquela resposta.
No que se refere à primeira pergunta – «concorda que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo possa adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto» – existe em curso um procedimento legislativo que resultou na aprovação na generalidade do Projeto de Lei n.º 278/XII sobre a coadoção por pessoas do mesmo sexo. Neste caso, a questão que se coloca consiste em saber se é legítimo referendar uma matéria que já foi aprovada na generalidade pelo parlamento.
A Constituição não dá uma resposta segura a essa questão, limitando-se a referir que o referendo só pode ter como objeto «questões» que «devam ser decididas» através da aprovação de ato legislativo. Destes enunciados linguísticos apenas se infere que o objeto do referendo versa sobre questões, e não propostas ou projetos de lei já existentes, e ainda sobre questões que ainda não foram decididas, afastando a possibilidade de referendos derrogatórios ou revogatórios de atos legislativos já em vigor.
O n.º 1 do artigo 4º da LORR, relativo ao referendo dos “atos em processo de apreciação”, estabelece que as questões suscitadas «por atos legislativos em processo de apreciação, mas ainda não definitivamente aprovados, podem constituir objeto de referendo». A expressão definitivamente aponta para a possibilidade da iniciativa do referendo ter lugar após a aprovação da generalidade da proposta ou projeto de lei, uma vez que só com a votação global final – n.º 2 do artigo 168º da CRP – termina a fase constitutiva do procedimento legislativo, aquela em que se determina o conteúdo do ato legislativo. Como refere Gomes Canotilho, «a votação final global concentra-se no texto apurado na especialidade, fazendo um juízo definitivo e final sobre o projeto ou proposta de lei submetidos a discussão e votação» (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 5ª ed., pág. 868). E assim é, porque as votações na generalidade e na especialidade obedecem a uma lógica diferente, incidindo a primeira sobre a oportunidade de se fazer ou não uma lei sobre determinada matéria e sobre a fixação do seu sentido geral, e a segunda sobre as soluções concretas a aprovar no texto de cada artigo.
Confrontada com esta questão, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 288/98, considerou que não constitui óbice à sujeição a referendo a circunstância da questão a referendar ter sido suscitada por ato legislativo em processo de apreciação, mesmo quando o projeto de lei já foi aprovado na generalidade. O aparente conflito entre a legitimidade representativa e a democracia participativa resultante de uma resposta negativa à pergunta referendária já aprovada na generalidade, com a consequente desautorização do parlamento, não existe porque «a Constituição não perfila a aprovação, em votação na generalidade, como manifestação de uma vontade definitiva da Assembleia da República, pelo que não será anómalo que um texto legislativo aprovado na generalidade não venha a merecer aprovação em votação final global, sendo mesmo que essa possibilidade resulta facilitada pela especificação constitucional de que, para as leis orgânicas se exige a aprovação, em votação final global, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, quando essa mesma maioria qualificada já não é requerida nas votações na generalidade e na especialidade. A votação na generalidade, versando «sobre a oportunidade e o sentido global do projeto ou da proposta de lei», no fundo, quando desemboca numa aprovação nessa fase, «apenas abre caminho, para a discussão e votação na especialidade», pelo que «um juízo definitivo» sobre o texto legislativo só se verifica com a votação final global (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, nota IV ao artigo 171º, pág. 693)».
Se à luz do n.º 1 do artigo 4º da LORR está delimitado o exato momento até ao qual se pode apresentar um referendo sobre matéria objeto de uma iniciativa legislativa em curso de discussão e votação, já não é tão claro quanto à admissibilidade de se referendar matérias que foram objeto de iniciativas legislativas anteriormente rejeitadas pelo parlamento, como é o caso da segunda pergunta referendária.
A norma daquele artigo 4º não afasta essa possibilidade, pois reporta-se apenas às questões suscitadas por atos legislativos (e convenções internacionais) em processo de apreciação, acentuando que «podem» ser objeto de referendo. Não se diz aí que «apenas» essas podem ser referendadas, caso em que seria materialmente inconstitucional, por desconformidade com os n.ºs 2 e 3 do artigo 115º da CRP. O acesso ao referendo por parte dos deputados e grupos parlamentares, do governo ou dos cidadãos incide sobre “questões de relevante interesse nacional”, independentemente das mesmas estarem pendentes de apreciação na Assembleia da República ou no Governo. Não tendo por finalidade aprovar ou rejeitar normas jurídicas, «o referendo opera normalmente à margem do processo de criação, modificação e derrogação das leis – por outras palavras, à margem do processo legislativo –, atuando num momento anterior à decisão legislativa» (cfr. Maria Benedita Urbano, O Referendo. Perfil Histórico Evolutivo do Instituto, Configuração Jurídica do Referendo em Portugal, Stvdia Ivridica, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, pág. 187).
Por outro lado, a inexistência de procedimento legislativo não é obstáculo à concretização dos efeitos jurídicos inerentes ao referendo. Como anotam Gomes Canotilho e Vital Moreira, «no caso de o referendo ter incidido sobre uma questão independentemente de uma determinada iniciativa legislativa ou de uma concreta convenção internacional, os órgãos competentes ficam constituídos no dever de desencadear o respetivo processo legislativo ou de negociação internacional, se o resultado do referendo assim o impuser» (ob. cit. pág. 109).
Deste modo, sob o ponto de vista do momento para desencadear o referendo, a Resolução da Assembleia da República nº 6-A/2014 não padece de inconstitucionalidade e ilegalidade.
11. Outro requisito relacionado com o objeto do referendo, consagrado no n.º 3 do artigo 115º da CRP, é a exigência de que a matéria a referendar seja de «relevante interesse nacional».
A indeterminabilidade do conceito constitucional «questões de relevante interesse nacional» coloca alguns limites ao poder de fiscalização do Tribunal Constitucional. Com efeito, «saber o que é questão de relevante interesse nacional é qualificação que há de ficar na livre apreciação das entidades proponentes e do PR, embora no limite hajam de ser considerados ilegítimos os referendos sobre questões de lana caprina, que além do mais degradariam a relevância e a seriedade democrática do referendo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. Vol. II. pág. 103).
Não obstante, não sendo questões manifestamente irrelevantes, mesquinhas e de “lana caprina”, sempre se dirá que a matéria da coadoção e da adoção conjunta por casais do mesmo sexo é um assunto de relevante interesse nacional. Trata-se de eliminar restrições à capacidade para adotar sobre as quais existem profundas divergências, não só na opinião pública nacional e internacional como na comunidade científica, quanto às eventuais consequências resultantes da adoção de uma criança por casais do mesmo sexo.
A afirmação da relevância dessa matéria resulta, desde logo, de constituir reserva relativa de competência da Assembleia da República, como acima se referiu, mas também do debate político e jurídico que se tem desenvolvido sobre ela. Para além do procedimento legislativo pendente relativamente ao primeiro quesito referendário, sobre a matéria do segundo já foram discutidos na Assembleia da República cinco projetos de lei. Na exposição de motivos desses projetos dá-se conta da tendência da legislação de alguns países sobre essa questão e da posição da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), pretendendo-se com isso justificar o interesse nacional da matéria objeto do referendo. Não se trata, pois, de uma questão meramente teórica ou hipotética, mas de um assunto atual, concreto, que está na ordem do dia política e que interessa à comunidade nacional.
12. Os artigos 115º, n.º 4, da CRP e 3º, n.º 1, da LORR estabelecem taxativamente limites materiais negativos ao objeto do referendo, excluindo do seu âmbito: (i) as alterações à Constituição; (ii) as questões e os atos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro; (iii) as matérias previstas no artigo 161º da Constituição; (iv) e as matérias previstas no artigo 164º da Constituição, com exceção do disposto na alínea i).
Estas reservas parlamentares da competência exclusiva da Assembleia da República, para além de acentuarem a prevalência do sistema representativo, visam sobretudo evitar que a consulta referendária se transforme em «instrumento demagógico no âmbito de questões de especial sensibilidade e de fácil manipulação da opinião pública» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 104).
A presente proposta de referendo respeita esses limites materiais, pois a matéria em causa não reveste conteúdo orçamental, tributário ou financeiro, nem se enquadra na reserva absoluta de competência da Assembleia da República, integrando, como se disse, a reserva relativa.
O objeto do presente referendo também não se integra no elenco das matérias previstas no artigo 161º, uma vez que, de entre as aí mencionadas, «apenas poderia ser abrangida pela alínea c), onde se atribui à Assembleia da República competência para «fazer leis sobre todas as matérias», a verdade é que a referência à exclusão das matérias do artigo 161º não pode obviamente aplicar-se em tal caso, pois que, então, se entraria em contradição com o n.º 1 e o n.º 3 do artigo 115º, porque nenhuma matéria que devesse ser tratada por via legislativa – salvo se da reserva do Governo – poderia ser o objeto do referendo» (cfr. Acórdão n.º 288/98).
E, finalmente, a presente proposta de referendo não visa alterar a Constituição, já que a legislação a aprovar na sequência do referendo não pretende assumir valor constitucional.
13. O modelo referendário consagrado na Constituição impõe que «cada referendo recairá sobre uma só matéria» (cfr. nº 6 do artigo 115º da CRP, reproduzido no artigo 6º da LORR).
Nesta norma consagra-se o princípio da homogeneidade e unidade da matéria a referendar, uma condição indispensável para assegurar a genuinidade democrática do referendo. O objeto da decisão referendária, especificado através da formulação de perguntas, tem que possibilitar aos cidadãos uma escolha livre e esclarecida, sem quaisquer constrangimentos que afetem a sua capacidade de decisão. A melhor forma de impedir manobras persuasivas indutoras de votações em determinado sentido e de assegurar que os cidadãos fiquem em condição de perceber as perguntas e de se decidir conscientemente pelo sim ou pelo não consiste em não misturar no mesmo referendo matérias sem qualquer relação entre si.
O “caráter monotemático” do referendo tem pois por objetivo evitar «confusões quer quanto ao próprio objeto da consulta (se uma mesma consulta versasse sobre várias matérias, isso poderia sem dúvida ocasionar uma imperfeita compreensão do que está em causa) e, ainda, confusões quanto às próprias respostas dos cidadãos eleitores (pois eles poderão não conseguir dissociar completamente as várias perguntas que lhes são colocadas num mesmo boletim de voto e que foram previamente explicadas numa mesma campanha referendária, sendo que a resposta a uma delas – porventura àquela em que estão mais seguros, mais esclarecidos ou mais motivados para responder – poderá influenciar a resposta às outras, de tal maneira que, se cada pergunta tivesse sido apresentada isoladamente, as respostas seriam outras)» (cfr. M. Benedita M. Pires Urbano (ob. cit. pág. 201 e ss.).
A fórmula constitucional «cada referendo recairá sobre uma só matéria» tem levantado algumas dúvidas quanto ao seu exato sentido e alcance. Há quem defenda, com recurso aos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1989 – que introduziu o referendo nacional – que a única razão daquele segmento normativo é impedir a realização em simultâneo de vários referendos sobre distintos objetos (cfr. Luís Barbosa Rodrigues, O Referendo Português A Nível Nacional, Coimbra Editora, pág. 225). Para outros, a ratio do nº 6 do artigo 115º da CRP não prejudica «a virtual verificação de vários referendos simultâneos, cada um com o seu objeto delimitado, com a possibilidade de resposta autonomizada a cada um deles e com boletins de voto independentes entre si» (cfr. Fernando Paulo da Silva Suordem, Legislação do Referendo Anotada, Almedina, pág. 52).
Embora se possa questionar se é admissível a cumulação, numa mesma data, de vários referendos, formal e substancialmente autonomizados (cfr. em sentido afirmativo, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Tomo VII, pág. 312 e Vitalino Canas, Referendo Nacional - Introdução e Regime, Lex, 1998, pág. 14) ou se tal possibilidade põe em causa os propósitos do princípio da homogeneidade da matéria (M. Benedita M. Pires Urbano, ob. cit. pág. 201, nota 383), o que se exige é que «cada referendo» tenha por objeto a mesma matéria, uma só substância, idêntica no seu todo, e não uma pluralidade de assuntos suscetível de vulnerar a liberdade de escolha e a capacidade de decisão dos cidadãos eleitores.
Apesar do princípio da homogeneidade e unicidade da matéria se reportar ao objeto do referendo, e não propriamente às perguntas, «face à possibilidade prevista expressamente na Constituição e na lei de numa mesma consulta referendária haver mais do que uma pergunta» (Acórdão n.º 704/2004), a verdade é que o princípio assume maior relevância na formulação dos quesitos referendários que irão ser plasmados nos boletins de voto, uma vez que se devem inserir necessariamente no campo material definido pela decisão referendária.
A Resolução n.º 6-A/2014 delimita o objeto do referendo à «possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto», e em conformidade substancial com esse objeto, formula dois quesitos, o primeiro sobre a coadoção e o segundo sobre a adoção conjunta.
É evidente que, no âmbito do instituto da adoção, coadoção e adoção conjunta são conceitos distintos. A lei civil faz a distinção entre adoção conjunta e adoção singular, conforme for feita por um casal (por duas pessoas casadas ou que vivam em união de facto) ou por uma só pessoa, casada ou não casada (cfr. artigo 1979º). Mas a definição de coadoção não resulta da lei, até porque se exclui a possibilidade de em relação ao mesmo adotado coexistirem duas relações de paternidade ou maternidade adotiva (artigo 1975º). Apenas se permite que um casado ou unido de facto de sexo diferente possa adotar (adoção singular) o filho biológico ou adotivo do seu cônjuge (n.ºs 2 e 5 do artigo 1979º). Em rigor, coadoção parece ser um conceito inadequado para significar, quer a adoção do filho biológico do cônjuge ou unido de facto, quer a adoção do seu filho adotivo, pois se este já foi adotado, o melhor termo para representar tal realidade parece ser a adoção sucessiva.
Todavia, a categoria que, no plano abstrato e formal, é objeto de referendo consiste na adoção que envolva o estabelecimento de relações de parentalidade em relação a casais do mesmo sexo. A atual legislação não reconhece a capacidade para a adoção conjunta a casais do mesmo sexo, bem como igualmente não autoriza que, num casamento ou numa união de facto do mesmo sexo, um cônjuge ou companheiro adote os filhos biológicos ou adotivos do outro. Para apurar a vontade dos eleitores quanto à eventual eliminação dessas restrições à capacidade de adotar, com fundamento em que as mesmas podem constituir uma discriminação relativamente aos casais heterossexuais, mobiliza-se o instrumento do referendo para que os cidadãos possam emitir a sua opinião sobre esse assunto, o que constitui uma manifestação da democracia semidireta tendente a ultrapassar eventuais impasses políticos na eliminação daquelas restrições.
O facto de o referendo abarcar dois modos de constituir a relação jurídica de adoção – a coadoção e a adoção conjunta – aparentemente não retirará homogeneidade e unidade ao seu objeto, pois, apesar dessa distinção, a questão de relevante interesse nacional que se pretende ver debatida e votada pelos cidadãos é a possibilidade (ou não) dos casais ou unidos de facto, do mesmo sexo, constituírem relações de parentalidade através da adoção, singular ou conjunta. Tal como as perguntas estão formuladas, o principal interesse que move o referendo é a possibilidade de através da adoção pelos membros de uniões familiares de duas pessoas do mesmo sexo uma criança estabelecer relações de parentalidade com ambos os membros do casal.
A posição em que se encontram os adotandos, ou seja, se são filhos biológicos ou adotivos do outro cônjuge, se a filiação decorreu da procriação por ato sexual ou de procriação medicamente assistida, se já estão inseridos em família cujos pais ou mães são do mesmo ou de diferente sexo, ou mesmo se estão institucionalizados, não está formulada de modo expresso como elemento essencial da questão que se pretende submeter a consulta referendária.
Ainda que se autonomize conceptualmente coadoção de adoção conjunta, não se pode dizer que a matéria de que trata cada um dos quesitos não tem relação entre si. Tal como foram expressos, há um nexo substancial que os une: quando perspetivados pelo lado dos adotantes, ambos os quesitos integram questões relativas à capacidade de adoção por membros de casais ou unidos de facto do mesmo sexo; quando vistos pelo lado dos s, em ambos se questiona se o adotando, do ponto de vista da filiação, pode ter duas mães ou dois pais.
Com efeito, ao questionar-se na primeira pergunta se o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo pode adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto, sendo ele um filho adotivo, está-se simultaneamente a questionar se os dois membros do casal podem, contemporaneamente, estabelecer uma relação de parentalidade com a criança, precisamente aquilo que se questiona na segunda pergunta. A primeira pergunta, apesar de referida a um dos cônjuges ou unidos de facto, funda-se no pressuposto de que é um casal do mesmo sexo que vai partilhar a parentalidade, aceitando-se uma dupla maternidade ou uma dupla paternidade. Como se vê, num e noutro quesito a questão formalmente colocada não deixará, nesta perspetiva, de ter o mesmo conteúdo representativo: estabelecimento, através da adoção, de relações de parentalidade por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto. Neste contexto, pode dizer-se que as perguntas formuladas proveem, nas palavras de Gomes Canotilho, de uma “matriz racionalmente unitária” (cfr. Anotação aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 298/88 e n.º 531/98, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 131º, n.ºs 3894 a 3896, p. 348), que se consubstancia na eliminação das restrições à criação de relações de parentalidade através da adoção por casais do mesmo sexo.
Não obstante a inserção no campo mais vasto da capacidade para adotar, os quesitos são perfeitamente distintos e autónomos entre si, em função de fatores factuais e jurídicos que podem comprometer a existência da referida homogeneidade. O referendo formula em simultâneo duas questões diferentes, uma relativa à coadoção e outra à adoção conjunta, as quais se reportam a situações e interesses diversificados, seja pelo lado dos adotantes seja pelo lado dos adotandoss, o que pode afetar a capacidade de decisão dos cidadãos eleitores. Ora, como melhor se verá, é justamente a menor consciencialização dessa autonomia valorativa, decorrente da junção das duas perguntas, que pode gerar dúvidas sobre o sentido da vontade dos eleitores.
Embora assentes numa matriz racionalmente unitária, isso não significa, evidentemente, que as perguntas referendárias se traduzam em proposições que deem garantia de que o resultado do referendo exprimirá fielmente a vontade livremente expressa pelos cidadãos eleitores. Como refere Maria Benedita Urbano, o objetivo da liberdade de voto, que pressupõe que o sufrágio seja exercido com consciência e de uma forma esclarecida, «será gorado no caso de os eleitores se virem confrontados com uma multiplicidade de quesitos distintos e autónomos, ainda que por vezes referentes a uma mesma matéria» (cfr. ob. cit. pág. 203).
É que do princípio da homogeneidade resulta apenas que os quesitos referendários devem permitir a todos os cidadãos compreender que a consulta tem por finalidade única a possibilidade de adoção por pessoas do mesmo sexo, exigência que pode estar cumprida pela ratio comum das perguntas. Mas isso não significa que os quesitos tenham sido formalmente colocados em termos de permitir um juízo baseado em perguntas claras e inequívocas, ou que não existam indícios de que a conversão do objeto do referendo em duas questões autónomas entre si possa “arrastar” ou induzir os eleitores para determinada resposta.
14. Sendo certo que a proposta de referendo não comporta mais do que três perguntas e que os quesitos referendários não são precedidos de quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, exigências impostas pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 7º da LORR, há que averiguar se os mesmos foram formuladas de modo a permitir uma resposta em termos de sim ou não.
Do princípio da bipolaridade ou dilematicidade da pergunta referendária, imposto no n.º 6 do artigo 115º da CRP e no n.º 2 do artigo 7º da LORR, resulta que os quesitos referendários, quando convertidos em perguntas, para serem corretamente formulados, só podem ter como respostas sim ou não.
As perguntas referendárias assentam numa lógica «que é necessariamente dilemática, bipolar, ou binária, ou seja: que pressupõe uma definição maioritariamente unívoca da vontade popular, num ou noutro dos sentidos possíveis de resposta à questão cuja resolução é devolvida diretamente aos cidadãos» (Acórdãos n.º 360/91, n.º 288/98, n.º 704/2004 e n.º 617/2006). E daí que seja proibida, em termos absolutos, «a formulação de perguntas referendárias que preconizem respostas diferenciadas, intermédias e condicionais. A resposta dos eleitores terá que traduzir-se na aceitação, numa adesão a uma solução, ou inversamente na recusa, na rejeição dessa mesma solução» (M. Benedita M. Pires Urbano, ob. cit., p. 204).
Ora, no caso sub judice, está demonstrada a verificação deste requisito, nas duas dimensões que ele comporta: (i) cada um dos quesitos referendários está formulado em termos que permitem aos cidadãos terem a consciência de que estão a fazer uma escolha com base numa clara alternativa (dilematicidade); (ii) e também cada um deles está formulado em termos binários, de forma a possibilitar uma resposta positiva ou negativa (bipolaridade).
Ambos os quesitos, singularmente considerados, estão formulados através de uma interrogação que começa pelo verbo «concorda(r)», o que vai implicar uma escolha entre a admissão ou a proibição da adoção por casais ou unidos de facto do mesmo sexo; e estão formulados para que os cidadãos possam responder, com precisão e simplicidade, por um sim ou por um não. Sendo quesitos simples, e que contêm uma única proposição, que não se apresentam como soluções alternativas um do outro, é natural que a resposta possa ser singela, isto é, exprimir-se por um sim ou por um não.
Relativamente ao conteúdo das perguntas poderia aventar-se outras questões do regime da adoção, como a opção entre a adoção plena ou restrita, o maior ou menor relevo do biologismo na constituição do vínculo da filiação, ou até questões como a procriação medicamente assistida ou a maternidade de substituição. Mas tal omissão não retira às perguntas referendárias o caráter dilemático. Como se referiu no Acórdão n.º 617/2006, a propósito da interrupção voluntária da gravidez, «os eleitores deverão decidir, em face da única opção que lhes é proposta, se a consideram aceitável ou rejeitável, mesmo que preferissem outras opções (que não estão em causa). São confrontados apenas com um e não com todos os dilemas, devendo os dilemas que não estão em causa ser por eles ponderados e resolvidos numa perspetiva pessoal, de consciência ou de opção política, para efeito de resposta à (única) questão suscitada. Os dilemas morais, políticos e jurídicos sobre as condições preferíveis de despenalização situam-se a montante do que é expresso na pergunta, a qual revela que o legislador apenas pretende averiguar a opção dos eleitores quanto a uma certa solução».
15. Este aspeto prende-se com a exigência feita nas normas do n.º 6 do artigo 115º da CRP e do n.º 2 do artigo 6º da LORR, de que as questões a submeter a sufrágio sejam formuladas com «objetividade, clareza e precisão».
As exigências de objetividade, clareza e precisão, que se conjugam entre si, não só têm que ser aferidas relativamente a cada uma das perguntas referendárias, como também ao conjunto dessas perguntas, expressando a coerência entre elas que deriva do próprio princípio lógico da proibição de contradição.
15.1. Do ponto de vista linguístico, não se pode dizer que os operadores de linguagem explicitados em cada uma das perguntas referendárias padecem de ambiguidade, imprecisão ou de variação semântica, em termos de não serem compreendidos pelo cidadão comum. Pese embora as expressões verbais utilizadas tenham um sentido técnico-jurídico, não deixam de ser expressões correntes que garantem condições de percetibilidade ao eleitor médio. A formulação discursiva dos quesitos referendários permite que o significado dos termos adotados («cônjuge», «união de facto», «adoção», «mesmo sexo», «filho do seu cônjuge») sejam facilmente esclarecidos e entendidos no próprio contexto narrativo, não se podendo dizer que lhe falta conteúdo semântico.
Por conseguinte, não é pela construção sintática e lexical de cada uma das perguntas referendárias que o referendo está em desconformidade com o princípio da inteligibilidade ou compreensibilidade e clareza. Aquelas expressões, que compõem as respetivas orações, não estão desfasadas do significado que lhes é dado pelo uso corrente e, por isso, não há o perigo de que a vontade dos cidadãos possa ser falseada pela errónea representação dos enunciados das perguntas.
Contudo, deve referir-se que ao Tribunal Constitucional «não cabe averiguar se a pergunta se encontra formulada da melhor maneira, mas tão-só certificar-se que ela ainda satisfaz adequadamente as exigências constitucionais e legais, o que se afigura ocorrer no caso sub judicio» (Acórdão n.º 288/98). Daquele princípio, mais do que uma exigência de correção gramatical, decorre fundamentalmente a ideia da «necessária simplicidade da formulação, da exata delimitação do objeto e da inequivocidade de sentido da pergunta ou perguntas contidas na proposta referendária, todas elas aferíveis por um eleitor médio» (cfr. Maria Benedita Urbano, Os Limites Materiais à (IR) Realização do Referendo de Âmbito Nacional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 4, pág. 23).
E nesta análise, independentemente dos esclarecimentos que possam vir a ser prestados na campanha referendária, não se pode dizer que cada um dos quesitos formulados não compreende os meios enunciativos necessários para que se tornem autonomamente compreensíveis. A formulação utilizada em cada quesito é desprovida de pontos dúbios, ambiguidades ou obscuridades, dando a conhecer ao eleitor médio inserido no contexto cultural português qual o sentido preciso de cada um deles.
E também do ponto de vista da conformidade com o princípio da objetividade, «que implica a proibição de juízos de valor implícitos aos quesitos ou sugestões sobre o sentido das respostas» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit, pág. 105), pode afirmar-se que os quesitos referendários isoladamente considerados são neutros. Para além do significado natural que cada cidadão pode retirar dos lexemas usados, sem prejuízo de haver diferentes leituras da mesma realidade, a verdade é que, na vertente da objetividade, cada uma das perguntas está desprovida de quaisquer referências valorativas, de juízos de valor, induções, conclusões ou considerações subjetivas, que pressionem ou induzam o eleitor a votar num determinado sentido.
15.2. Todavia, se atendermos a que o referendo tem duas perguntas simultâneas, a aferição da conformidade com o disposto no nº 6 do artigo 115º da CRP e do nº 2 do artigo 6º da LORR, implica também que se ajuíze se essas normas são respeitadas pela articulação entre si das duas questões em causa e pela conjugação das respostas que lhe podem ser dadas.
Como já se referiu, o tema genérico do referendo consiste no acesso à parentalidade, através da adoção, por casais do mesmo sexo, matéria sobre a qual, por razões culturais, civilizacionais, sociológicas, éticas e científicas, não existe consenso, estando apenas admitida na lei a adoção por casais de sexo diferente. A consulta referendária visa obter dos cidadãos uma opinião sobre a admissão ou negação da adoção de menores por parte dessas comunidades familiares. Se qualquer das respostas às perguntas formuladas for afirmativa, com efeito vinculativo, pela primeira vez na ordem jurídica portuguesa passa a ser reconhecida a existência de duas paternidades e de duas maternidades, alterando-se o atual paradigma da “parentalidade”.
As duas perguntas referendárias têm em comum a possibilidade de casais do mesmo sexo adotarem uma criança, num caso de forma sucessiva ou assente em filiação biológica do cônjuge ou unido de facto e noutro conjuntamente, a qual, em virtude de tais atos, passará a ter dois pais ou duas mães. Mas, apesar disso, a formulação autónoma das perguntas tem justificação na diferente valoração que é possível encontrar em cada uma delas.
As perguntas envolvem ou traduzem valorações sobre a possibilidade da coadoção ou adoção conjunta por casais do mesmo sexo. Em relação aos interesses dos candidatos à adoção, pode estar em causa a proibição da discriminação em função da orientação sexual (artigo 13º da CRP) ou o direito a constituir família (artigo 36º, nº 1 da CRP); e em relação aos interesses dos adoptandos, pode convocar-se a direito à proteção da criança, com vista ao seu desenvolvimento integral (artigos 69º da CRP), a identidade pessoal e o desenvolvimento da sua personalidade (artigo 26º da CRP), o direito à integração numa família (artigo 36º, nº 1 da CRP) e o equilíbrio afetivo e axiológico da criança.
As perguntas referendárias estão pensadas e formuladas verbalmente tendo em vista o «direito à adoção» por casais do mesmo sexo. Mas o valor pressuposto em cada um dos quesitos distingue-se em função da situação parental e familiar em que o adotando se pode encontrar no momento da adoção: enquanto na situação a que se refere a primeira pergunta a criança já vive numa família homoparental, na segunda não.
É de facto evidente que, apesar do enunciado dos quesitos exprimir sobretudo os interesses dos casais do mesmo sexo, pondo em discussão se há ou não razões materialmente fundadas para os discriminar relativamente aos casais de pessoas de sexo diferente, a consulta referendária também debaterá e votará o superior interesse dos adotandos, pelo menos na perspetiva colocada pelos quesitos, ou seja, se a integração num casal de pessoas do mesmo sexo justifica o reconhecimento de duas paternidades ou de duas maternidades.
Daí que, a verificação dos requisitos da objetividade, clareza e precisão tenha que ser aferida com base numa racionalidade axiológica, em que se averigue se as valorações contidas na proposta referendária podem ser bem compreendidas pelos cidadãos eleitores, em termos de os deixarem conscientes dos efeitos políticos e normativos da decisão que vão tomar.
Ora, a formulação simultânea das questões em causa pode levar à falta de compreensão, por parte dos eleitores, dos valores que se manifestam em cada um dos quesitos. De facto, como já foi referido, as questões referem-se a duas possibilidades – coadoção e adoção conjunta por casais do mesmo sexo – que, embora enquadradas na mesma matéria – requisitos para adotar – são perguntas aos quais estão subjacentes ponderações distintas, como se vê dos Projetos de Lei que foram apresentados, em que a adoção conjunta foi rejeitada e a coadoção foi aprovada na generalidade.
15.3. Na questão formulada na primeira pergunta, está em causa a adoção do filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Nesta situação tratar-se-á de estabelecer vínculos jurídicos entre uma criança e uma pessoa com quem a criança possui já uma relação de parentalidade. Trata-se, pois, de estabelecer um laço jurídico entre duas pessoas que têm vínculos jurídicos pré-existentes com uma terceira, i.e., de reconhecer efeitos jurídicos ao lado remanescente desta relação triangular – ao vínculo entre a criança e o outro membro do casal.
Para além do enquadramento familiar jurídico, várias podem ser as situações em que uma criança se pode encontrar já de facto integrada no seio de uma família composta por um casal de pessoas do mesmo sexo: a viuvez de um dos cônjuges e posterior casamento ou união de facto com pessoa do mesmo sexo; o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida por um dos membros do casal, independentemente da forma como a mesma foi alcançada; ou a adoção singular prevista no n.º 2 do artigo 1797.º do CC.
Nestes casos, independentemente das demais questões que se possam colocar, como o direito à identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, a adoção visa o reconhecimento de efeitos jurídicos a uma relação que se foi estabelecendo de facto e que une diretamente a criança e o aspirante a adotante. Nas situações de famílias que já existem, poderá discutir-se na consulta referendária se a adoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo do filho do seu cônjuge ou unido de facto compromete ou não o superior interesse da criança.
Ora, a inserção do adotando numa família já existente de casais do mesmo sexo tem servido de fundamento ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) para legitimar a adoção por esses casais. Tendo por referência o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o Tribunal tem utilizado «o critério da efetividade dos laços interpessoais» para aferir a existência de “vida familiar” em função de vários fatores, como a existência de coabitação ou de dependência financeira (v. Susana Almeida, O Respeito pela Vida (Privada e) Familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a Tutela das Novas Formas de Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 68 e ss).
Em várias decisões, o Tribunal pronunciou-se sobre a integração no conceito de “vida familiar” de crianças que vivem em contexto de famílias “recombinadas”. Por exemplo, pronunciou-se a favor da existência de vida familiar entre a criança e o homem que, não obstante não ser o seu pai natural, coabitava com a mãe do menor (Acórdão K. e T. vs. Finlândia, de 12 de julho de 2001); integrou na noção de vida familiar as relações entre adotante e adotado (Acórdão Pini, Bertani e outros vs. Roménia, de 22 de junho de 2004); deu relevância à vida familiar efetivamente existente entre o pai adotante e a criança (de quem o primeiro cuidava, como pai, desde tenra idade) mesmo antes de se formalizarem os laços de adoção, fazendo prevalecer tal relação sobre os laços de filiação existentes entre a criança e o pai natural (Acórdão Söderbäck vs. Suécia, de 28 de outubro de 1998). No caso Gas e Dubois vs. França (Acórdão de 31 de agosto de 2010), considerou que a comunidade de vida estabelecida entre duas mulheres e o filho biológico de uma delas, concebido por recurso aos métodos de procriação médica assistida constituía “vida familiar” para os efeitos do artigo 8.º da CEDH, tendo em conta a relação estável que se havia formado entre os três com o decurso do tempo; e no caso X e outros vs. Áustria (Acórdão de 19 de fevereiro de 2013), considerou que a negação do vínculo jurídico da adoção de filho de unido de facto do mesmo sexo afetava não só o candidato a adotante, mas ainda a criança, que, por força da simples orientação sexual da mãe e unida de facto, ficava privada de ver a sua ligação efetiva e afetiva com esta última reconhecida juridicamente, o que não acontece com um casal de sexo diferente.
Realmente, pode questionar-se se a comunidade de vida entretanto estabelecida entre a criança e o cônjuge ou unido de facto do seu pai ou mãe constitui uma verdadeira relação familiar e se essa relação pode justificar e explicar a parentalidade por dois pais ou por duas mães. A consulta referendária poderá servir assim para que os cidadãos eleitores possam emitir a sua opinião sobre se a adoção nessa situação corresponde ou não à melhor forma de salvaguardar o interesse superior da criança (cfr. artigo 1974º do Código Civil). Como o superior interesse da criança é um imperativo que exige que se conceda ao adotando uma adequada inserção familiar que lhe proporcione um desenvolvimento físico, intelectual e moral, acrescido de uma razoável expectativa de felicidade pessoal, os cidadãos eleitores terão que compreender e decidir se a adoção de crianças já inseridas numa família cujos pais ou mães são do mesmo sexo deixa incólume aquele interesse.
Por aqui se vê que, na primeira pergunta referendária, o interesse da criança em ser adotada por aquela pessoa em concreto pode ter um peso que não se manifesta com a mesma intensidade na segunda pergunta, pois o interesse da criança também pode consistir «na verdade sociológica ou afetiva por ela vivida» (cfr. Maria de Clara Sottomayor, «Adoção ou o direito ao afeto. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2004, Rev. 04A3795», in Scientia Ivridica, Tomo LIV, n.º 301, janeiro/março 2005, pág. 129).
15.4. Já a segunda pergunta não realiza ou manifesta em si a mesma valoração, porque aí se questiona a adoção de uma criança por duas pessoas do mesmo sexo, sem que algum dos membros do casal seja titular da parentalidade do adotando.
Enquanto, no caso da primeira pergunta, por variadas razões, a criança já terá entretecido relações familiares com o cônjuge ou unido de facto do seu pai ou mãe, caso em que se poderá discutir se a adoção salvaguarda o interesse superior da criança, na questão colocada na segunda, a criança não é filha de nenhum dos membros do casal, nem pré-existe uma situação de convivência de facto que possa vir a ser reconhecida como juridicamente relevante. Trata-se apenas de uma adoção conjunta, simultânea, ex nihilo de uma criança que não é filha de nenhum dos membros do casal.
Perante tal diferença, pode aceitar-se que os interesses do adotando assumam relevância jurídica diferente. A existência de um caso real já consumado, com a integração da criança numa união familiar de pessoas do mesmo sexo, conjugal ou de facto, pode ter diferente valoração relativamente às situações em que nunca existiu uma tal vivência. Desde logo, o «direito a constituir família» reveste contornos diferentes, uma vez que nem a Constituição nem a CEDH reconhecem «um direito a adotar» como decorrência do direito a constituir família (Acórdãos nºs 320/00 e 551/03). Depois, a proteção do superior interesse da criança não reveste aqui a mesma configuração que na primeira questão. Na primeira questão, pode valorar-se primacialmente o interesse da criança em estabelecer relações jurídicas com um dos seus cuidadores, enquanto que na segunda estão em causa primacialmente os interesses de casais do mesmo sexo em poder aceder à possibilidade de adotar crianças. Nesta, sendo também convocável, em abstrato, o interesse superior da criança, esse interesse não reveste aqui os mesmos contornos que na primeira. Com efeito, na segunda questão, ele traduzir-se-á, em geral, no interesse em ser adotado por quem lhe proporcione as condições adequadas para o seu desenvolvimento são e integração familiar, não relevando de uma ligação a um núcleo familiar prévio.
Em suma: na primeira questão existe uma família de facto já constituída, enquanto a segunda se pretende constituir uma família ex novo. Assim, nesta segunda questão já não estará em causa o interesse do menor em ver reconhecida uma relação jurídica com uma família em concreto, mas apenas uma simples pretensão de um casal a adotar, ex novo, uma criança que não terá, à partida, qualquer relação com o casal, ainda que tenha interesse em ser adotada, em geral.
Ora, atendendo a que o instituto da adoção visa satisfazer em primeiro plano os interesses da criança, e não o dos adotantes, não se pode deixar de referir que os cidadãos eleitores podem desconsiderar que as valorações a ter em conta são distintas numa e noutra questão. Se o intuito da adoção é «dar uma família a uma criança e não uma criança a uma família», como ilustrativamente sublinha o TEDH (caso Fretté vs. França, Acórdão de 26/02/2002), os cidadãos eleitores, para além da questão da igualdade com os casais heterossexuais, devem ser confrontados necessariamente com o interesse da criança em viver numa família homoparental.
15.5. Ora são estas diferentes valorações, inerentes a uma e outra questão, que podem gerar ambiguidade. Pelo facto de estarem feitas em conjunto, pode o eleitorado julgar que se trata, nas duas, apenas e tão só de reconhecer as pretensões dos casais de pessoas do mesmo sexo em adotar, esquecendo que, no primeiro caso, para além dessa pretensão estão ainda outros interesses, como o interesse da criança e uma relação familiar pré-existente. De facto, a resposta dada à segunda pergunta pode “contaminar” a resposta dada à primeira, ou vice-versa, de tal forma que, se feitas separadamente, as questões poderiam obter respostas diferentes, porque o eleitorado teria presente que as valorações inerentes a ambas seriam também diferentes.
A conjugação destes quesitos num só referendo, pela diversidade de valorações que devem concorrer para uma resposta a dar a um e a outro é de molde a pôr em causa o respeito pela necessidade de precisão das questões. A sua conjugação em concreto pode levar a uma errónea visualização daquilo que realmente está em causa numa e noutra, por se ter feito uma deficiente tentativa de simplificação para os eleitores da tarefa decisória (M. Benedita Urbano, O Referendo…, pág. 207). E assim é porque a conjugação das duas perguntas pode levar à possibilidade de que a resposta a uma “arraste” a resposta a outra, podendo fazer com que o eleitor não proceda a ponderações autónomas no que respeita às diferentes valorações em jogo no que toca a cada uma delas, e, assim, induzir a respostas viciadas à partida.
Assim acontecerá, por exemplo, com o cidadão eleitor que considerar existir fundamento material bastante para diferenciar os casais do mesmo sexo dos casais de sexo diferente, no que se refere à adoção, pode ser induzido a responder afirmativamente à segunda pergunta pelo facto de ter respondido de igual modo à primeira, em que concordou ser do interesse da criança ter dupla paternidade ou maternidade, pelo facto de ser filho biológico ou adotivo de um dos membros do casal do mesmo sexo com quem vive. De igual modo, um cidadão eleitor que considera que os casais do mesmo sexo não devem ser discriminados relativamente aos casais de sexo diferente, concordando com a segunda pergunta, é imediatamente conduzido a responder afirmativamente à primeira, independentemente de ponderação de quaisquer interesses da criança adoptanda.
15.6. Além disso, a junção destas duas perguntas deixa o legislador numa situação dilemática. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, em caso de multiplicidade de perguntas, as mesmas têm de permitir «um conjunto unívoco de respostas ou uma resposta global unívoca», que deixe ao legislador indicações precisas sobre como atuar (Acórdãos n.º 549/99 e nº 398/12).
Mas isso não ocorre com as questões propostas a referendo. Veja-se a hipótese do resultado do referendo ser no sentido da proibição da adoção singular do filho natural ou adotado do cônjuge do mesmo sexo (um «não» à primeira pergunta), conjugada com a obrigatoriedade de permissão de adoção por casais de pessoas do mesmo sexo (um «sim» à segunda pergunta). Nesse caso, os eleitores deixam o legislador numa posição em que é obrigado a permitir o estabelecimento de relações de parentalidade, através da adoção, em relação a todos os casais do mesmo sexo sem poder permitir o estabelecimento de relações de parentalidade em relação a apenas alguns casais do mesmo sexo. Ora essa situação, tendo em conta a necessária unidade do ordenamento normativo, decorrente do Estado de Direito, é inadmissível, já que o resultado jurídico decorrente deste referendo acarretaria um resultado em si mesmo discriminatório, independentemente das valorações que se possam fazer relativamente à adoção por casais do mesmo sexo.
Afigura-se, pois, que a possibilidade de tal acontecer põe em perigo a genuinidade do resultado do escrutínio referendário.
16. É da competência do Tribunal verificar ainda o requisito relativo ao universo eleitoral previsto nos artigos 115º, nº 12, e 223º, nº 1, alínea f), da Constituição.
Em princípio, o direito de participação no referendo está limitado aos cidadãos eleitores recenseados no território nacional (nº 1 do artigo 115º da CRP e nº 2 do artigo 37º da LORR). Mas o nº 12 deste artigo prevê a possibilidade de participação no referendo dos cidadãos regularmente recenseados no estrangeiro ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 121º, quando o referendo recaia «sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito». A remissão que se faz para esta última norma acaba por restringir o universo eleitoral referendário apenas aos cidadãos residentes no estrangeiro que mostrem a «existência de laço de efetiva ligação à comunidade nacional». Esta restrição constitucional configura assim, para efeitos do nº 2 do artigo 18º da CRP, um “princípio de diferenciação entre residentes e não residentes no que respeita à capacidade eleitoral ativa” e passiva (cfr. Acórdão nº 320/89).
Cabe, porém, ao Tribunal verificar, caso a caso, em que medida a matéria a referendar interessa especificamente aos cidadãos residentes no estrangeiro que mantenham uma efetiva ligação à comunidade nacional (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit. Tomo II, pág. 301).
Nesta matéria, a densificação do conceito indeterminado “laços de efetiva ligação à comunidade nacional” não pode ter por critério exclusivo a «vida organizada» em território nacional, pois, como refere Gomes Canotilho, «o não residente que investe, constrói a casa ou tem filhos a estudar em Portugal pode ter uma palavra a dizer» em determinadas matérias (cfr. Anotação, cit. pág. 350). Um tal critério afigura-se tão limitativo que frustra o direito de participação no referendo, constitucionalmente reconhecido aos portugueses residentes no estrangeiro. Mas também os critérios da “alteração de fundo, no plano valorativo, da ordem jurídica nacional” ou da “alteração fundamental nos valores subjacentes à ordem jurídica nacional” (cfr. votos de vencido dos Conselheiros Cardoso da Costa e Mota Pinto no Acordão nº 288/98), são tão amplos e genéricos que vulneram o sentido percetivo daquele conceito. O que parece razoável é que se considere sobretudo às posições jurídicas subjetivas individuais que podem interessar (ou não) aos portugueses residentes no estrangeiro em consequência dos hipotéticos resultados do referendo.
A proposta de referendo prevê apenas a participação dos «cidadãos eleitores recenseados no território nacional», colocando-se, portanto, a pergunta sobre se um referendo com este objeto poderá restringir desta forma o universo eleitoral.
Ora, a matéria objeto do referendo respeita à possibilidade de constituição de relações adotivas por casais ou unidos de facto, do mesmo sexo, que podem residir no estrangeiro, tenham ou não o estatuto de emigrante. Nos termos do artigo 14º da CRP, esses portugueses transportam consigo, além fronteiras, os direitos fundamentais que não sejam incompatíveis com a ausência do País. E daí que os direitos e princípios constitucionais, como o da igualdade (artigo 13º), que possam ser convocados para admitir ou rejeitar a possibilidade de coadoção e (ou) adoção conjunta por casais ou unidos de facto do mesmo sexo, é um domínio material que lhes interessa especialmente.
E interessa, porque a constituição da filiação adotiva está submetida à «lei pessoal» do adotante, prevendo-se ainda que, «se a adoção for realizada por marido e mulher (não se prevê os casais ou unidos de facto do mesmo sexo) ou o adotando for filho do cônjuge do adotante, é competente a lei nacional comum dos cônjuges e, na falta desta, a lei da sua residência habitual comum; se também esta faltar, será aplicável a lei do país com o qual a vida familiar dos adotantes se ache mais estreitamente conexa» (cfr. nº 1 e 2 do artigo 60º do Código Civil).
Ora, o dilema colocado pelas perguntas referendárias, que interpela os eleitores quanto a uma solução inexistente na ordem jurídica portuguesa, é um assunto que também interessa aos portugueses e comunidades portuguesas residentes no estrangeiro, a vários títulos, designadamente, porque podem estar interessados em adotar menores no seu país, porque pode haver menores residentes em Portugal com pai(s) adotivos residentes no estrangeiro ou menores residentes no estrangeiro com pai(s) residentes em Portugal, cujas relações estão sujeitas à lei pessoal do adotante (nº 3 do artigo 60º).
Há, assim, razões específicas que justificam a abertura do referendo ao universo eleitoral a que se reporta o nº 12 do artigo 115º da CRP.
17. Em suma: uma vez que a conjugação dos quesitos referendários não cumpre os requisitos de clareza e precisão das perguntas, enunciados no nº 6 do artigo 115º da CRP e artigo 7º nº 2 da LORR, e havendo ainda razões que justificariam a abertura do referendo ao universo eleitoral a que se reporta o nº 12 do artigo 115º da CRP e nº 2 do artigo 37º da LORR , o mesmo não pode ser convocado.
E – Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Considerar que a Proposta de realização de referendo sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 6-A/2014, de 17 de janeiro, não respeita os requisitos exigidos pelos artigos 115º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa e 7º, nº 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo.
b) Considerar que a mesma Proposta não respeita o requisito exigido pelos artigos 115º, nº 12 e 223º, nº 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa e 37º, nº 3, da Lei Orgânica do Regime do Referendo.
c) Consequentemente, ter por não verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na mencionada Resolução nº 6-A/2014, da Assembleia da República.
Lisboa, 19 de fevereiro de 2014 - Lino Rodrigues Ribeiro (com Declaração)- Catarina Sarmento e Castro - João Cura Mariano (com declaração de voto que junto) - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Ana Maria Guerra Martins - Maria João Antunes (com declaração) - Fernando Vaz Ventura (com a declaração de que não acompanho o acórdão no que respeita ao alargamento do universo eleitoral, pois entendo que a matéria a referendar não comporta interesse específico dos cidadãos residentes no estrangeiro, pelas razões constantes da declaração de voto do Sr. Conselheiro Cura Mariano) - Maria Lúcia Amaral - José Cunha Barbosa - Carlos Fernandes Cadilha (com declaração em anexo)- Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Para além dos argumentos constantes do acórdão, entendo também que, analisando as duas perguntas pela forma como se relacionam entre si, através de um raciocínio puramente demonstrativo chega-se à conclusão que a resposta afirmativa a uma das perguntas e negativa à outra é uma votação contraditória, equívoca e incoerente.
Se bem repararmos, a proposição contida na segunda pergunta engloba todos os casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto, o que condiciona a resposta a dar à primeira questão, respeitante apenas a alguns casais do mesmo sexo. Uma resposta afirmativa ou negativa implicará uma permissão ou uma proibição da adoção por casais do mesmo sexo. Quem responder de um modo ou de outro, não pode deixar de responder no mesmo sentido à primeira pergunta, sob pena de contradição no sentido de voto. Na verdade, aquele que admite ou nega a adoção por casais do mesmo sexo, não pode deixar de admitir ou negar que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo adote o filho do seu cônjuge ou unido de facto.
Estando em causa apenas a capacidade para adotar, com a consequente constituição de uma dupla paternidade ou maternidade, responder não ao primeiro e sim ao segundo quesito (resposta não/sim), não só seria ilógico, porque não se poderia fazer tal raciocínio sem entrar em contradição, como constituiria um paradoxo que produz um resultado absurdo, ou no mínimo, uma situação que contradiz a intuição comum. De facto, o eleitor que responder não ao primeiro e sim ao segundo, emite a opinião de que os cônjuges ou unidos de facto do mesmo sexo devem adotar, quando, na verdade, pela resposta negativa que dá ao primeiro, transmite a mensagem de que não admite que a criança possa ter dois pais ou duas mães.
A possibilidade de respostas contraditórias às questões colocadas surge porque a segunda pergunta contém uma proposição que, pela extensão do respetivo sujeito, abrange também a proposição contida na primeira.
Os cidadãos eleitores ao não admitirem que um dos cônjuges pode adotar o filho do outro cônjuge, têm necessariamente de discordar que existam casais do mesmo sexo com filhos adotados e que, para todos os efeitos, existam crianças que têm dois pais ou duas mães. Ou seja, não concordam com a proposição: “alguns casais do mesmo sexo podem adotar”. Assim, se não concordam com a proposição “alguns casais do mesmo sexo podem adotar” e se na segunda questão respondem que concordam com a proposição “os casais ou unidos de facto do mesmo sexo podem adotar”, não o podem fazer sem entrarem em contradição, pois trata-se de proposições contraditórias que se eliminam entre si. Como se vê, também através de um raciocínio dedutivo dialético facilmente se constata que uma resposta nesses termos é contraditória e paradoxal.
De igual modo, a resposta afirmativa ao primeiro quesito e negativa ao segundo (resposta sim/não) também não garante que a vontade dos eleitores não possa ser falseada com a junção das duas perguntas.
O termo «filho» constante da proposição do primeiro quesito exprime conceitos diferentes, como o de «filho biológico» ou de «filho adotivo». Por isso, nesse quesito pergunta-se se uma pessoa pode adotar o filho biológico ou adotado do cônjuge do mesmo sexo ou do companheiro do mesmo sexo com quem viva em união de facto. No caso da adoção do filho adotivo, o que diferencia o primeiro do segundo quesito é o facto de naquele se poder tratar de duas adoções singulares sucessivas e neste de uma adoção conjunta. Só que, do ponto de vista da capacidade para ser adotante e da constituição da homoparentalidade, a circunstância de se tratar de uma adoção singular sucessiva ou de adoção conjunta não é um fator juridicamente relevante, porque num caso como no outro estará sempre em questão a partilha da parentalidade por ambos os cônjuges ou unidos de facto, do mesmo sexo. E assim sendo, as consequências lógicas da resposta afirmativa ao primeiro quesito e negativa ao segundo não são diferentes do resultado a que se chega com a resposta negativa ao segundo e afirmativa ao primeiro.
No caso de responderem negativamente à segunda questão – “concorda com a adoção por casais ou unidos de facto do mesmo sexo” –, isso significa que admitem que “nenhum casal do mesmo sexo pode adotar”. Ora, se responderem em simultâneo que “alguns casais do mesmo sexo podem adotar”, que, como vimos, é o que resulta da resposta afirmativa à primeira pergunta, estão de igual modo a entrar em contradição. Um novo paradoxo, ainda mais absurdo, considerando a circunstância em que nesse caso já existe um filho adotivo a viver com um casal do mesmo sexo.
Isto mostra claramente que, vistas as perguntas no seu conjunto, a resposta dissonante às questões referendadas levaria também à ambiguidade do voto dos cidadãos eleitores, já que corresponderiam à afirmação de concordância com proposições contraditórias.
A possibilidade da articulação das perguntas e da conjugação das respectivas respostas conduzir a resultados contraditórios e equívocos através de um raciocínio puramente lógico, mais facilmente permite compreender o “efeito de arrastamento” de uma pergunta para a outra, quando analisadas no plano axiológico, como se faz no acórdão.
Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Concluí pela não verificação da constitucionalidade e legalidade do referendo proposto na Resolução n.º 6-A/2014 da Assembleia da República apenas pela razão de que a cumulação no mesmo referendo das duas perguntas propostas, pela diversidade de valorações que suscitam, pode conduzir à contaminação das respostas, não garantindo uma pronúncia referendária genuína e esclarecida.
Já quanto ao requisito relativo ao universo eleitoral entendo que o mesmo se encontra satisfeito quando se propõe apenas a participação dos cidadãos eleitores recenseados no território nacional, uma vez que não se revela que a matéria a referendar também diga especificamente respeito aos cidadãos residentes no estrangeiro, como exige o n.º 12, do artigo 115.º, da Constituição, uma vez que nela não existe um qualquer aspeto que respeite particularmente a estes cidadãos.
Note-se que a Constituição, como regra, restringe a participação nos referendos aos cidadãos que se encontrem recenseados no território nacional (artigo 115.º, n.º 1), apenas admitindo a participação dos cidadãos residentes no estrangeiro a título excecional (artigo 115.º, n.º 12), de modo a evitar que a decisão de questões de relevante interesse nacional fique dependente do voto de um grande número de eleitores que poderão não percecionar e sentir os problemas do país.
Apesar de alguma ambiguidade na redação deste último preceito constitucional, dele resulta, com evidência, que não basta que os cidadãos residentes no estrangeiro tenham o mesmo interesse dos cidadãos recenseados no território nacional no tema a referendar, sendo ainda necessário que a sua participação seja justificada pela verificação de um interesse específico que apenas respeite àqueles cidadãos.
Ora a razão adiantada por este acórdão para a participação dos cidadãos residentes estrangeiros é a de que é aplicável a lei portuguesa às situações em que estes cidadãos pretendam adotar uma criança em Portugal, ou seja, exatamente o mesmo interesse que assiste aos cidadãos recenseados em Portugal para que estes se pronunciem sobre a matéria em causa, pelo que, não constituindo tal fundamento uma razão que especificamente assista aos cidadãos residentes no estrangeiros, a sua participação não é admissível, nos termos dos n.º 1 e 12, do artigo 115.º, da Constituição.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da não verificação da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo, mas não acompanho a fundamentação na parte em que conclui pelo não cumprimento dos requisitos da clareza e da precisão das perguntas.
As razões invocadas levam-me a concluir antes pelo desrespeito da exigência de o referendo recair sobre uma só matéria (artigos 115.º, n.º 6, primeira parte, da Constituição e 6.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo).
No essencial, fundo este entendimento no que é dito nos pontos 15.2. a 15.5., não acompanhando, porém, o que é afirmado no ponto 15.6. Desde logo, por entender que a junção das perguntas não deixa o legislador numa situação dilemática, face à evidente autonomia valorativa do que está em jogo em cada uma das perguntas.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
A participação de cidadãos residentes no estrangeiro no referendo pressupõe que este recaia sobre matéria que lhes diga especificamente respeito, nos termos previstos no artigo 115º., nº 12º, da Constituição da República, o que significa que deve referir-se a questões com incidência particular sobre esses cidadãos, o que não sucede quando o referendo interfere com a disciplina atinente a um regime jurídico geral. Nestes termos, não acompanho a decisão no ponto em que se considera não verificado o requisito relativo ao universo eleitoral.
Carlos Fernandes Cadilha