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Processo nº 217/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, M..., sendo recorrido J..., foi proferida decisão sumária, em 14 de Abril
último, não conhecendo do objecto do recurso, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A do mesmo diploma legal, por se entender não se verificarem os pressupostos de admissibilidade do recurso, de indispensável congregação.
Escreveu-se, então, a fundamentar o decidido, na parte que interessa:
'Pretende [a recorrente] ver apreciada a constitucionalidade das 'normas contidas nos artigos 30º a 34º do Decreto-Lei nº 321/B/90, de 15-10 – Regime do Arrendamento Urbano – [na realidade, e rectamente, das normas contidas nos artigos 30º a 34º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado por aquele texto legal] e ainda do artigo 84º do mesmo diploma, conjugado com o artigo 1793º do Código Civil'. Em seu entender, as normas em referência, no sentido em que foram aplicadas no aresto recorrido, violam o disposto no artigo 65º, nº 3, da Constituição da República, 'na medida em que o valor da renda tem de ser compatível com o rendimento percebido', bem como o artigo 62º, nº 1, da Constituição, 'pelo facto de a recorrente ter de alienar o património para pagar uma renda ao seu ex-cônjuge com aumento de 300%'. A questão (ou questões) de constitucionalidade, segundo a recorrente, foi por si levantada 'nas conclusões das alegações e contra-alegações, bem como nas alegações para o Tribunal ora recorrido e na reclamação sobre o aresto'. O recurso foi admitido por despacho de 14 de Março último do Conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça – o que não vincula, no entanto, o Tribunal Constitucional (artigo 76º, nº 3, da Lei nº 28/82).
4. - Considera-se não poder conhecer-se do objecto do recurso, por falta dos respectivos pressupostos de admissibilidade, pelo que se proferirá decisão sumária, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A daquela Lei nº 28/82. O que se passa a justificar brevemente.
5. - No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal a recorrente não concretiza a dimensão interpretativa das normas que afirma terem sido aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, cuja apreciação pelo Tribunal Constitucional pretende. No entanto – e consoante jurisprudência constitucional corrente – a invocação de uma desconformidade constitucional implica, para quem a suscite, o ónus de individualizar de forma clara a interpretação normativa que se pretende ver julgada (cfr. inter alia, o acórdão nº 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995). Pode, no entanto, objectar-se que se justifica o convite para completar o requerimento, nos termos previstos no nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82. Observar-se-á que assim não é, considerando que sempre o recurso não seria de admitir por inverificação dos respectivos pressupostos de admissibilidade. Na verdade, quer a constitucionalidade das normas indicadas do RAU quer a do nº
2 do artigo 1793º do Código Civil – relativa às condições do contrato de arrendamento – só foram suscitadas no requerimento de aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o que, de acordo com reiterada e uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional, não constitui, já, o momento processual adequado para o fazer (cfr., por todos, o acórdão nº 560/98, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1999, e os lugares jurisprudenciais aí citados), uma vez que nada impedia a interessada de o ter feito a tempo de o Tribunal a quo tomar conhecimento das questões no seu acórdão que negou a revista. De resto, a única norma apreciada pelo Tribunal recorrido sob o ponto de vista jurídico-constitucional foi a do nº 1 daquele artigo 1793º - na perspectiva de saber se é censurável nessa óptica a atribuição da dação de arrendamento à requerente com a consequente restrição do direito de propriedade da requerida sobre o imóvel (questão, aliás, sobre a qual se pronunciou por suscitação deste
último, e não da requerente). Ora, o Supremo entendeu não carecer de constitucionalidade essa mesma dimensão, assim reconhecendo o direito da requerente ao arrendamento, a qual, por isso, não tem interesse na apreciação da questão.
6. - Por outro lado, apesar da requerente aludir, no pedido de aclaração, a
'aplicação e interpretação' das normas, é manifesto que a mesma pretende a reapreciação da decisão, em si mesma considerada, na medida em que discorda do montante da renda fixado e subjacente aplicação dos critérios legais previstos para esse efeito e correspondente aclaração feita dos factos apurados: como se escreve no acórdão de 22 de Fevereiro último, o requerimento de aclaração
'espelha o inconformismo da requerente pela decisão prolatada por, em seu entender, enfermar de erro de julgamento'. Ou seja, ainda que se admitisse uma suscitação atempada e adequada dos problemas de constitucionalidade, a valoração da situação de facto em função da sua subsunção aos critérios legais atinentes, com vista à fixação da renda adequada, sempre constituiria uma situação subtraída a um juízo de constitucionalidade normativo, reportada que está a reacção da requerente e ora recorrente à própria decisão judicial recorrida e não a uma dimensão normativa. A este respeito, também a jurisprudência do Tribunal Constitucional é pacífica, no sentido de que o controlo da constitucionalidade cometido a este órgão judicial é um controlo normativo, não dirigido às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, mas sim às normas jurídicas que essas decisões tenham aplicado, ou desaplicado, com fundamento no juízo da sua conformidade com o texto constitucional (cfr., por todos, o acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e os lugares jurisprudenciais aí citados).
7. - Assim, dado o sumariamente exposto, conclui-se pela ausência dos indispensáveis pressupostos de admissibilidade do recurso. Deste modo, decide-se, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, não tomar conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.'
2. - Inconformada, vem agora a recorrente reclamar para a conferência da decisão sumária, de harmonia com o disposto no nº 3 do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
O que faz nos seguintes termos:
'1º - Para fundamentar a decisão de não tomada de conhecimento de recurso, vem o Tribunal alegar a inexistência dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
2º - Nomeadamente, o facto de a constitucionalidade das normas do RAU e o artigo
1793º nº 2 do C.Civil, ter sido suscitada apenas no requerimento de aclaração do acórdão do STJ, não constituindo este o momento processual adequado para o fazer.
3º - Com o devido respeito, não tem razão este entendimento, pois a questão da inconstitucionalidade destas normas, sua interpretação e aplicação ao caso em apreço foi levantada ao longo do processo, nas alegações e contra alegações apresentadas.
4º - A interpretação dada pelo Mmo. Juiz do Tribunal de 1ª instância a aplicação ao caso sub judice, dos artigos 30º a 34º do RAU e o artigo 84º do mesmo diploma, conjugado com o artigo 1793º do C.Civil, colide com os princípios consagrados no artigo 65º nº 3 da CRP, segundo o qual o valor da renda tem de ser compatível com o rendimento percebido pelo arrendatário e no artigo 62º nº 1 da CRP, pelo facto de a recorrente ver-se obrigada a alienar o património para pagar a renda, em plena violação do direito à propriedade privada, tendo sido levantada esta questão diversas vezes ao longo do processo.
5º - Acresce que, não era previsível à data da apresentação do requerimento do incidente de atribuição da casa de morada de família, aquilatar o preço da renda a fixar pelo Tribunal de 1ª instância.
6º - Daí que, só em sede de alegações e contra alegações para o Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça, a questão da inconstitucionalidade do valor da renda, foi questionada como violadora dos princípios constitucionais em referência.
7º - Decorre assim, que não era exigível à ora reclamante, ao nível da 1ª instância, invocar a inconstitucionalidade, só o podendo fazer depois de ser proferida a sentença, o que veio a verificar-se nas peças apresentadas no Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça.
8º - Deve assim, concluir-se pela admissão do recurso, por se encontrarem preenchidos os pressupostos da alínea b) do artigo 70º da Lei nº 28/82. Termos em que se requer que V. Exas. admitam a reclamação, ordenando a admissão do recurso.'
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Como flui da simples leitura da reclamação, não aduz a sua autora nada que possa infirmar a decisão sumária em apreço.
Com efeito, assentou esta, essencialmente, na suscitação tardia da questão de constitucionalidade, de resto circunscrita, na realidade, à norma do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, única apreciada pelo tribunal recorrido.
No entanto, mesmo admitindo um outro entendimento, de maior flexibilização, o certo é que se considerou estar-se, nessa perspectiva, perante uma tentativa de reapreciação da decisão recorrida, enquanto tal, o que, como é consabido, não pode ser objecto de impugnação por meio do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82: não constitui objecto deste tipo de recurso a conformidade constitucional das decisões judiciais mas sim o juízo nelas contido sobre a constitucionalidade das normas com interesse para a decisão da causa, efectiva e decisivamente aplicadas
(cfr., por todos, os acórdãos deste Tribunal nº. 214/94 e 178/95, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994 e de 21 de Junho de 1995, respectivamente).
Argumenta, agora, a reclamante, ao defender a tempestividade da suscitação, não ser previsível, à data da apresentação do requerimento do incidente de atribuição da casa de morada de família, aquilatar o preço da renda a fixar pelo Tribunal da 1ª Instância – e daí só o ter feito após ter sido proferida a sentença, em sede de alegações e de contra-alegações para o Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça.
Não é exacto, no entanto, que tenha suscitado pertinentemente qualquer questão de constitucionalidade nessas peças processuais: nas alegações para a 2ª instância limitou-se a concluir não poder pagar a renda e a sustentar a violação do disposto nos artigos 1793º do Código Civil e 84º do RAU (fls. 345 a 349 dos autos); nas alegações para o Supremo mantém a mesma perspectiva e invoca a violação dessas normas, acrescentando as dos artigos 30º a 34º do segundo diploma. Apenas na conclusão 6ª refere um preceito constitucional – o do artigo 62º - sem retirar outra consequência que não seja a da sua discordância com a decisão (fls. 385 a 389 dos autos).
2. - Assim sendo e porque, repete-se, só no pedido de aclaração se equaciona em termos minimamente pertinentes um problema de constitucionalidade – ao convocar-se o nº 3 do artigo 65º da Constituição para confrontar a parte da decisão que considerou o sistema de renda compatível com o rendimento familiar – o que, de qualquer forma, não é momento atempado de suscitar a questão, há que confirmar a decisão sumária de 14 de Abril último.
III
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada e não se tomar conhecimento do recurso, condenando-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.
Lisboa, 31 de Maio de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida