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Processo n.º 366/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença de 20 de dezembro de 2010, do 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi declarada a insolvência de A..
Inconformado, este recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo formulado as seguintes conclusões:
«[…]
[1] – A sentença recorrida é injusta, é ilegal, é cruel, é inconstitucional.
[2] – É ilegal porque viola os artigos 3º, 7º, 11º, 12º, 35º do CIRE.
[3] – É ilegal porque viola o disposto no artigo 493º, nº 3 do CPC, conjugado com aquele artigo 3º do CIRE.
[4] – É inconstitucional porque viola o artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, bem como os mais elementares e universais princípios e direitos probatórios da equidade, do contraditório.
[5] – É inconstitucional porque se recusou a dar cumprimento ao artigo 35º do CIRE, tomando partido por uma das partes em litígio e, consequentemente, não conferindo às mesmas os mesmos direitos, garantias e possibilidades probatórias.
[6] – É inconstitucional porque não foi isenta.
[7] – É incompetente porque violou de forma grosseira o artigo 7º do CIRE.
[8] – Por tudo isto deve a presente Sentença ser revogada na totalidade e, em consequência, deve ser ordenada a marcação da audiência de discussão e julgamento para prova da existência da dívida peticionada. Só depois se poderá o Tribunal pronunciar acerca da solvabilidade ou insolvabilidade do ora recorrente!
[…]».
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão proferido em 17 de janeiro de 2012, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão da primeira instância.
Notificado deste Acórdão, A. recorreu para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A. – apelante, nos autos à margem referenciados, não se conformando com o teor do mui douto Acórdão proferido a 20 de janeiro de 2012, vem dele interpor recurso que é de inconstitucionalidade, a subir para o Tribunal Constitucional nos termos e com os fundamentos seguintes:
1 – o recurso é interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro na redação dada pela lei nº 143/85 de 26 de novembro, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 85/89 de 7 de setembro, 88/95 de 1 de setembro e 13-A/98 de 26 de fevereiro;
2 – pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade e a ilegalidade dos artigos 1º, 3º, 7º, 9º, 11º, 12º, 35º do Decreto-Lei nº 53/2004 de 18 de março alterado pelo Decreto-Lei nº 200/2004 de 18 de agosto e do Decreto-Lei nº 53/2004 de 18 de março e das alterações publicadas pelo Decreto-Lei nº 200/2004 de 18 de março.
3 – tais normas violam os artigos 20º nº 4, 161º d), 198º nº 1 a) e b) da Constituição da República Portuguesa e/ou os princípios constitucionais consagrados nos artigos 1º, 2º e 3º da mesma Constituição
4 – a questão da inconstitucionalidade foi suscitada já por diversas vezes nos autos quer no recurso de Apelação interposto quer em diversos outros requerimentos juntos aos autos.
5 – o presente recurso de inconstitucionalidade sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, de acordo com o disposto no artigo 78º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro com as alterações já supra indicadas.
Nestes termos, requer a V. Exa se digne admitir o presente recurso e feito o mesmo subir, com o efeito próprio, seguindo-se os demais termos legais.
Tudo de acordo com o disposto nos artigos 3º nº 1, 6º, 69º e seguintes, da Lei nº 28/82 de 15 de novembro com as alterações supra referenciadas.»
O Desembargador Relator, em 8 de março de 2012, proferiu despacho de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:
«[…]
Notificado que foi, o Apelante A., do Acórdão desta Relação de fls. 757/776, que julgou improcedente essa apelação, confirmando a decisão da primeira instância que o julgou insolvente, veio este a fls. 790/791 interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando as alíneas b) e f) do artigo 70º, nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, e indicando como normas objeto desse recurso os artigos 1º, 3º, 7º, 9º, 110, 12º e 35º do CIRE, acrescentando que “[essa] questão de inconstitucionalidade foi suscitada já por diversas vezes nos autos quer no recurso de apelação interposto quer em diversos outros requerimentos juntos aos autos” (fls. 791).
Esta eventualidade – a do Apelante pretender, mais uma vez, aceder à jurisdição constitucional sem ser capaz de construir um recurso com essa aptidão – já a havíamos antevisto no Acórdão a fls. 7723, confirmando-se inteiramente com a apresentação deste recurso.
Ora, também o presente recurso não pode ser admitido, sendo diversos os motivos dessa inadmissibilidade.
Em primeiro lugar, sublinhar-se-á a ausência de qualquer referência normativa que possamos considerar legitimadora de um recurso de fiscalização concreta, face à forma como a Constituição estrutura o acesso à estrutura de topo da jurisdição constitucional. Com efeito, o que o Apelante pretende é, tão-só e indisfarçadamente, a discussão direta da decisão desta Relação e da decisão da primeira instância – dos diversos critérios interpretativos empregues nos dois percursos decisórios –, num evidente exercício de um (impossível) “recurso de amparo” ou de “queixa constitucional”, esquecendo que tal possibilidade não está, pura e simplesmente, consagrada no nosso ordenamento constitucional, que se estrutura em torno da exclusividade de um “controlo normativo” (v. artigo 280º da Constituição).
É certo que a nossa jurisprudência constitucional admite que este controlo possa reportar-se, na fiscalização concreta, a determinada interpretação normativa, no sentido em que a norma objeto possa ser tomada, “[...] não com o sentido genérico e objetivo, plasmado no preceito (ou fonte) que a contém, mas em função do modo como foi perspetivada e aplicada à dirimição de certo caso concreto pelo julgador”. Todavia, a consideração do imprescindível referencial normativo do recurso, concretamente no caso do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, não permite que se transforme o próprio ato subsuntivo realizado pela decisão recorrida, no verdadeiro objeto do recurso. Aqui, aliás, o Apelante nem procurou propriamente esse disfarce (a norma em determinada interpretação), limitando-se a indicar normas do CIRE por atacado, sem perspetivar minimamente a questão da aplicação das mesmas ao caso concreto, sendo que tudo acaba por se reconduzir aos termos em que o Apelante expressou nas conclusões do recurso, transcritas no Acórdão a fls. 760, a suposta questão de inconstitucionalidade: a Sentença (agora o Acórdão da Relação, por ter confirmado a Sentença) “[é] inconstitucional porque viola o artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, bem como os mais elementares e universais princípios e direitos probatórios da equidade, do contraditório”; “[é] inconstitucional porque se recusou a dar cumprimento ao artigo 35º do CIRE, tomando partido por uma das partes em litígio e, consequentemente, não conferindo às mesmas os mesmos direitos, garantias e possibilidades probatórias”; “[é] inconstitucional porque não foi isenta”.
Seja como for, em segundo lugar, também no sentido da inadmissibilidade do recurso, o Acórdão recorrido até não aplicou, como verdadeira ratio decidendi do decretamento da insolvência, as normas do CIRE indicadas pelo Apelante, não obstante se ter referido a algumas delas instrumentalmente. Com efeito, a norma efetivamente aplicada e que determinou o fracasso do recurso do Apelante, foi o artigo 490º, nº 1 do CPC, na interpretação indicada no ponto 1 do sumário de fls. 774. E, se quisermos, a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE. Destas normas, designadamente da primeira, com este sentido, o Apelante, nem antes do Acórdão nem agora (admitindo-se, por absurdo, que tal aplicação o surpreendeu), fala no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Assim, sem necessidade de mais alargadas considerações, nos termos do artigo 76º, nº 1 da LTC, por notória falta de dimensão normativa referencial da questão de inconstitucionalidade pretendida sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional e por, em qualquer caso, não terem sido aplicadas, enquanto ratio decidendi, as normas objeto indicadas no requerimento de interposição, não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional pretendido interpor a fls. 790/791.»
O recorrente reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional, invocando as seguintes razões:
«A. – apelante nos autos, à margem referenciados, não se conformando com o douto despacho proferido em 12 de março de 2012 «que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional» vem dele RECLAMAR – nos termos do disposto nos artigos 76º e 77º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro com as alterações introduzidas pela Lei nº 143/85 de 26 de novembro, pela Lei nº 85/89 de 7 de setembro, pela Lei nº 88/95 de 1 de setembro e pela Lei nº 13-A/98 de 26 de fevereiro - o que faz nos termos e com os fundamentos abaixo desenvolvidos.
Por ser legal, devida e atempada, deve a presente RECLAMAÇÃO ser considerada interposta, seguindo-se os ulteriores termos processuais até final; subindo a mesma, de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, a fim de que aquele recurso de constitucionalidade/ inconstitucionalidade possa, enfim, ser apreciado por este.
I
1 – O mui douto Acórdão proferido neste Tribunal da Relação de Coimbra e agora o também mui douto despacho de indeferimento do recurso de inconstitucionalidade proferidos «a quo» confirmam que já anteriormente o recorrente invocara inconstitucionalidades diversas de que se encontram feridos os presentes e já longos autos (cfr. § 12 in fine do despacho de indeferimento).
2 – Esta invocação – (até à presente data) inócua aos olhos mui sabedores e doutos dos Meritíssimos Magistrados que apreciaram até ao momento as palavras, preocupações e raciocínios modestos e (decerto) não suficientemente sabedores da parte - (a invocação) não mereceu estatuto jurídico bastante para se alcandorar ao direito de poder vir a ser – uma vez que fosse – apreciada pelos preclaros Meritíssimos Magistrados do Tribunal Constitucional.
3 – Todavia, como já tivemos a obrigação de aprender – em longos trinta anos de prática causídica intensa, alicerçada em duas licenciaturas, uma delas em Direito pela vetusta Universidade de Coimbra, em quatro pos-graduações, num Mestrado, também em Direito – o Direito e a Justiça «realizam-se, ou melhor, vão-se realizando». O Direito e a Justiça não se adquirem pré-fabricados por «obra e graça» de quem quer que seja. E se assim se não entender ou quem assim não entenda corre o sério risco de lhe ver aplicada aquela máxima latina que tanto ofendia os oradores romanos – abyssus abyssum invocat.
4 – Ora, porque o ora apelante e reclamante não lhe quer ver aplicado tal aforismo mas porque se sente – como parte – fortemente e gravemente injustiçado por decisões sucessivamente violentadoras dos seus elementares direitos, reforçou a sua análise fáctica e tentou modestamente aprofundar a reflexão jurídica que o caso vertente exige.
5 – Tudo isto para dizer – sem pretender ocupar à Justiça mais tempo do que aquele que o caso justifica – que o recurso de constitucionalidade e/ou inconstitucionalidade agora interposto nem é uma duplicação diletante nem é uma meditação estéril; mas, outrossim, o resultado de reflexões legitimas e atentas que pretendem ir de encontro às exigências - mais formais do que substantivas - das mui doutas decisões anteriormente proferidas.
6 – Ora, vejamos…
O douto despacho ora reclamado aponta o dedo à parte, imputando-lhe a fragilidade de as suas perorações pecarem por falta da mobilização de «uma qualquer inconstitucionalidade normativa» (cfr. § 2, nota de rodapé nº 2, § conclusivo de folhas 4); vincando, mesmo, que é neste preciso e eventual vazio que reside a essência dos sucessivos derrotes judiciários!
7 – Se é certo que nas anteriores alegações de inconstitucionalidade – mea culpa – a parte admite não ter ou sabido ou conseguido transmitir aos mui doutos julgadores as reais, as genuínas razões e fundamentos dos seus legítimos protestos de frontais ilegalidade e inconstitucionalidade –
8 – desta feita – e ao contrário daquilo que lhe é novamente imputado – a parte recorrente e reclamante vem – muito direta e prosaicamente – invocar a tão almejada inconstitucionalidade normativa, repetidamente, propalada.
9 – Daí que não possamos estar de acordo com o teor do mui douto despacho de recusa do recurso de constitucionalidade e/ou inconstitucionalidade, sobretudo, quando tal fraqueza jurídica lhe é – novamente – apontada: a da falta de invocação de uma eventual inconstitucionalidade normativa.
II
10 – E porque, deveras, assim é - vamos ao essencial…
11 – há de se dar – pelo menos, desta feita – o mérito à parte de ter – enfim – invocado as reais e prosaicas normas constitucionais violadas.
12 – Atente-se no teor do recurso de constitucionalidade/inconstitucionalidade interposto e notar-se-á que o recorrente invocou a inconstitucionalidade dos famigerados artigos 1º, 3º, 7º, 9º, 11º, 12º, 35º do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de março, alterado pelo Decreto-Lei 200/2004 de 18 de agosto
13 – que são, aliás, os alicerces normativos em que a Sentença da 1ª instância e depois o douto Acórdão recorrido na V instância assentaram todas as suas gravosas decisões.
14 – Desta feita, a invocação de inconstitucionalidade não pode, de facto, ser mais frontal, prosaica e inequívoca; como tal, não pode, jamais, ser ignorada: estas normas são inconstitucionais porquanto violam dispositivos constitucionais!
15 – A nosso ver – estas normas aplicadas à saciedade no caso vertente, encontram-se – irremediável e definitivamente – feridas de inconstitucionalidade e de ilegalidade!
16 – Aquilo que sempre se aduziu de forma pretensamente subtil, é agora invocado desta maneira crua e direta!
III
17 – E porque razão ou razões, concluímos nós da inconstitucionalidade e/ou ilegalidade destas normas?
18 – Vejamos…
Historiando…
Em 22 de agosto de 2003, por via Lei de Autorização Legislativa nº 39/2003,
19 – a Assembleia da República – nos termos da alínea d) do artigo 161º da Constituição da República Portuguesa –
20 – «autorizou o Governo a aprovar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, revogando o anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência» (cfr. artigo 1º nº 1 daquela Lei de Autorização Legislativa) (sic).
21 – Através do texto do artigo 13º desta mesma Lei de Autorização Legislativa, a Assembleia da República cominou um prazo improrrogado para «a duração destas autorizações legislativas»!
22 – Ora, no uso pleno desta autorização legislativa, o Governo veio a aprovar e publicar em 18 de março de 2004 por via do Decreto-Lei 53/2004
23 – o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em apreciação e que fundamenta toda a questão vertente.
24 – Ora, se analisarmos com atenção mínima o espaço e as circunstâncias temporais que medeiam entre aquela autorização legislativa e este Decreto-Lei, facilmente, concluiremos que o prazo concedido pela Assembleia da República ao Governo para a aprovação e publicação deste Código da Insolvência – já há muito se havia esgotado!
25 – Ou seja – quando em 18 de março de 2004 aquele Código da Insolvência foi publicado, já a autorização legislativa que o permitira havia esgotado a sua duração normativa!
26 – Que o mesmo é dizer que os artigos 161º d) e 198º nº 1 a) e b) da Constituição da República Portuguesa haviam sido – grosseiramente – violados.
27 – É esta uma das inconstitucionalidades e/ou ilegalidades que se pretende ver decretada.
IV
28 – Mas mais…
29 – Não transigindo relativamente ao que segue dito e reforçando as ideias em curso, atentemos no texto daquela Lei de Autorização Legislativa; mormente no seu artigo 2º nº 3.
30 – Comina este –
«A declaração de insolvência apenas pode ser decretada sem audiência prévia do devedor quando acarrete demora excessiva por o devedor, sendo uma pessoa singular, residir no estrangeiro, ou, por ser desconhecido o seu paradeiro;...»
31 – O teor desta autorização legislativa é claro, inequívoco e perentório: SÓ e APENAS nestes casos é que a audiência prévia do devedor pode ser dispensada!
32 – Ora, o texto do artigo 35º na versão do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de março exorbita – claramente – os limites daquela autorização legislativa.
33 – Ou seja – SÓ - nos termos daquele artigo 2º nº 3 é que a audiência do devedor poderia ser dispensada!
Em mais nenhum caso!
34 – Quer isto dizer que – não só aquele artigo 35º era já por si inconstitucional por via das razões expendidas entre 17 e 28 supra,
35 – como também o é – definitivamente – uma vez que – ao longo dos seus § 1 a 8 – exorbita e viola – descarada e frontalmente – aquelas limitações «autorizadas».
36 – Ora, ao contrário do que é aflorado no mui douto despacho de recusa agora reclamado, também aqui se entronca – necessariamente – a questão por nós – repetidamente – carreada do texto do artigo 490º do Código de Processo Civil.
37 – Donde, considerarmos não ser despicienda a correlação entre as inconstitucionalidades e/ou ilegalidades invocadas com a mobilização que se pretende ver dirimida deste normativo processual.
V
38 – Mas aquilo que sucede com este crucial artigo 35º do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de março, volta a acontecer com o teor dos artigos 11º e 12º deste mesmo dispositivo governamental.
39 – Sobretudo com aquele artigo 11º que – de todo - não se pode considerar que se balize no âmbito da autorização legislativa prévia emitida pela Assembleia da República,
40 – circunstância esta que – a acrescer a tudo o que segue dito – viola grosseiramente os também já – exaustivamente – citados artigos 1º, 2º, 3º, 20º da Constituição da República Portuguesa.
VI
41 – Mas mais…
42 – Não bastando aos legisladores a violação por via destas duas formas tão evidentes, dos textos e espírito da Constituição da República Portuguesa,
43 – decorridos alguns meses – mais propriamente, em agosto desse mesmo ano de 2004 - o legislador reincidiu em idênticas violações quando «alterou e republicou» o Decreto-Lei 200/2004 de 18 de agosto.
44 – Ou seja – em 18 de agosto de 2004, decorrido – rigorosamente – um ano sobre a data da publicação daquela inicial Autorização Legislativa,
45 – o Governo fez alterar e republicar este novo texto (D-Lei 200/2004) muito fora dos prazos temporais anteriormente fixados e não prorrogados -
46 – recidivando em textos claramente extemporâneos e exorbitantes para com as balizas legais a que constitucionalmente estava e está – fortemente – limitado!
VII
47 – Queremos com tudo isto vir dizer que os diversos normativos em que assenta quer a Sentença proferida na 1ª instância judiciária quer o mui douto Acórdão desta 2ª instância –
48 – estão – irremediavelmente – feridos de inconstitucionalidades e/ou ilegalidades várias;
49 – não só no que tange à falta de autorização legislativa – esgotada duplamente – no tempo (em março e depois em agosto de 2004),
50 – como também no que concerne ao – grosseiro – extravasar do conteúdo daquelas mesmas autorizações legislativas, especialmente dos, sobejamente, mobilizados artigos 11º, 12º, 35º do Decreto-Lei 53/2004 de 18 de março.
51 – Em face de toda esta factualidade e de todo este enquadramento jurídico, é por demais óbvio repetir que também e sobretudo saiem violados os textos e princípios constitucionais consagrados nos artigos 1º, 2º, 3º, 20º, 161º, 198º - mobilizados - da Constituição da República Portuguesa.
52 – Muito sucintamente, são estas as sínteses dos argumentos que o recorrente e reclamante pretende ver superiormente apreciados pelo Tribunal Constitucional em sede de recurso de inconstitucionalidade com bem maior amplidão e profundidade que o formalismo mitigado da presente reclamação não permite desenvolver.
53 – Repete-se - que não apenas de inconstitucionalidades mas também e outrossim de ilegalidades pecam – inexoravelmente – aqueles dispositivos legais;
54 – dispositivos estes que são os baluartes de todo o tecido sancionatório que se iniciou na 1ª instância e que prosseguiu para esta última 2ª instância.
55 – Pretende-se, desta feita, que o recurso de constitucionalidade/inconstitucionalidade aduzido possa, enfim, subir e sujeitar-se à superior apreciação dos Veneráveis Magistrados Constitucionalistas.
56 – Para que se faça a tão desejada e propalada JUSTIÇA!
JUSTIÇA, é o que se pretende e o que se invoca!»
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões em que a desconformidade constitucional é imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas e não diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A suscitação processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade implica, desde logo, que o recorrente tenha cumprido o ónus de a colocar ao tribunal recorrido, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, em ato processual e segundo os requisitos de forma que criam para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.
Acresce que, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de uma dada norma, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou “arco normativo” que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Contudo, se atentarmos no teor das alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, constata-se que aí não é suscitada, de forma expressa, clara e percetível, uma questão de constitucionalidade, nos termos acima expostos.
Com efeito, se o que o ora Reclamante pretendia era suscitar a questão da inconstitucionalidade de determinada norma aplicada pelo tribunal a quo, com fundamento na violação de alguma disposição ou princípio constitucional, tal não resulta do teor das suas alegações, uma vez que aí não é questionada conformidade constitucional de qualquer norma, imputando-se a inconstitucionalidade diretamente à decisão recorrida.
Se, por outro lado, o que o ora Reclamante pretendia era questionar a conformidade constitucional apenas de um segmento ou de uma determinada dimensão ou interpretação normativa de um dado preceito ou “arco normativo”, não cumpriu a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade de forma clara e percetível, identificando devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais.
Em suma, o que o Reclamante fez nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra foi invocar determinadas normas e princípios constitucionais, que entendeu serem aplicáveis na resolução do litígio, sem que, no entanto, tenha questionado a conformidade constitucional de qualquer norma ou de determinada interpretação normativa de um preceito ou “arco normativo”, por violador da Constituição. Isto é, suscitou uma alegada inconstitucionalidade diretamente imputada à decisão judicial em si mesma – o que, conforme se disse, não é admissível no nosso ordenamento jurídico-constitucional que não consagra a figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais – e não a aplicação de um critério jurídico, genérica e abstratamente concebido, que seria passível de controlo jurídico-constitucional.
Ora, o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe que o recorrente tenha suscitado, em termos oportunos e adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa, não podendo ter-se limitado a invocar que certa decisão jurisdicional ou determinada solução jurídica, envolveram a violação de preceitos ou princípios da Constituição.
Uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
Face ao exposto, é manifesto que se não pode considerar que tenha sido “suscitada, pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, uma questão de constitucionalidade normativa, conforme exige o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de junho de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.