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Processo n.º 1072/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério Público e a Câmara Municipal de Ourém, a primeira vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 728/13 de 12 de dezembro, que não conheceu do objeto do recurso interposto pela ora reclamante.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 728/13 é o seguinte:
“4. Face à formulação do objeto do recurso acima transcrita – no que toca a ambas as questões de constitucionalidade -, é patente que a recorrente não coloca ao Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, antes questionando a própria bondade da decisão recorrida.
4.1. O Tribunal Constitucional já foi chamado, por diversas vezes, a decidir sobre a constitucionalidade da punição em concurso real ou em concurso aparente de determinados crimes. E tem adotado o entendimento de que não lhe compete determinar quais são exatamente os bens jurídicos tutelados pelos vários tipos legais de crime, ou qual é a melhor interpretação do direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a concluir que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efetivo. Estes dados constam do juízo judicial proferido pelo tribunal a quo, o qual se apresenta ao Tribunal Constitucional como um dado, de onde este parte para a tarefa de controlo da constitucionalidade. Assim, v. entre outros, os Acórdãos n.º 62/12, 375/2005, 303/2005 (todos disponíveis in http:// http://www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, esta jurisprudência é perfeitamente transponível para o caso de concurso de infrações de natureza contraordenacional. Também aí, questionar a constitucionalidade da punição de duas infrações em concurso real ou aparente, seria entrar em considerações de direito infraconstitucional, já decididas pelo tribunal a quo, e que não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar.
4.2. No presente caso, a própria forma como a recorrente formulou o objeto do recurso é relevadora do que aí pretende verdadeiramente questionar - a decisão concreta do tribunal a quo. De facto, o que a recorrente aí reputa de inconstitucional é, por um lado, “a aplicação” das normas em causa (artigo 20.º, n.º1, alínea d) e Anexo II do RJREN, do n.º V da Portaria n.º 1356/2008, de 28 de novembro, bem como do art. 9.º, n.º1, do art. 10.º, do artigo 20.º, n.º1, alínea a), do artigo 21.º e do artigo 26.º da Lei das Pedreiras), em concurso real e não em concurso aparente, a um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN, e, por outro lado, “a aplicação” das mesmas normas a um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN no âmbito do qual se teria formado caso julgado relativamente à prospeção e pesquisa sem licença e à destruição do coberto vegetal. Em ambos os casos, pois, o que o que a recorrente discute é, não a inconstitucionalidade de uma norma, mas a aplicação de determinadas normas ao caso dos autos. I.e., o que pretende sindicar é o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, que, perante a factualidade concretamente dada como provada – tipo de atividades levadas a cabo, que extravasavam, no caso concreto, o conceito de “pesquisa” indicados no artigo 2.º e no anexo I da “Lei das Pedreiras” –, considerou que a recorrente deveria ser punida, em concurso real, pela prática da contraordenação “escavações /aterros em área incluída em REN”, e pela prática da contraordenação “falta de licença para pesquisa”.
5. Mas se assim é, não restam dúvidas de que não está em causa no presente recurso uma questão de constitucionalidade normativa. Como tal, há que relembrar a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, da figura do “recurso de amparo” ou da ação constitucional para defesa de direitos fundamentais, na apreciação de alegadas inconstitucionalidades, diretamente imputadas pela recorrente às decisões judiciais proferidas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC, e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Não tendo o presente recurso por objeto uma norma, ele não possui um objeto idóneo. Tanto bastaria para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso.
6. Mas ainda que assim não se entendesse, faltaria um outro pressuposto processual para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art. 70.º da LTC: é que só cabe recurso, ao abrigo dessa norma, das decisões dos tribunais que apliquem a norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Isso significa, como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da LTC pressupõe que a decisão recorrida tenha aplicado norma ou interpretação normativa que é arguida de inconstitucional como ratio decidendi no julgamento do caso. Tem, pois, de existir uma perfeita coincidência entre a norma – ou dimensão normativa – imputada de inconstitucional no requerimento de interposição do recurso, e a norma – ou dimensão normativa – que foi efetivamente aplicada pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão final. Atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas assim um eventual juízo de inconstitucionalidade se poderá repercutir efetivamente na solução a dar ao caso concreto.
Importa, assim, confrontar o objeto do presente recurso, tal como foi delineado pela recorrente, com a norma que sustentou e fundamentou a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de julho de 2013.
6.1. O Tribunal da Relação decidiu julgar procedente o recurso revogando a decisão recorrida na parte em que absolvera a ora recorrente da contraordenação por escavações e aterros em área incluída em REN, fundamentando-se na alínea d) do n.º1 do artigo 20.º do Decreto-lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, com referência ao artigo 37.º, n.º3, al. d) do mesmo diploma, e artigo 22.º, n.º4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29 de agosto. Decorre ainda da fundamentação do referido aresto que constituíram ratio decidendi os artigos 2.º e Anexo I, ambos do Decreto-Lei n.º 227/2001, com as alterações já referidas.
6.2. Ora, mesmo que a recorrente tivesse verdadeiramente suscitado uma questão de constitucionalidade normativa, as normas que invoca não correspondem àquelas que foram verdadeiramente aplicadas pelo Tribunal a quo. De facto, apesar de na formulação do objeto do recurso a recorrente chamar à colação normas efetivamente aplicadas pelo tribunal a quo (artigo 20.º, n.º1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008), refere outras que não foram aplicadas por esse tribunal: assim, o n.º V da Portaria n.º 1356/2008, de 28 de novembro (sobre prospeção e exploração de recursos geológicos), bem como do art. 9.º, n.º1 (sobre parecer prévio de localização de licenças), do art. 10.º (sobre licença de pesquisa e exploração), do artigo 20.º, n.º1, alínea a) (sobre certidão de parecer favorável de localização), do artigo 21.º (sobre a tramitação do pedido) e do artigo 26.º (sobre regras e boas práticas do exercício de pesquisa), todos do Decreto-lei n.º 277/2001, com as alterações mencionadas.
6.3. Por fim, e no que toca especificamente à segunda questão de constitucionalidade levantada – referente à “aplicação” das normas em causa a um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN no âmbito do qual se formou caso julgado relativamente à prospeção e pesquisa sem licença e à destruição do coberto vegetal, com os efeitos previstos no artigo 79.º, n.º1 do Regime-Geral das Contraordenações, em lado algum no Acórdão recorrido se refere que tais normas se devem aplicar a situações de caso julgado, pelo que, também aqui, a dimensão normativa imputada de inconstitucional pela recorrente não tem qualquer correspondência com aquilo que constituiu a ratio decidendi do acórdão recorrido.
7. Daqui ressalta, assim, que o Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão nas normas cuja “aplicação” a recorrente considera inconstitucional.
Mas se assim é, resta concluir que, também por este motivo não seria possível ao Tribunal Constitucional conhecer desta questão de constitucionalidade (ainda que a recorrente tivesse formulado uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa), por falta de mais um dos pressupostos legais de admissibilidade, a saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, as exatas disposições legais cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada.
3. A recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“(…)
7. No recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais judiciais «trata-se sempre de uma norma interpretativamente mediada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada nessa decisão». (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, pág. 881).
Ou dito de outro modo, «ainda que o juízo de constitucionalidade apareça com autonomia relativamente ao modo como a situação da vida se vai decidir, suscitando-se um incidente processual apenas com esse objetivo, a sua apreciação inevitavelmente que surge no contexto da respetiva aplicação às situações da vida em causa.» (Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, vol. II, 2013, pág. 1266).
Razão pela qual, «a doutrina e a jurisprudência jusconstitucional têm...admitido que a fiscalização da constitucionalidade atribuída ao Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta se estenda ainda à própria decisão inconstitucional do tribunal a quo. Tal acontece quando esse tribunal interpretou ou aplicou de um modo inconstitucional determinada norma jurídica que é pertinente para solucionar o litígio. Aqui já não é a própria norma que padece de inconstitucionalidade mas sim a interpretação ou a aplicação que lhe foi dada pelo tribunal a quo. (...)
Este tipo de situações conduz....à sindicabilidade parcial das sentenças como modo de preservar a interpretação conforme à Constituição das normas por aquelas mal entendidas e, portanto, mal aplicadas.
Isso compreende-se, desde logo, por se tratar da fiscalização concreta da constitucionalidade, que surge sempre a propósito da resolução de um litígio e não em abstrato, independentemente da aplicação das normas às situações da vida. Todavia, este possível alargamento do objeto de sindicância do Tribunal Constitucional é também teoreticamente importante porque contribui para evidenciar a íntima relação entre a interpretação e a aplicação do Direito. A admissibilidade de um tal objeto de sindicância é aliás confirmada implicitamente pela Lei do Tribunal Constitucional quando dispõe, como uma das consequências possíveis do juízo de inconstitucionalidade na fiscalização concreta que, «No caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa». — José Manuel Sérvulo Correia e Jorge Bacelar Gouveia, Princípios Constitucionais do Acesso à Justiça, da Legalidade Processual e do Contraditório; Junção de Pareceres em Processo Civil; Interpretação conforme à Constituição do Artigo 525.º do Código de Processo Civil - anotação ao Acórdão n.º 934/96, do Tribunal Constitucional, Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, janeiro 1997, pág. 302 e segs. (sublinhado nosso).
8. Precisamente assim o entendeu o Tribunal Constitucional em múltiplos Acórdãos, nomeadamente:
- «... nada obsta a que, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade (...) se discuta a constitucionalidade de uma norma, tal como ela foi interpretada e aplicada no caso concreto. Pode mesmo dizer-se que, ao submeter-se ao Tribunal Constitucional, em via de recurso, a apreciação da constitucionalidade de uma norma jurídica, o que o Tribunal deve fiscalizar é, não a constitucionalidade, em abstrato, da norma em questão (por isso ele não pode declarar a inconstitucionalidade dessa norma), mas a constitucionalidade dessa mesma norma, na sua aplicação concreta». — Acórdão n.º 102/84;
- «...a questão de inconstitucionalidade pode respeitar não apenas à norma, ou a uma sua dimensão parcelar, considerada em si, mas também, e mais restritamente, à interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida, nem sempre se recortando nitidamente a fronteira entre “norma” e “decisão” (cfr. J.M. Cardoso da Costa ob. e loc. cits. [A Jurisdição Constitucional em Portugal, 1992, pág. 50]).
A jurisprudência deste Tribunal, fortemente sedimentada, distingue entre a direta estatuição de certa norma e uma determinada interpretação de que a mesma seja suscetível, da impugnação de decisão propriamente dita, só neste último caso não abrindo via para o recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1 alínea b), da Lei nº 28/82 (cfr., v.g., os arestos citados, a propósito, por aquele autor).
E, nesta perspetiva, se se reage quanto a uma decisão que se entende ter feito uma dada interpretação normativa restritiva, extensiva ou analógica - por exemplo - admite-se ser objeto de recurso a inconstitucionalidade dessa norma enquanto assim interpretada na decisão (cfr., por todos, os acórdãos nº s. 388/87 e 141/92, publicados no Diário citado, II Série, de 15 de dezembro de 1987 e 21 de agosto de 1992, respetivamente).» - Acórdão n.º238/94;
- «...invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação - só se fechando a via do recurso previsto naquela alínea quando o mesmo tem por objeto a impugnação da decisão propriamente dita. Neste sentido citem-se, por todos, os Acórdãos n.ºs 102/84, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º Vol., pp. 293 e segs., e 388/87, 141/92, 228/94 e 612/94, publicados no Diário da República, II Série, de 15 de dezembro de 1987, 21 de agosto de 1992, 28 de julho de 1994 e 11 de janeiro de 1995, respetivamente (na Doutrina cfr., inter alia, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, p. 258; J. M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 1992, p. 50; Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa, 1994, p. 327).» - Acórdão n.º 633/95.
9. O recurso que, no caso vertente, foi interposto para o Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, questiona, precisamente, a interpretação que o Tribunal da Relação de Coimbra deu ao artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, quando aplicado a um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN.
Na verdade, não se questiona a constitucionalidade da interdição de ações de escavação em áreas incluídas na REN.
O que se questiona, isso sim, é que, quando está em causa um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN — em que a destruição do coberto vegetal, as escavações, os aterros são atividades necessárias à concretização da prospeção e pesquisa e não detêm qualquer autonomia material e jurídica da própria atividade de prospeção e pesquisa de massas minerais – seja aplicado o artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, com uma valoração autónoma, integral e distinta das mesmas condutas constitutivas do procedimento, o que conduz à dupla valoração negativa da mesma conduta, em violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e de “ne bis in idem”, consagrados, respetivamente, nos artigos 2.º e 29.º, n.º 5 da CRP. Que foi o que fez o Tribunal da Relação de Coimbra!
10. Assim e com a devida vénia, é especiosa a fundamentação adotada pela Decisão Sumária n.º 728/2013 para não admitir e apreciar o recurso.
Desde logo e como é sabido, está legalmente vedado à ora Reclamante requerer a apreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008.
Por outro lado, é manifesto que ao suscitar a inconstitucionalidade da interpretação aplicada pelo Tribunal da Relação ao caso concreto, a Reclamante questiona a bondade da decisão recorrida! Se assim não fosse, não suscitaria, certamente, a questão da constitucionalidade.
Ao que acresce que não se coloca em crise, nesta sede, o juízo subsuntivo feito pelo Tribunal da Relação da Coimbra, nomeadamente a manifesta violação dos factos provados.
O que se questiona é que o Tribunal a quo interprete e aplique o artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, a um procedimento unitário, valorando autonomamente as condutas constitutivas daquele - aliás, já punidas – conjuntamente com a norma constante do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 277/2001, de 06 de outubro, alterado, e republicado, pelo Decreto-Lei n.º 340/2007, de 12 de outubro, e alterado por último, pela Declaração de Retificação n.º 108/2007, aplicada pela 1.ª Instância.
11. É certo que não cabe ao Tribunal Constitucional decidir como devem ser interpretadas e aplicadas as normas infraconstitucionais, designadamente as que respeitam ao concurso real ou aparente de infrações.
Mas é igualmente certo que compete ao Tribunal Constitucional analisar se, tendo o tribunal recorrido extraído de um determinado bloco normativo um critério que leva a punir tais condutas em concurso efetivo, ficam, por isso, violados os princípios constitucionais do Estado de direito e de “ne bis in idem” .
Razão pela qual, o Acórdão n.º 319/2012 desse douto Tribunal entendeu:
«A referida norma constitucional – “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” – dá dignidade constitucional expressa ao clássico princípio de ne bis in idem. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, 2007, p. 497), fazem notar que o referido princípio comporta duas dimensões: a dimensão de direito subjetivo, que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, e a dimensão de princípio objetivo, que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Está aqui em causa a dimensão subjetiva do princípio, na vertente que proíbe a imposição plural de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração. O Tribunal Constitucional tem afirmado que o referido princípio impede que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação da sanção mais do que uma vez. A esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não – devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.
É já vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a violação dessa vertente substantiva do princípio de ne bis in idem nos casos de concurso de crimes. Para aferir da violação do referido princípio, o Tribunal tem partido do princípio de que o apuramento de tal violação pressupõe que as normas em concurso sancionem – de modo duplo ou múltiplo – substancialmente a mesma infração. Para aferir da identidade substancial das infrações, o Tribunal Constitucional tem adotado o critério enunciado no Acórdão n.º 102/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de abril de 1999), seguido em posteriores arestos, consistente no seguinte:
«Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a prática do mesmo crime ou perante um concurso efetivo de infrações, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infrações, Coimbra).
É que, sendo o concurso de crimes efetivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem.»
12. O Tribunal da Relação de Coimbra concluiu no Acórdão em crise «que, manifestamente, não existe relação de concurso aparente – não existindo por essa razão dupla punição – entre as duas punições, não sendo violado o princípio ne bis in idem porque de realidades materialmente distintas se trata.»
Sucede, porém, que afirmar que não existe concurso aparente, não é o mesmo que afirmar que existe concurso real ou efetivo – pode não existir concurso aparente, nem concurso real – e não basta enunciar que se trata de realidades materialmente distintas para que o concurso real passe a existir. Tanto mais que, para o tentar fundamentar o Acórdão vê-se na necessidade de entender o procedimento unitário de prospeção e pesquisa como procedimento unitário de exploração – o que são, isso sim, duas realidades distintas e autónomas face ao regime legal constante da Lei das Pedreiras!
E isto apesar de ter sido dada como não provada pela 1.ª Instância a existência de exploração e não ter sido interposto recurso da matéria de facto!
É, pois, evidente que o aresto em crise, partindo de um pré-conceito, tenta infirmar a existência de concurso aparente, não chegando, porém, a afirmar a existência de concurso real. E não logra identificar os bens jurídicos protegidos e hipoteticamente distintos, não podendo admitir-se, com um mínimo de seriedade, que a prospeção é um bem jurídico a proteger (cf. pág. 22 do Acórdão)!
13. Assim sendo, e neste enquadramento, não pode esse douto Tribunal deixar de apreciar a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação que o mencionado Acórdão opera do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008.
Com efeito, a referida interpretação e aplicação, não assentando na afirmação da existência de concurso real ou efetivo e não identificando os hipotéticos bens jurídicos distintos protegidos, concretiza-se, como não pode deixar de ser reconhecido, na dupla penalização da mesma conduta – conduta que foi objeto de sanção já transitada em julgado – e, consequentemente, na violação do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, e na violação do princípio da intangibilidade do caso julgado e do princípio “ne bis in idem”, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Ou seja, o que se pede ao Tribunal Constitucional, por estar dentro da sua competência, é que aprecie a inconstitucionalidade da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, que foi feita como se existisse concurso real ou efetivo, sendo que, porém, esse pressuposto não é afirmado pelo Acórdão recorrido, o qual se limita a expressar que não há concurso aparente, “porque se realidades materialmente distintas se trata”.
E, por isso, essa aplicação é inconstitucional, dela resultando a violação do princípio do Estado de direito, do princípio da intangibilidade do caso julgado e do princípio “non bis in idem”.
14. Na apreciação da constitucionalidade, que foi suscitada, o que está verdadeiramente em causa é a aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto- Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/ 2008.
As restantes normas – Anexo II ao Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, n.º V da Portaria n.º 1356/2008, de 28 de novembro, artigo 9.º, n.º 1, artigo 10.º, artigo 20.º, n.º 1, alínea a), artigo 21.º e artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 270/2001, de 6 de outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 112/2003, de 4 de junho, e pelo Decreto-Lei n.º 317/2003, de 20 de dezembro, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 340/2007, de 12 de outubro (Lei das Pedreiras) – são normas instrumentais para o efeito, que demonstram que o procedimento de pesquisa e prospeção é um procedimento unitário e incindível.
15. A sanção da infração que é objeto de dupla punição, por efeito da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, tal como foi feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, já tinha transitado em julgado à data da prolação deste Acórdão.
Ora, nos termos do artigo 79.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, o alcance do caso julgado impede que os factos por ele abrangidos possam ser apreciados para efeitos de nova contraordenação. (veja-se Prof. Doutor Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 201, pág. 320).
A violação do caso julgado não constituiu ratio decidendi do mencionado Acórdão, mas é efeito da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63- B/2008, nos termos em que foi efetuada pelo referido Acórdão.
16. Por tudo o que fica exposto, entende a ora Reclamante que, contrariamente ao considerado na Decisão Sumária n.º 728/2013, deve o recurso oportunamente interposto ser admitido e julgado, porquanto:
i. A questão que se discute é a da inconstitucionalidade da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, tal como foi efetuada pelo Acórdão de 10 de julho de 2013 do Tribunal da Relação de Coimbra;
ii. A fiscalização concreta da constitucionalidade estende-se à própria decisão inconstitucional do tribunal a quo, quando esse tribunal interpretou ou aplicou de um modo inconstitucional determinada norma jurídica que é pertinente para solucionar o litígio, sendo, pois, a interpretação ou a aplicação que lhe foi dada que padece de inconstitucionalidade;
iii. O recurso que, no caso vertente, foi interposto para o Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, questiona, precisamente, a interpretação que o Tribunal da Relação de Coimbra deu ao artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, quando aplicado a um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN;
iv. É competência do Tribunal Constitucional analisar se, tendo o tribunal recorrido extraído de um determinado bloco normativo um critério que leva a punir tais condutas em concurso efetivo, ficam, por isso, violados os princípios constitucionais do Estado de direito e de “ne bis in idem”;
v. A aplicação que o Acórdão em crise fez do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-8/ 2008, consubstanciou-se numa valoração autónoma, integral e distinta, para efeitos de punição, das mesmas condutas constitutivas do procedimento, e já nesta sede valoradas e sancionadas, o que conduz à dupla valoração negativa da mesma conduta, em violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e de “ne bis in idem”, consagrados, respetivamente, nos artigos 2.º e 29.º, n.º 5 da CRP;
vi. Na apreciação da constitucionalidade, que foi suscitada, o que está verdadeiramente em causa é a aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, sendo as restantes normas instrumentais para o efeito e demonstrativas da natureza unitária e incindível do procedimento de pesquisa e prospeção;
vii. A violação do caso julgado não constituiu ratio decidendi do Acórdão em crise, mas é um efeito necessário da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, nos termos em que foi efetuada pelo referido Acórdão.
17. Na verdade, no procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção em área REN, a unidade de sentido e de desígnio é a pesquisa e prospeção de massas minerais – não a escavação em REN ou a destruição de coberto vegetal –, sendo evidente a coincidência da conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, entre as diversas atuações – é pela escavação que se realiza a prospeção de massas minerais abaixo do solo, isto é, a escavação é ela mesma uma realização típica da prospeção e pesquisa.
E, assim, a prospeção e pesquisa em área REN, sem licença, é dominada por um único sentido de desvalor jurídico-social, isto é, por um sentido predominante à luz dos significados relevantes, o qual tem única e exclusivamente que ver com a realização de tal pesquisa e prospeção não licenciada. (cf. Professor Doutor Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 989 e segs).
Para além do que, o bem jurídico em causa no regime de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais e no Regime Jurídico da REN território. (neste sentido, veja-se Professor Doutor José Reis, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Uma epistemologia do território, in Ensaios de Homenagem a António Simões Lopes, Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, 2006, pp. 353-366).
Por tudo isto e estando em causa um único e o mesmo bem jurídico, a interpretação e aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008 como se de concurso real se tratasse e a consequente imputação de duas contraordenações pela realização dos mesmos factos, é violação inequívoca do princípio “ne bis in idem”, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
18. A condenação da ora Reclamante por prospeção e pesquisa de massas minerais sem licença e a absolvição da coima aplicada pela Câmara Municipal de Ourém por (suposta) “destruição do revestimento vegetal em área incluída na REN” operadas pela Sentença de 14 de fevereiro de 2013, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Ourém, transitaram em julgado, formando caso julgado parcial. Assim, a inequívoca identidade dos factos que constituem a atividade de prospeção e pesquisa, incluindo a destruição de coberto vegetal, com os factos que sendo prospeção e pesquisa constituem escavações, implica que a imputação de uma contraordenação por facto constitutivo de uma contraordenação já punida constitua violação do princípio “ne bis in idem” por ofensa de caso julgado: «o que a Constituição pretende evitar, com a proibição do duplo julgamento (artigo 29.º, n.º 5), é que alguém seja condenado depois de ter sido definitivamente absolvido pela prática da infração ou sujeito à aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime». (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, volume I, 4.ª Edição Revista, 2007, pág. 497).
19. Assim e por todos os fundamentos expostos, ao ter reapreciado e decidido da forma como o fez o Tribunal da Relação de Coimbra, é de julgar inconstitucional a aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008 num procedimento de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais, quando interpretado como valoração autónoma, integral e distinta das mesmas atividades constitutivas daquele procedimento.”
4. Notificado para o efeito, o Município de Ourém respondeu nos seguintes termos:
“(…)
1. As operações de aplicação do direito – como a identificação de normas aplicáveis à matéria de facto selecionada e a determinação do concurso real ou aparente entre aquelas normas – não integram o conceito funcional de norma jurídica, concebido para efeitos de controle de constitucionalidade das normas, aliás já de si bastante alargado pela jurisprudência constitucional. Pelo que tem toda a razão o Exmo. Relator ao desestimar o pedido por não existir objeto de recurso, nem este ser uma forma de julgar o conteúdo próprio da decisão judicial, nem tão pouco existir na nossa ordem jurídica um recurso de amparo, para esse efeito.
2. Relativamente ao segundo ponto da sua reclamação, deve ser contestado o decidido, pois o artigo 79.º RGCO não é invocado, nem aplicado expressa ou tacitamente, pela decisão recorrida, pelo que falha o pressuposto processual do recurso que é a aplicação de normas alegadamente inconstitucionais;”
5. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“(…) não pode deixar de se concordar com todas estas conclusões do Ilustre Conselheiro Relator.
11º Aliás, compulsando o requerimento de reclamação para a conferência da arguida (cfr. designadamente fls. 1064 dos autos), parece resultar particularmente acertada a argumentação expendida na Decisão Sumária ora reclamada.
Em tal requerimento, a arguida acaba por afirmar:
“O que se questiona, isso sim, é que, quando está em causa um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN – em que a destruição do coberto vegetal, as escavações, os aterros são atividades necessárias à concretização da prospeção e pesquisa e não detêm qualquer autonomia material e jurídica da própria atividade de prospeção e pesquisa de massas minerais – seja aplicado o artigo 20º, nº 1, alínea d) do Decreto-Lei nº 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação nº 63-B/2008, com uma valoração autónoma, integral e distinta das mesmas condutas constitutivas do procedimento, o que conduz à dupla valoração negativa da mesma conduta, em violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e de «ne bis in idem», consagrados, respetivamente, nos artigos 2º e 29º, nº 5 da CRP. Que foi o que fez o Tribunal da Relação de Coimbra!”
12º Ora, uma tal argumentação apenas permite concluir que o que está verdadeiramente em causa é «a decisão concreta do tribunal a quo».
Por outras palavras, como afirmado pela Decisão Sumária reclamada, o «que a recorrente discute é, não a inconstitucionalidade de uma norma, mas a aplicação de determinadas normas ao caso dos autos. I.e., o que pretende sindicar é o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, que, perante a factualidade concretamente dada como provada – tipo de atividades levadas a cabo, que extravasavam, no caso concreto, o conceito de “pesquisa” indicados no artigo 2.º e no anexo I da “Lei das Pedreiras” –, considerou que a recorrente deveria ser punida, em concurso real, pela prática da contraordenação “escavações /aterros em área incluída em REN”, e pela prática da contraordenação “falta de licença para pesquisa”.
13º Acontece, porém, que, como devidamente sublinhado pela Decisão Sumária reclamada, este Tribunal Constitucional:
«… tem adotado o entendimento de que não lhe compete determinar quais são exatamente os bens jurídicos tutelados pelos vários tipos legais de crime, ou qual é a melhor interpretação do direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a concluir que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efetivo. Estes dados constam do juízo judicial proferido pelo tribunal a quo, o qual se apresenta ao Tribunal Constitucional como um dado, de onde este parte para a tarefa de controlo da constitucionalidade».
14º Nessa medida, pelo exposto, crê-se que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 728/13, de 12 de dezembro, que determinou a respetiva apresentação.”
II – Fundamentação
6. A ora reclamante reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 728/2013, que decidiu não conhecer do objeto do presente recurso por, por um lado, o mesmo não constituir uma questão de constitucionalidade normativa e, por outro lado, não existir coincidência entre o objeto do mesmo e a ratio decidendi da decisão recorrida.
7. Em primeiro lugar, a ora reclamante contesta que o objeto do presente recurso não tenha natureza normativa. Para tal, louva-se em vasta doutrina e jurisprudência que em nada abalam a decisão sumária proferida. É certo que os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade pressupõem uma norma “interpretativamente mediada pela decisão recorrida”, ou que o juízo de constitucionalidade surja “no contexto da respetiva aplicação às situações da vida em causa”. Mas nenhuma dessas afirmações pressupõe que, no recurso de constitucionalidade, se possa sindicar a própria decisão em si. De facto, como o Tribunal Constitucional tem afirmado de forma consistente, o objeto de recurso de fiscalização da constitucionalidade – mesmo da fiscalização concreta da constitucionalidade – terá de ter sempre caráter normativo, “pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
É certo, também que, como a ora reclamante refere, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade pode ter como objeto certa interpretação da norma, que terá de ter sido a fundamentante da decisão recorrida. Mas ainda assim importa distinguir a impugnação da interpretação da norma da impugnação da própria decisão recorrida. Impugnar a interpretação extravasará as fronteiras das possibilidades de conhecimento do Tribunal Constitucional quando se traduza no questionar do juízo de subsunção de determinados factos ou realidade da vida a uma determinada norma. I.e., quando não se autonomize a questão de constitucionalidade relativamente ao tema da simples interpretação e aplicação de determinada norma aos factos da causa. Assim, questionar se determinada realidade se subsume a determinada norma de direito infra- constitucional. i.e., se se deve aplicar certa norma a determinados factos, é algo que se situa ainda no plano infraconstitucional, não se confundindo com a suscitação de que a norma efetivamente aplicada é inconstitucional, ainda que numa determinada dimensão interpretativa. Nesse sentido, tem-se afirmado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de forma pacífica, que o sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade não permite que o Tribunal Constitucional fiscalize o ato casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstrata de uma certa norma legal (assim, entre muitos outros, o Acórdão n.º 183/08).
Em suma, a escolha da norma aplicável é um juízo que se apresenta como um dado para o Tribunal Constitucional, não lhe cabendo questionar do mesmo. Ora, o objeto do presente recurso identifica-se com a impugnação da própria decisão recorrida, pois o ora reclamante impugna, precisamente, a aplicação de determinada norma pelo tribunal a quo.
8. Como refere o Ministério Público, a ora reclamante vem confirmar, sem margem para dúvidas, que o que pretende é, precisamente sindicar o juízo interpretativo e subsuntivo do tribunal a quo. Senão vejamos: “O que se questiona, isso sim, é que, quando está em causa um procedimento unitário de licenciamento de pesquisa e prospeção de massas minerais em área REN – em que a destruição do coberto vegetal, as escavações, os aterros são atividades necessárias à concretização da prospeção e pesquisa e não detêm qualquer autonomia material e jurídica da própria atividade de prospeção e pesquisa de massas minerais – seja aplicado o artigo 20º, nº 1, alínea d) do Decreto-Lei nº 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação nº 63-B/2008, com uma valoração autónoma, integral e distinta das mesmas condutas constitutivas do procedimento, o que conduz à dupla valoração negativa da mesma conduta, em violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e de «ne bis in idem», consagrados, respetivamente, nos artigos 2º e 29º, nº 5 da CRP. Que foi o que fez o Tribunal da Relação de Coimbra!” (sublinhado nosso):
O objeto do recurso não autonomiza a questão de constitucionalidade da norma infraconstitucional relativamente ao tema da sua aplicação aos factos da causa. Veja-se, para que mais nenhuma dúvida reste, o que se afirma nas conclusões da reclamação: “a questão que se discute é a da inconstitucionalidade da aplicação do artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, retificado pela Declaração de Retificação n.º 63-B/2008, tal como foi efetuada pelo Acórdão de 10 de julho de 2013 do Tribunal da Relação de Coimbra” (sublinhado nosso).
Tanto basta para se confirmar que o objeto do presente recurso não tem caráter normativo, como bem considerou a decisão reclamada, não constituindo, por isso, um objeto idóneo para que dele o Tribunal Constitucional possa conhecer.
9. Por outro lado, a decisão sumária reclamada considerou ainda que a decisão recorrida não aplicou a norma ou interpretação normativa que era arguida de inconstitucional como ratio decidendi no julgamento do caso. O acórdão recorrido fundamentou-se na alínea d) do n.º1 do artigo 20.º do Decreto-lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, com referência ao artigo 37.º, n.º3, al. d) do mesmo diploma, e artigo 22.º, n.º4, alínea b) da Lei n.º 50/2006 de 29 de agosto, bem como os artigos 2.º e Anexo I, ambos do Decreto-Lei n.º 227/2001, com as alterações já referidas. No requerimento de interposição de recurso a recorrente referia-se ao artigo 20.º, n.º1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 166/2008, mas ainda ao n.º V da Portaria n.º 1356/2008, de 28 de novembro ao art. 9.º, n.º1 ao art. 10.º ao artigo 20.º, n.º1, alínea a) ao artigo 21.º e ao artigo 26.º, todos do Decreto-lei n.º 277/2001, com as alterações mencionadas. Vem agora a reclamante esclarecer que o objeto do presente recurso se cinge à aplicação da norma constante da alínea d) do n.º1 do artigo 20.º do Decreto-lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, e que as demais normas invocadas eram “instrumentais para o efeito”, visando apenas “demonstrar que o procedimento de pesquisa e prospeção é um procedimento unitário e incindível”. Ora, a norma em causa apenas determina que “nas áreas incluídas em REN são interditos os usos e ações” que “se traduzam em escavações e aterros”. Não se vê de que forma semelhante norma, só por si, possa ser imputada de inconstitucional por violação do princípio do “ne bis in idem”. Ora, o ora reclamante só chega a essa conclusão porque não questiona a inconstitucionalidade da norma ou de qualquer dimensão interpretação da mesma, mas sim a aplicação dessa norma às específicas circunstâncias do caso concreto, em concurso com a infração de falta de licença. Novamente se comprova, assim, que o que verdadeiramente se visa discutir é a decisão concreta do tribunal a quo, e não uma questão de constitucionalidade relativa à norma identificada como sendo o objeto do presente recurso.
10. Por fim, resta reafirmar que não compete ao Tribunal Constitucional substituir-se ao juízo do tribunal a quo, que considerou que a infração de “falta de licença” não consumia a infração de “exploração de área incluída em REN”, por se tratarem de realidades materialmente diferentes. Neste ponto, o Tribunal Constitucional decidiu já por diversas vezes que a interpretação do direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a concluir se se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efetivo, é um juízo infraconstitucional, que se apresenta ao Tribunal Constitucional como um dado, não podendo, por isso, substituir o juízo de tribunal a quo pelo seu juízo.
Pelo exposto, resta confirmar a decisão sumária recorrida, por falta de idoneidade do objeto do presente recurso, que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa que caia nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
III – Decisão
11. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.