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Processo n.º 105/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
O Ministério Público acusou o arguido A. da prática de um crime de detenção de estupefacientes, p.p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa a tal diploma legal.
No 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre foi proferido despacho de não recebimento da acusação com fundamento na recusa da aplicação do artigo 40.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na interpretação restritiva do artigo 28.º, da Lei n.º 30/2000, feita pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, por inconstitucionalidade.
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, para apreciação da referida recusa de aplicação.
Apresentou alegações com as seguintes conclusões.
1. Na decisão recorrida recusou-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade (violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29º da Constituição), da norma do artigo 40º, (n.º 2), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação preconizada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2008.
2. Tendo, pois, sido proferida decisão contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, dela cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, obrigatório para o Ministério Publico (artigo 446º, nºs 1e 2, do CPP).
3. Tem sido entendimento pacífico deste Tribunal Constitucional que, nestas circunstâncias, por força do disposto do nº 5 do artigo 70º da LTC - aplicável também nos casos de recurso extraordinário obrigatório -, não se deve conhecer do recurso de constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º daquela Lei.
4. Aquela jurisprudência manteve-se integralmente, mesmo após as alterações introduzidas no artigo 446ª do CPP, pela Lei nº 48/2007, de 19 de Agosto, que reforçou o carácter extraordinário daquele recurso.
5. Pelo exposto, não deverá conhecer-se do objecto do recurso.
Fundamentação
A decisão recorrida contraria jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Nestas situações o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é obrigatório para o Ministério Público (artigo 446.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal).
No Acórdão n.º 349/2010 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), proferido em situação idêntica, foi efetuado o seguinte raciocínio:
“Como é sabido, estando em causa um juízo positivo de inconstitucionalidade formulado pelas instâncias jurisdicionais e consequente recusa de aplicação de norma, com tal fundamento, a lei não impõe, como condição de conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade, a prévia exaustão das vias ordinárias de recurso (artigo 70.º, n.º 2, a contrario sensu, da LTC).
Nestes casos, é admissível, em regra, a direta interposição de recurso de constitucionalidade, o qual interromperá os prazos para interposição de outros que caibam da decisão recorrida (artigo 75.º, n.º 1, da LTC).
Assim, julgada pelo Tribunal Constitucional, por decisão transitada, a questão de inconstitucionalidade, seja no sentido da procedência, seja no sentido da improcedência, as partes, querendo, poderão acionar as vias normais de recurso ou ver desencadeados os recursos ordinários antes interpostos, sendo certo que, relativamente a tal questão, a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional faz caso julgado formal (artigo 80.º, n.º 1, da LTC), pelo que nunca poderá ser reapreciada pelas instâncias ordinárias de recurso posteriormente chamadas a intervir.
Contudo, prevendo a lei processual aplicável, para determinada categoria de decisões judiciais, a interposição de recurso ordinário obrigatório, apenas é admissível o recurso para o Tribunal Constitucional da decisão final que, após a sua instauração, vier a ser proferida pela última instância de recurso (artigo 70.º, n.º 5, da LTC).
Pretende-se, deste modo, em harmonia com os interesses de ordem pública que a lei quis garantir ao impor, para certas decisões judiciais, a via obrigatória do recurso, restringir a intervenção do Tribunal Constitucional à reapreciação da decisão final que, em matéria de constitucionalidade, tiver sido tomada pela última instância ordinária de recurso, ainda que estejam em causa, por necessariamente precárias ou transitórias, decisões de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
É que, de outro modo, estar-se-ia a esvaziar de conteúdo a prévia reapreciação, imposta por lei, de determinadas decisões judiciais pelo tribunal superior, reconhecendo-se eficácia autónoma e definitiva a decisões que, nos termos da respetiva lei processual, estão sujeitas, também no que concerne ao juízo de inconstitucionalidade que formulam a propósito das normas aplicáveis, a recurso obrigatório.
Com efeito, como sublinhado no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 281/01 e reiterado pela jurisprudência que se lhe seguiu (cf., entre outros, Acórdãos nºs. 282/01, 322/01, 323/01, 334/01, 335/01, 93/02, 412/03, 470/03, 480/03, 503/03, 545/03, 558/03, 559/03, 3/04, 17/04, 28/04, 31/04, 49/04, 57/04, 58/04, 73/04, 309/04, 506/04 e 688/04, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), a circunstância de a decisão do recurso de constitucionalidade fazer caso julgado no processo, quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada, limita os poderes cognitivos do tribunal superior em matéria de reapreciação da decisão tomada, sobre a matéria, pelo tribunal a quo, comprometendo, deste modo, a própria lógica e razão de ser do recurso obrigatório.
Assim se compreende a regra da precedência expressamente prevista no n.º 5 do artigo 70.º da LTC para as decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório.
Ora, se é esta a razão de ser de tal regra, afigura-se, na linha do que igualmente vem sendo defendido por este Tribunal Constitucional, face à atual redação da norma do artigo 446.º do CPP, ser a mesma aplicável às decisões judiciais proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, também sujeitas, por expressa previsão legal, a recurso obrigatório, a interpor pelo Ministério Público (cf. Acórdãos nºs. 621/07, 622/07, 76/08, 200/08 e Decisões Sumárias nºs. 571/07, 573/07, 574/07, 575/07, 640/07, 12/08, 59/08, 60/08, 76/08, 106/08, 112/08, 118/2008, 132/08, 133/08, 156/08 e 543/08, esta última tendo precisamente por objeto a interpretação normativa sufragada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, ora recusada pela decisão recorrida, disponíveis no mesmo sítio).
É que, apesar de processualmente configurado como recurso extraordinário obrigatório – pelo menos, desde a reforma processual penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 19 de agosto –, a verdade é que o facto de ter necessariamente por objeto decisão transitada em julgado em nada altera a sua substância, como recurso obrigatório, e a natureza dos interesses subjacentes a este instituto.
Com efeito, também aqui se pretende garantir que dada decisão judicial, pela circunstância particular de ser desconforme com jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, seja reapreciada por este tribunal superior, com o objetivo específico de garantir a eficácia uniformizadora de uma tal jurisprudência ou, se ultrapassada, viabilizar o seu reexame.
Ora, tal propósito de reapreciação ou reponderação de dada decisão judicial por um Tribunal Superior – comum a todos os casos de recurso obrigatório – e os interesses que, deste modo, se pretendem tutelar, ficariam comprometidos, na parte atinente ao juízo fundamental de inconstitucionalidade, caso se permitisse, como é a regra imperante nos casos de recusa de aplicação de norma, com tal fundamento, o recurso direto para o Tribunal Constitucional.
De facto, atenta a regra de caso julgado consagrada no citado n.º 1 do artigo 80.º da LTC, ficaria o Supremo Tribunal de Justiça, nesse caso, impossibilitado de efetivamente reapreciar a valia argumentativa da decisão proferida contra a jurisprudência fixada, em tal aspeto nuclear, em ordem a fazê-la imperar ou proceder ao seu reexame, como previsto pela norma do artigo 446.º,nºs. 1 e 2, do CPP.
É, pois, de concluir, pelas razões aduzidas e pacificamente reiteradas pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional, no sentido de que, estando em causa decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, se impõe, como condição de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, a prévia instauração do recurso obrigatório previsto no citado artigo 446.º, nºs. 1 e 2, do CPP.”
Concordando-se integralmente com o discurso acima transcrito, não tendo, neste caso, sido interposto previamente pelo Ministério Público tal recurso obrigatório para o Supremo Tribunal de Justiça, como exige o n.º 5, do artigo 70.º, da LTC, não é possível conhecer do objeto do presente recurso de constitucionalidade.
Decisão
Pelo exposto não se conhece do recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional da decisão proferida nestes autos em 4 de janeiro de 2012.
Sem custas.
Lisboa, 23 de maio de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.