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Processo n.º 44/14
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho do Tribunal Judicial de Alvaiázere, de 11 de novembro de 2013 (fls. 14), que não admitiu o recurso de constitucionalidade por ele interposto.
2. A reclamação para a conferência tem o seguinte teor:
«(...)
a) Em síntese, o Tribunal a quo julgou extemporâneo o pedido de apoio judiciário do reclamante de 26/07/2013, na modalidade de dispensa total do pagamento prévio da taxa de justiça, custas e demais despesas com o processo, por entender que o prazo de dez dias previsto no artigo 476º do CPC (vigente à data da prática dos factos), correu durante o período de férias judiciais, e bem assim, julgou intempestivo o seu recurso interposto em 29/07/2013 para este Alto Tribunal por entender, ainda que implicitamente, que o prazo de dez dias previsto em termos conjugados nos artigos 69.º e 75.º n.º 1 da LTC também corre durante o período das férias judiciais.
b) Salvo o devido respeito e que é muito pela opinião contrária, tal entendimento revela-se manifestamente improcedente.
c) Conforme constitui jurisprudência pacífica e reiterada deste Alto Tribunal, o decurso do prazo de recurso de constitucionalidade previsto no 75.º n.º 1 da LTC está sujeito a suspensão durante as férias judiciais, tal como prescrevem em termos conjugados os artigos 137º, nº 1 e 138.º n.º 1 e 2 do novo código de processo civil (doravante NCPC) (à data dos factos, artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, na versão anterior) e 69.º da LTC.
d) De facto, prescreve o artigo 69.º da LTC que “à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação”.
e) O mesmo sucede, mutatis mutandis, com o disposto no artigo 38.º da LPJ (Lei n.º 34/2004, com a redação dada pela Lei n.º 47/2007) que, sob a epígrafe de “contagem de prazos” prescreve que “aos prazos processuais previstos na presente lei aplicam-se as disposições da lei processual civil”.
f) Ora, o artigo 144.º, n.º 1 do CPC, sob a epígrafe da “regra da continuidade dos prazos” prescreve que: “o prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de atos a praticar em processos que a lei considere urgentes”.
g) Assim sendo, como de facto é, quer o seu requerimento de 26/07/2013, quer o seu requerimento de interposição de recurso para este Alto Tribunal de 29/07/2013, são tempestivos!
h) Porquanto em ambos os casos, o prazo de dez dias para o efeito esteve suspenso ex vi lege durante as férias judiciais de verão, que decorreram de 16/07/2013 até 31/08/2013, pelo que o respetivo termo apenas ocorreu em data posterior a 01/09/2013 e não antes, ao contrário do que foi erradamente considerado (ainda que implicitamente) pelo, aliás, douto Despacho sob reclamação.
(...)»
3. Nos presentes autos, que correm por apenso ao processo de insolvência n.º 305/12.8TBLRA, impugnou o reclamante a decisão administrativa de concessão de apoio judiciário. Por despacho de 4 de julho de 2013 (fls. 3-4), ordenou o Tribunal Judicial de Alvaiázere, por falta de pagamento da taxa de justiça inicial, o desentranhamento dos autos do requerimento inicial do processo de impugnação judicial. Glosou o Tribunal os seguintes fundamentos:
«(...)
Nos termos do artigo 1.º do Regulamento das Custas Processuais, exceto no caso de isenção de custas (artigo 4.º do RCP) todos os processos estão sujeitos a custas.
As custas abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte, sendo a primeira correspondente ao montante devido pelo impulso processual do interessado – vide artigos 3.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1 do RCP.
No caso dos autos estamos perante uma impugnação judicial da decisão sobre a concessão do apoio judiciário.
Por força do artigo 1.º, n.º 2 do RCP este incidente é um processo autónomo que, porque não isento, está sujeito a custas processuais. Pelo que, pelo impulso processual destes autos é devida taxa de justiça (inicial), nos termos da leitura concertada do disposto nos artigos 7.º, n.º 4 e 12.º, n.º 1, al. a) do RCP, por referência à tabela I-B a este anexo.
Ora, in casu, não estando o impugnante isento de custas (artigo 4.º do RCP), nem dispensado do pagamento prévio da taxa de justiça (artigo 15.º do RCP), está obrigado a proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual, que é devido até ao momento da prática do ato processual a ela sujeito, devendo, para tanto, o interessado entregar o documento comprovativo do pagamento ou realizar a comprovação desse pagamento, juntamente com o articulado ou requerimento – cfr. artigo 14.º do RCP.
Contudo, o impugnante, devidamente representado nestes autos por mandatário judicial, assim não procedeu.
Na verdade, o requerimento de impugnação judicial da decisão de concessão de apoio judiciário dá início a um processo, cuja conformação equivalerá a uma petição inicial, pelo que, as consequências da aludida falta de pagamento da taxa de justiça inicial serão as mesmas que se aplicam à falta de pagamento da taxa de justiça inicial numa petição inicial.
Nos termos da leitura conjunta dos artigos 150.º-A, n.º 2 e 474.º al. f), ambos do Código de Processo Civil, quando a petição inicial não seja acompanhada do comprovativo prévio da taxa de justiça inicial e não tenha sido recusado o seu recebimento pela secretaria, impor-se-á o desentranhamento de tal peça processual que ocorrerá depois de decorrido o prazo de 10 dias a que se alude o artigo 476.º do Código de Processo Civil.
(...)»
Inconformado, o reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC (fls. 6), pretendendo ver apreciada “a interpretação conjugada das normas legais contidas nos artigos 12.º, n.º 1 al. a) e 6.º, n.º 1 do RCP, segundo a qual a apreciação da impugnação judicial da decisão administrativa que denega a concessão de apoio judiciário ao interessado está condicionada ao pagamento prévio da taxa de justiça prevista no referido artigo 12.º, n.º 1, al. a) do RCP, a qual já foi declarada inconstitucional pelo decidido no Acórdão do TC n.º 273/2012”.
Por despacho de 11 de novembro de 2013, o Tribunal Judicial de Alvaiázere concluiu que o recurso de constitucionalidade era “manifestamente extemporâneo”, louvando-se nas razões que seguidamente se transcrevem:
«(...)
Da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
Nos termos do disposto no artigo 70.º, al. g) da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais “que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1 da LTC, “O prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias e interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.”
Ora, como vimos, em 29.07.2013 veio o impugnante interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida em 4.07.2013, que recusou a sua impugnação judicial e ordenou o seu desentranhamento, por falta de junção do comprovativo prévio de taxa de justiça.
Tal decisão foi notificada ao impugnante, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, por carta registada remetida em 9.07.2013.
Ora, pese embora o prazo de dez dias para a interposição de recurso tenha terminado no dia 22 de julho de 2013, o impugnante apresentou o recurso em 29.07.2013, sete dias depois desse prazo (e, ademais, pediu apoio judiciário para tal quando esse prazo já estava findo).
(...)»
Na sequência deste despacho, o reclamante arguiu a nulidade do decido por “omissão dos fundamentos de facto e/ou de direito que permitem considerar os requerimentos extemporâneos ou intempestivos” (fls. 17). Por despacho fls. 22, esclareceu o tribunal o seguinte:
«(...)
Sucede que os presentes autos correm por apenso ao processo de insolvência n.º 305/12.8TBLRA, sendo que, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 1 do CIRE “O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem caráter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.”
Significa o exposto que, sendo assim, os prazos processuais relativos ao processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, são contínuos, não se suspendem e correm durante as férias judiciais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 138.º, n.º 1, parte final do NCPC (anterior artigo 144.º, n.º 1 do CPC), aplicável ao processo de insolvência ex vi do artigo 17.º do CIRE.
E, nestes termos, foi proferido o despacho de fls. 65 a 67, especificando-se as razões da não admissibilidade da interposição do recurso.
Daí que, nos termos expostos, sem prejuízo de se aclarar o nosso despacho de fls. 65 a 67 nos termos e fundamentos supra expostos, mantém-se a nossa decisão, por se entender que a mesma não padece de qualquer nulidade (cfr. artigos 613.º, 614.º, 616.º e 617.º do NCPC).
(...)»
4. O Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação deduzida, considerando que:
«(…)
9. Nos termos do art. 75º, nº 1 da LTC, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias.
Ora, tratando-se, nos presentes autos de reclamação, de incidente relativo a processo de insolvência, que apresenta natureza urgente (cfr. art. 9º, nº 1 do CIRE), os prazos processuais a ele respeitantes são contínuos, não se suspendem e correm durante as férias judiciais (cfr. art. 138º, nº 1, parte final, a contrario do novo CPC, art. 144º, nº 1 da versão anterior do mesmo Código).
Nessa medida, terá de concluir-se pela intempestividade do recurso do ora reclamante e pelo acertado da digna decisão judicial que não o admitiu, por esse motivo.
(…)»
II. Fundamentação
5. Considerou o despacho que não admitiu o recurso, ao abrigo do preceituado no artigo 75.º da LTC, que o mesmo seria “manifestamente intempestivo”, porquanto, correndo os presentes autos por apenso a um processo de insolvência, o prazo para a interposição de recurso de constitucionalidade não se suspende durante as férias judiciais (cfr. o artigo 9.º do CIRE e o artigo 144.º, n.º 1, do CPC, na versão anterior, hoje, o artigo 138.º, n.º 1).
5.1. O artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, determina que “o procedimento de proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com exceção do previsto nos números seguintes”. Por sua vez, no n.º 4 do mencionado preceito, dispõe-se que “quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de ação judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo”. Significa isto, portanto, que a menos que esteja em causa a modalidade de nomeação de patrono – caso em que se dá a interrupção dos prazos que estiverem em curso – a decisão sobre o pedido de apoio judiciário e subsequente tramitação não têm qualquer repercussão sobre o andamento da causa principal, que corre paralelamente sem qualquer interferência daquela.
Ora, o artigo 9.º do CIRE veio dar resposta a uma questão, que já se colocava no quadro do CPEREF, e que se prende com o problema de saber se o caráter urgente do processo se estende igualmente aos incidentes, apensos e recursos. A razão de ser do preceito, porém, não permite sufragar a interpretação veiculada pelo tribunal recorrido, na medida em que nesta se estende a tramitação urgente a incidentes e apensos que não têm qualquer influência sobre o processo de insolvência, como é o caso dos presentes autos, pelas razões expostas supra. A mencionada extensão só fará sentido, porque requerida pela teleologia do normativo considerado, quando em causa estejam, por exemplo, embargos à declaração de insolvência, prestação de contas pelo administrador, reclamação e verificação de créditos, liquidação, o incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno ou limitado, ou a aprovação do plano de insolvência (cfr. Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, 7.ª ed., Almedina, 2013, pp. 53-54).
Não estando em causa a concessão de apoio judiciário sob a forma de nomeação de patrono, há que concluir, portanto, no sentido de que o presente recurso de constitucionalidade foi tempestivamente interposto, não soçobrando razões para afastar a regra geral inscrita no artigo 138.º, n.º 1, do CPC (ou no artigo 144.º, n.º 1, na versão anterior), ex vi do artigo 69.º, da LTC, que estatui a suspensão da contagem dos prazos durante o período de férias judiciais.
5.2. No entanto, visto que a decisão que revogue o despacho de indeferimento faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (cfr. o n.º 4 do artigo 77.º, da LTC), é mister apreciar os demais pressupostos processuais associados aos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo das alíneas b) e g), do n.º 1, do artigo 70.º, do mesmo diploma legal.
Quanto a este ponto, afigura-se desnecessário questionar a tempestividade da suscitação da questão de constitucionalidade, problema que poderia colocar-se em virtude de aquela só ter ocorrido no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, e não no requerimento de impugnação judicial da decisão sobre o apoio judiciário. Isto porque, recorrendo nos termos da mencionada alínea g), estaria o ora reclamante dispensado de cumprir o ónus da suscitação prévia da questão de constitucionalidade (cfr., a contrario sensu, o disposto nos artigos 72.º, n.º 2, da LTC, e 280.º, n.º 4, da CRP).
Avulta, também, que estão plenamente verificados os pressupostos processuais associados aos recursos de decisões “que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”, na medida em que o tribunal recorrido interpretou e aplicou os artigos 6.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, alínea a), do RCP, num sentido que já fora anteriormente objeto de uma decisão positiva de inconstitucionalidade por parte deste Tribunal – a saber, o acórdão n.º 273/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), identificado pelo reclamante no requerimento de fls. 6.
Assim sendo, entende-se que o despacho proferido pelo tribunal recorrido, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto, é desprovido de fundamento, visto que tal recurso dá preenchimento cabal àqueles que são os pressupostos processuais inferidos a partir do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e g), da LTC.
III. Decisão
6. Destarte, o Tribunal Constitucional decide dar provimento à reclamação apresentada, e, por conseguinte, admitir o recurso de constitucionalidade interposto.
Sem custas.
Lisboa, 3 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.