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Processo n.º 858/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foram interpostos dois recursos de constitucionalidade, ambos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC).
O primeiro recurso (admitido no tribunal recorrido por despacho de fls. 950), foi apresentado nos seguintes termos:
«(…) A., arguido nos presentes autos, não se conformando com o acórdão de 25/10/2011, que julgou improcedente a exceção de caso julgado non bis in idem, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro.
O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 498.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal (caso julgado non bis in idem) com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida.
Tal norma viola o artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República.
A questão da inconstitucionalidade fora suscitada no processo, concretamente, em requerimento autónomo apresentado pelo arguido no Tribunal da Relação de Lisboa.
O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos com efeito suspensivos — art.º 78.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional (…)».
O segundo recurso (admitido no tribunal recorrido por despacho de fls. 959) tem o seguinte teor:
«(…) A., arguido nos presentes autos, não se conformando com o douto acórdão de 28/06/2011, que julgou o recurso procedente apenas parcialmente, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de setembro.
O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados em 07/07/1989; alínea a) do n.º 1 do artigo 156.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março; artigos 97.º, n.º 1 alínea a); 374.º n.º 2 e 379.º, n.º l alínea a) do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida.
Tal interpretação viola os artigos 18.º, n.º 2; 47.°, n.º 1; 58.°, n.º 1; 30.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1 e 5.º e 165.º, n.º 1 alínea b) da Constituição.
As questões da inconstitucionalidade foram suscitadas no processo, designadamente, na contestação apresentada pelo arguido em 1.ª Instância e nas alegações de recurso endereçadas ao Tribunal da Relação de Lisboa. (…)»
2. Por despacho de fls. 964 foram as partes notificadas para alegações, bem como para se pronunciarem sobre a eventualidade de não conhecimento do objeto dos recursos na parte aí identificada.
3. O recorrente apresentou alegações no primeiro recurso acima referido (interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.6.2011), pugnando pelo conhecimento do seu objeto e concluindo que «o acórdão recorrido violou o artigo 498.º do Código de Processo Civil e o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição».
E apresentou alegações no segundo recurso acima referido (interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.6.2011), onde conclui o seguinte:
1. O artigo 156.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março, no seu n.º 1, alínea a), estabelece “Não podem ser inscritos, os que não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial tenham sido condenados por qualquer crime desonroso”.
2. Por sua vez, o artigo 165.º da CRP sobre a epigrafe Reserva relativa de competência legislativa, no seu n.º1 alínea b) estabelece “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: b) Direitos, liberdades e garantias
3. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, ano 1993, p. 261 e 262, “A liberdade de escolha de profissão é um direito fundamental complexo, comportando vários componentes. Enquanto direito de defesa a liberdade de profissão significa duas coisas: (a) não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão; (b) não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenha os necessários requisitos, bem como a obter estes requisitos.
4. A liberdade de profissão continuam aqueles autores, é uma componente da liberdade de trabalho que embora sem estar explicitamente consagrada de forma autónoma na Constituição, decorre indiscutivelmente do princípio do Estado de direito democrático. A liberdade de trabalho inclui obviamente a liberdade de escolha do género de trabalho, não se esgotando todavia ai (liberdade de não trabalhar, proibição de trabalho forçado, etc.)”.
5. E, como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, ano 2005, pág. 475, “A liberdade de trabalho é, qualificadamente, liberdade de profissão ou liberdade dirigida a uma atividade com relevância económica identificada por fatores objetivos sociais e jurídicos. E revele-se tanto liberdade de escolha quanto liberdade de exercido de qualquer profissão, visto que uma pressupõe a outra (embora a primeira tenha um alcance bem maior que a segunda)”.
6. Dada a sua inserção sistemática, no Capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais), do Titulo II (Direitos, liberdades e garantias), da Parte I da Constituição (Direitos e deveres fundamentais), não há dúvida de que o art.º 47.º é um preceito que diz respeito aos direitos, liberdades e garantias e, portanto, um preceito que é diretamente aplicável e vincula as entidades públicas e privadas, por força do disposto n.º 1 do art.º 18.º da CRP.
7. E, como é sabido, os direitos, liberdades e garantias fundamentais só podem ser restringidos por lei nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art.º 18.º, n.º 2 da CRP).
8. Assim sendo, a norma do artigo 156.º, n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 844, de 16 de março, na medida que versa sobre matéria de direitos, liberdade e garantias (estabelece restrições ao direito de inscrição na Ordem dos advogados - não podem ser inscritos os que não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso), situa-se na área de reserva parlamentar, prevista no artigo 165.º, n.º 1 alínea b) da CRP.
9. Tratando a norma do artigo l56.º, n.º l alínea a) do Decreto-Lei n.º 84/84 de matéria que se insere no campo da competência reservada da Assembleia da República, tal norma poderia ser editada pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa válida.
10. A autorização legislativa foi concedida ao Governo pela Lei n.º 1/84, de 15 de fevereiro, ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março – aprovado e promulgado, respetivamente em 21 de fevereiro e 9 de março tem a redação seguinte:
Artigo 1.º
É concedida autorização ao Governo para proceder à revisão da matéria constante do capítulo V do Estatuto Judiciário «Do mandato judicial»
Artigo 2.º
O sentido essencial da legislação a criar, ao abrigo da presente lei, será o de:
a) Reestruturar o exercido da advocacia, de modo à completa satisfação das disposições constitucionais, nomeadamente para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos;
b) Consolidar o sistema democrático para as eleições dos corpos diretivos da Ordem dos Advogados, com base no caráter direto das mesmas;
c) Implantar regras de deontologia profissional que assegurem a função social do advogado como pleno servidor da justiça e do direito, com a consequente garantia da sua aplicação, através da revisão do mecanismo disciplinar e do elenco de medidas disciplinares ap1icáveis;
d) Redefinir o âmbito das incompatibilidades e impedimentos, com o objetivo de assegurar a maior independência no exercido da advocacia;
e) Rever o sistema de estágio, com o propósito de preparar o advogado estagiário para a indispensável técnica profissional e para a assunção, pelo mesmo, da consciência dos deveres, direitos e responsabilidades inerentes ao bom exercido da profissão, nomeadamente, através da criação de cursos teórico-práticos e de uma formação deontológica adequada;
f) Reforçar os mecanismos de participação da Ordem nas formas de elaboração do direito e, bem assim, da intervenção institucional da mesma na administração da justiça.
Artigo 3.º
A autorização legislativa concedida pela presente lei caduca decorridos 6 meses sobre a data da sua entrada em vigor.
11. Da leitura dos 3 (três) artigos e das 6 (seis) alíneas que compõe a autorização legislativa Lei n.º 1/84, de 15 de fevereiro, não se vislumbra um só parágrafo em que a Assembleia da República tenha autorizado o Governo a legislar sobre matéria de direitos, liberdades e garantias.
12. Assim sendo, o Governo, ao editar no Decreto Lei n.º 84/84 de 13 de março o artigo 156.º, n.º 1 alínea a) que versa sobre matéria de direitos, liberdades e garantias (estabelece restrições ao direito de inscrição na Ordem dos Advogados — não podem ser inscritos os que não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial tenham sido condenados por qualquer crime desonroso), excedeu a autorização legislativa de que estava munido.
13. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª Edição, Coimbra Editora, ano 1993, pág. 682, “os decretos-leis autorizados que não respeitem a lei de autorização são inconstitucionais, pois que, tratando-se de matéria da competência legislativa da AR, só é licito ao Governo legisla sobre ele nos precisos termos da autorização. A desconformidade com a lei de autorização implica diretamente uma ofensa à competência da AR e, logo uma inconstitucionalidade orgânica’.
14. Por conseguinte, é organicamente inconstitucional a norma do artigo 156.º, n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 84/84 de 13 de março, pois versa sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da Republica (artigo 165.º, n.º 1 alínea b), da Constituição), e emitida pelo Governo sem para tal estar validamente autorizado.
Quando assim se não entenda, o que só por mero dever de patrocínio se admite.
16. O artigo 156.º do Estatuto da Ordem dos Advogados sobre a epígrafe Restrições ao direito de inscrição, no seu n.º 1, alínea a), diz o seguinte: “Não podem ser inscritos, os que não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial tenham sido condenados por qualquer crime desonroso”.
17. Por sua vez, o artigo 7.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento de Inscrição dos Advogados e Advogados Estagiários, dispõe: “Deve ser negada a inscrição, o levantamento da sua pretensão ou a reinscrição, quando os requerente não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial, quando tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso”.
18. A questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade consiste em determinar se o artigo 156.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Dec. Lei n.º 84/84, de 16 do março e o artigo 7.º, n.º 1 alínea a) do Regulamento de Inscrição dos Advogados e Advogados Estagiários, aprovado pelo Conselho Geral em sessão de 7 de julho de 1989, violam o artigo 30.º, n.º 4 da Constituição, que estabelece: Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos.”
19. Como resulta da sua epígrafe, o artigo 30.º da Constituição refere-se genericamente aos limites das penas e das medidas de segurança. O seu n.º 4 proíbe que da aplicação de uma pena resulte automaticamente, de forma meramente mecânica, uma outra pena, sem que haja uma intervenção judicial. Pretende-se proibir que à pena a aplicar pelos tribunais acresça, ope legis, uma nova pena.
20. É esta a interpretação de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 198) que explicitam ainda o seguinte: “Embora o n.º 4 se refira apenas à proibição de efeitos necessários das penas, a proibição estende-se também por identidade de razão aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes, pois não se vê razão para distinguir.”
21. O n.º 4 do artigo 30.º da Constituição foi introduzido na revisão constitucional de 1982, pretendendo-se com este novo número acolher o entendimento de politica criminal constante do então recente Código Penal de 1982 (artigo 65.º), que impõe que se retire às penas o seu efeito estigmatizante, para isso determinando que “nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.
22. Acolhe-se, assim, como principio juridico-constitucional, o principio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Lisboa, 1993, pág. 159). Este princípio encontrava-se já vertido no artigo 76.º (77.º após a revisão ministerial) do “Projeto de Código Penal de 1963” de que fora autor Eduardo Correia (separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 157). Sobre as disposições aprovadas em 1982 escreveria depois o autor (Eduardo Correia, “O novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, Centro de Estudos Judiciários, p. 29): ‘O Código, aliás em consonância com a Constituição, fez desaparecer o efeito infamante das penas, não considerando seu efeito automático a perda de direitos civis, políticos e profissionais (artigo 65.º). Temos, assim, que todo o labéu, todo o estigma jurídico, se dilui, ficando apenas a possibilidade autónoma ou paralela de cominar penas acessórias.”
23. Inspirando-se no anteprojeto de Eduardo Correia, Jorge Miranda propusera a consagração deste princípio no projeto de Constituição que apresentara em 1975, e insistiu nele, com sucesso, a propósito de Um Projeto de Revisão Constitucional (Coimbra, 1980, p. 35). Ai escreveu: “O novo n.º 4 tem por fonte o artigo 76.° do anteprojeto de parte geral do Código penal, de autoria de Eduardo Correia. Já constava do meu projeto de Constituição de 1975.”
24. Figueiredo Dias explica que a consagração desta medida no Código Penal de 1982 revelou “o apego do legislador penal à convicção básica de que importa retirar às penas todo e qualquer efeito infamante ou estigmatizante que acresça ao (inevitável) mal da pena”. E que “assim se dá expressão legal ao indeclinável dever do Estado de não prejudicar, mas pelo contrário favorecer, a socialização do condenado” (p. 158). Com a sua consagração constitucional na revisão do 1982 “se patenteia o alto grau em que o nosso legislador constitucional prezou princípios político-criminais fundamentais, elevando-os, qua tale, à categoria de princípios integrantes da «Constituição politico criminal» “(p. 160; na mesma linha, o autor refere a questão em “Os novos rumos da politica criminal e o direito penal português do futuro”, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 43, 1983, p. ).
25. No Diário da Assembleia da República (1.ª série, de 11 de junho 1982, págs. 4176 e segs.) encontram-se refletidas as considerações que foram tecidas a propósito da introdução deste n.° 4 pela 1.ª revisão constitucional. Disse então a este propósito o Deputado A. “A aprovação do n.º 4 vem obviar (a) algumas disposições ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeito necessário de certas penas, a perca de alguns direitos Designadamente, lembro o caso de certas infrações criminais cometidas por funcionários públicos (...) que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão”
26. O Tribunal Constitucional pronunciou-se já, em várias ocasiões, sobre o sentido e alcance do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição. Assim, merece destaque, desde logo, o Acórdão n.º 16/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], Vol. 2°, pág. 367), no qual se afirmou:
27. [A Constituição] partindo da dignidade da pessoa humana, princípio estrutural da República Portuguesa (artigo 1.º), intentou, através do n.º 4 do seu artigo 30.º, retirar às penas todo o caráter infamante e evitar que a atribuição de efeitos automáticos estigmatizantes perturbe a readaptação social do delinquente). No fundo, o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição deriva, em linha reta, dos primordiais princípios definidores da atuação do Estado de Direito democrático que estruturam a nossa Lei Fundamental, ou sejam: os principias do respeito pela dignidade humana (artigo 1.º) e os de respeito e garantia dos direitos fundamentas (artigo 2.º). Daí decorrem os grandes princípios constitucionais de politica criminal: o principio da culpa; o principio da necessidade da pena ou das medidas de segurança, o principio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o principio da humanidade; e o principio da igualdade. Ora, se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos far-se-ia tábua rasa daqueles princípios.”
28. No Acórdão n.º 127/84 (publicado em ATC, Vol. 4°, págs. 403 e segs.), por sua vez, escreveu-se o seguinte: Compreende-se tal solução constitucional. Ela não é mais do que um corolário do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2°) nas suas implicações no âmbito da «constituição penal». Com efeito, a perda de direitos civis, profissionais e políticos traduz-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de direito democrático, designadamente reserva judicial, principio da culpa, princípio da necessidade e proporcionalidade das penas, etc.”
29. Na mesma linha, no Acórdão n.º 284/89 (publicado em ATC, Vol. 13°, tomo II, págs. 859 e sege.), este Tribunal entendeu que o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição proibia “que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana”.
30. Por sua vez, no Acórdão n.º 461/00 (publicado em ATC, Vol. 48.º, págs. 327 e segs.) concluiu-se sobre a proibição de penas automáticas: “A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a viciação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege”.
31. Efetivamente, da conjugação do teor do artigo 53.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1) ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados de 1984, resulta que a Cédula Profissional de Advogado estagiário, cuja posse é obrigatória para o exercido da profissão, não poderá ser emitida a quem não preencha o requisito de idoneidade. Considerando-se não idóneas, nos termos l56.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Advogados/84 com o artigo 7.º, n.º 1 alínea a) do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, os que não possuam idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso
32. Importa, porém, analisar ainda, com mais detalhe, a proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas, na dimensão especifica da perda de direitos profissionais, uma vez que a norma constante na alínea a), n.º 1 do artigo 156.º do Estatuto da Ordem dos Advogados/84 e a alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, suscitam estas exatas problemáticas.
33. Efetivamente, o Tribunal Constitucional teve também já ocasião de apreciar a inconstitucionalidade de normas por violação do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, na dimensão acima referida, relativa à perda de direitos profissionais.
34. Desde logo, no Acórdão n.º 164 o Tribunal julgou inconstitucional o n.º 1 do artigo 37.º do Código de Justiça Militar, que impunha a pena de demissão dos militares como efeito da condenação por certos crimes, efeito que foi considerado automático pelo Tribunal. Por seu turno, o Acórdão n.º 310/85 (publicado em ATC, Vol. 6º, págs. 555 e segs.) também julgou inconstitucional esta norma, afirmando: “Do contexto sistemático do Código de Justiça Militar resulta claro que a demissão de que se fala no artigo 37.º (...) não é uma pena a que o réu seja condenado, mas uma consequência, produzida ope legis pela condenação a uma pena propriamente dita”.
35. Na sequência destes dois arestos, bem como dos Acórdãos n.º 127/84 (in Diário da República [DR], II série, de 12 de Maço de 1985) e n.º 94/86 (in DR, II série, n.º 137, de 18 de junho de 1986), o Tribunal Constitucional veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 37.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, que impunha a demissão do oficial ou sargento dos quadros permanentes, ou de praças em situação equivalente, como efeito da respetiva condenação pelos crimes ai referidos, privando o militar automaticamente e independentemente de condenação especifica, do seu lugar no respetivo quadro, do seu titulo profissional e, bem assim, do direito a quaisquer recompensas e pensões (Acórdão n.º 165/86, publicado em ATC, Vol. 7°, tomo I, págs 231 e segs.).
36. Contudo, não foi a demissão a única figura a preencher, até ao momento, o conceito de perda de direitos profissionais, na jurisprudência constitucional portuguesa.
37. Assim, o Acórdão n.º 91184 (ATC, 4° Vol., págs. 7 e segs.), entre o mais, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, da norma do artigo 8.º do decreto da assembleia regional n.º 18/84, na parte em que previa as medidas de encerramento de estabelecimentos e de proibição do exercido da atividade Industrial de bordados, como efeito necessário da condenação pelo descaminho de direitos nele previstos.
38. Por sua vez, no Acórdão n.º 282/86 (publicado em ATC, Vol. 8º, págs. 207 e segs.) o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 160.º, § único, e 130.º, § único, do Código da Contribuição Industrial, que estabeleciam, como efeito automático da aplicação de certas sanções disciplinares, o cancelamento da inscrição dos técnicos de contas, o que os impedia de desenvolverem a sua atividade profissional, entendendo que previam a perda de um direito.
39. O Acórdão n.º 255/87 (in ATC, Vol. 9º, págs. 805 e segs.) veio julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 37.º do Código de Justiça Militar, que estatuía que a condenação pelos crimes mencionados no n.º 1 do mesmo artigo acarretava a baixa de posto.
40. E, muito recentemente, o Acórdão n.º 562/03 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), estando em causa uma norma do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana que estabelece como condição especial de promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, não ter o militar sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a vinte dias de detenção ou equivalente, acrescentou: “(...) onde esteja previsto um direito à promoção - progressão na carreira - ele se há de configurar como um direito profissional. Ora, no caso dos autos, estamos perante uma promoção, por diuturnidade, que, consistindo no acesso ao posto Imediato, independentemente da existência de vaga e desde que satisfeitas as condições de promoção, não só se pode considerar estruturada como um direito (profissional), mas também, e sobretudo, que não pode configurar-se como um eventual prémio ou recompensa.”
41. Quanto às normas presentemente em análise – alínea a), n.º 1 do artigo 156.º do Estatuto da Ordem dos Advogados/84 e a alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, que estabelecem ‘os que não possuem idoneidade moral para o exercido da profissão e, em especial os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso, não podem ser inscritos como advogados ou advogados estagiários.
42. Resulta, desta forma, da previsão das normas em questão, um efeito que decorre automaticamente da condenação por qualquer crime gravemente desonroso, todos os que sejam condenados nessa pena fiquem, impedidos de exercer a profissão de advogados, assim os impossibilitando, do gozo dos direitos de escolha e exercido de profissão (artigo 47.º da Constituição).
43. Na verdade, a liberdade de escolha de profissão prevista no artigo 47.º da Constituição, vem sendo entendida numa dupla vertente, englobando quer a liberdade de escolha de profissão, quer a liberdade do seu exercido (v., por exemplo, o Acórdão n.º 187/2001, in ATC, Vol. 50º, págs. 42 e segs.). Aliás, a doutrina defendia já esta ideia, mesmo antes da Constituição de 1976 (v.g. Afonso Rodrigues Queiró e Barbosa de Melo, “A liberdade de empresa e a Constituição”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, XIV, 1967, págs. 216 e segs). Sobre a liberdade de escolha de profissão, na sua dupla vertente, veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, torno IV, 2.º edição, Coimbra, 1993, págs. 438 e segs., e “Liberdade de trabalho e profissão”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXX, n.º 2, abril/junho 1988, págs. 153, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, a edição, Coimbra, 1993, págs. 261 e 262, e, ainda, deste último autor, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pág. 468.
44. Refira se ainda que os direitos de escolha e exercício de profissão integram o elenco de exemplos de direitos profissionais apresentados por Gomes Canotilho e Vital Moreira quando interpretam o segmento do artigo 30.º, nº. 4, da Constituição que menciona os “direitos civis, profissionais e políticos” da Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pág. 198). (vide por todos o Acórdão do Tribunal Constitucional de 16 de março de 2004 in www.dgsi.pt)
45. Assim, não pode deixar de concluir-se que as normas em apreciação no presente caso, ao impedir quem tenha sido condenado por qualquer crime gravemente desonroso de exercer a profissão de advogado, tem como efeito a perda das liberdades de escolher e de exercer esta profissão ou seja, a perda de um direito profissional, quer a pessoa em questão já tivesse antes exercido essa profissão, quer pretendesse a ela aceder – e isto, independentemente da questão de saber se, em geral, podem ser consideradas como verdadeiras restrições à liberdade de escolha e de exercido de profissão, ou, mais especificamente, como “perda de direitos profissionais”, para efeitos do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da Repúb1ica, todas as exigências relativas à possibilidade de acesso a uma profissão que é objeto de regulamentação pelo Estado, que resultem de anteriores condenações.
46. O que está em causa é, assim, a imposição, pela lei, da impossibilidade do exercício profissional, prevendo-se uma “consequência automática (ope legis) a extrair independentemente de decisão judicial, de penas” aplicadas aos interessados, caso em que, como refere o Acórdão n.º 522/95, a norma “por certo, afronta [ria] a regra constitucional”
47. O princípio constitucional do artigo 30.º, n.º 4, não proíbe que a lei possa definir como penas a privação de direitos profissionais (interdições profissionais, etc.), a serem aplicadas juridicamente de acordo com as regras competentes (principio de culpa, regra da tipificação, adequação entre a gravidade da infração e a pena, etc.). O que ele proíbe é que a privação de direitos profissionais seja uma simples consequência - por via direta da lei - da condenação por infrações de qualquer tipo. Valem aqui, mutatis mutantis as considerações do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 16/84, de 15 de fevereiro de 1984 sobre o alcance do artigo 30.º, n.º 4 da Constituição, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Volume 2, pagina 367 e segs. e Acórdão n.º 91/84, de 29 de agosto de 1984, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Volume 4, pagina 7 e segs. (neste sentido acórdão do T.C. n.º 282/86, de 21 de outubro de 2006, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Volume 8.º, ano 1986, pagina 207 e segs. - Relator: Conselheiro Vital Moreira).
48. À guisa de conclusão: artigo 30.º, n.º 4 da CRP., não proíbe que à condenação por certos crimes se sigam, necessariamente, certas consequências. O que se veda é que a uma certa condenação penal produza automaticamente, por mero efeito da Lei, a perda de quaisquer direitos profissionais já não que a sentença condenatória possa decretar essa perda de direitos em função de uma graduação da culpa, feita casuisticamente pelo Juiz (Acórdão do Tribunal Constitucional de 07/06/1995, Processo n.º 94-417, in http://www.dgsi.pt).
49. Impõe-se, pois, concluir pela inconstitucionalidade do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 156.º do EOA/84 e na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, por violarem o artigo 30.º, n.º 4 da CRP.
Nestes termos,
Deve julgar-se organicamente inconstitucional a norma do artigo 156.º, n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março, pois versa sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da República e emitida pelo Governo sem para tal estar validamente autorizado, por violarem o artigo 165.º, n.º 1 alínea b) da CRP.
Quando assim se não entenda,
Deve julgar-se inconstitucional a norma do artigo 156.º, n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março e artigo 7.º do n.º 1 da alínea a) do Regulamento de Inscrição de Advogados Estagiários, pois, “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, por violarem o artigo 30.º, n.º 4 da CRP.»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo como se segue:
«1.º
Tratando-se de recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e por não ter sido suscitada adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não deve ser conhecido o recurso de fls. 947, relativo ao artigo 498.º do Código de Processo Civil, nem o recurso de fls. 884 e 885, na parte relativa aos artigos 97.º, n.º 1, alínea a), 374.º, n.º 2 e 379, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
2.º
A norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março (EOA/84), que estabelece restrições ao direito de inscrição na Ordem dos Advogados, na parte que importa ao caso, tem, precisamente, a mesma redação da norma que anteriormente definia as condições de inscrição na Ordem dos Advogados, ou seja, do artigo 543.º, n.º 1, alínea a), do Decreto n.º 44 278, de 14 de abril de 1962.
3.º
Com efeito, nessa matéria, o Decreto-Lei n.º 84/84, limitou-se a manter o “statu quo” normativo, pelo que a norma questionada não assume caráter inovatório, improcedendo, consequentemente, a alegada inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
4.º
Essa mesma norma, do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84, bem como a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (aprovado pelo Conselho Geral a 7 de julho de 1989), de conteúdo idêntico, não estabelecem qualquer sanção, aplicada como reação ao crime gravemente desonroso
5.º
Pelo que as restrições que as mesmas estabelecem, não são enquadráveis no âmbito de proteção do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
6.º
Efetivamente, tais normas, que se mostram perfeitamente adequadas ao desempenho do exercício da atividade profissional em causa, assentam numa matriz de natureza ética e deontológica, na natureza pública da Ordem dos Advogados, e obedecem à preocupação pelo interesse coletivo que deve nortear a atividade da advocacia.
7.º
Assim sendo, as normas questionadas não ofendem a Constituição.
8.º
Pelo que, deve ser negado provimento total ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Questões prévias
5. Por despacho de fls. 964 foi suscitada a eventualidade de não conhecimento do objeto do primeiro recurso acima identificado, respeitante ao artigo 498.º do CPC (aplicável por força do artigo 4.º do CPP), bem como o eventual não conhecimento de parte do segundo recurso, no segmento referente aos artigos 97.º, n.º 1, alínea a), 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, em ambos os casos por falta de suscitação das questões de constitucionalidade.
No que respeita àquele primeiro recurso, verifica-se que o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade da norma do artigo 498.º do CPC ou de uma sua dimensão normativa. Em nenhum dos dois requerimentos que antecederam o acórdão de 25.10.2011, o recorrente identificou o artigo 498.º ou uma dada interpretação normativa deste, alegadamente aplicada pela decisão recorrida, para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade (cfr. requerimentos de fls. 887 e s. e 889 e s. dos autos).
Assim, por falta de suscitação, não pode conhecer-se do primeiro recurso acima identificado, interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.10.2011 e referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 498.º, n.º 1, do CPC (aplicável por força do artigo 4.º do CPP).
No que respeita ao segundo recurso, na parte que se refere aos artigos 97.º, n.º 1, alínea a), 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, constata-se que a questão de constitucionalidade também não foi adequadamente suscitada, o que só por si obstaria ao conhecimento do objeto do recurso.
Acontece que o próprio recorrente abandonou esta questão, uma vez que, nas alegações apresentadas neste Tribunal Constitucional, restringiu o objeto do segundo recurso à questão da inconstitucionalidade das normas do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Advogados e do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (cfr. alegações de fls. 966/988).
Na fase das alegações, o recorrente pode restringir a indicação das normas objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 684.º do CPC, aplicável por força do artigo 69.º da LTC, pelo que se considera circunscrito o segundo recurso àquelas normas.
Apreciação do mérito do recurso
6. O presente recurso encontra-se, assim, restringido à apreciação da constitucionalidade das normas do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março, adiante designado EOA/84) e do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (Regulamento n.º 29/2002, aprovado em sessão do Conselho Geral de 7 de julho de 1989, publicado no DR – II Série, de 19 de junho de 2002).
A norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84, reza assim:
«Artigo 156.º
Restrições ao direito de inscrição
1 ? Não podem ser inscritos:
a) Os que não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso;
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…).
2 ? (…).
3 ? (…).
4 ? (…).
5 ? (…).»
O artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, prevê o seguinte:
«Artigo 7.º
Restrições ao direito de inscrição
1 ? Deve ser negada a inscrição, o levantamento da sua suspensão ou a reinscrição:
a) Quando os requerentes não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão e, em especial, quando tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso;
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…).
2 ? (…).
3 ? (…).
4 ? (…).»
O recorrente sustenta que a norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84, é organicamente inconstitucional por versar sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrando-se na reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição), e ter sido emitida pelo Governo sem para tal estar validamente autorizado.
O recorrente alega, ainda, que a referida norma do EOA/84, bem como a norma do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, violam o disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, que proíbe que qualquer pena envolva, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
7. O artigo 156.º do EOA/84, sob a epígrafe “Restrições ao direito de inscrição”, define quem reúne as condições legais para se inscrever na Ordem dos Advogados que, como é sabido é uma associação pública de cariz profissional. A questionada alínea a) do n.º 1 daquele preceito prevê que não podem inscrever-se na Ordem dos Advogados aqueles que «não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão, e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso».
Não há dúvida de que a norma em causa – que condiciona o acesso à profissão de advogado, através do estabelecimento de certos requisitos para a inscrição na respetiva associação profissional – dispõe sobre matéria relativa a direitos, liberdades e garantias e, como tal, inclui-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP), só podendo constar de lei ou de decreto-lei devidamente autorizado.
No entanto, desde já se adianta que o recorrente não tem razão quanto à invocada inconstitucionalidade orgânica da alínea a) do n.º 1 do artigo 156.º do EOA/84.
O Estatuto da Ordem dos Advogados foi inicialmente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março, de onde já constava a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 156.º, segundo a qual não podem ser inscritos os que «não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso».
O Decreto-Lei n.º 84/84 foi posteriormente alterado, designadamente, pela Lei n.º 80/2001, de 20 de julho, que alterou o n.º 3 do artigo 156.º do Estatuto, mantendo inalterados os demais números do preceito, incluindo o seu n.º 1. O que significa que a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 156.º do Estatuto é resultado das alterações ao Decreto-Lei n.º 84/84, operadas, designadamente, pela Lei n.º 80/2001, que manteve a redação inicial daquela norma. Tendo sido mantida a redacção da norma por lei da Assembleia da República – que alterou um dos números do preceito em causa – a mesma é insuscetível de padecer do vício de inconstitucionalidade orgânica por ausência de credencial parlamentar (em sentido idêntico já nos pronunciámos, embora sobre norma diversa, no Acórdão n.º 42/2008).
Além disso, como bem salienta o representante do Ministério Público, a norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 84/84 tem a mesma redação da norma que a antecedeu na definição das condições de inscrição na Ordem dos Advogados, constante do artigo 543.º, n.º 1, alínea a), do Decreto n.º 44278, de 14 de abril de 1962. O que significa que, apesar de originariamente constar de decreto-lei não autorizado, a norma em causa não introduziu qualquer inovação no quadro legal até então vigente. Como é jurisprudência constante deste Tribunal Constitucional, uma norma emitida sem autorização parlamentar só padece do vício de inconstitucionalidade orgânica quando estipula qualquer efeito de direito inovatório que devesse recair na competência reservada da Assembleia da República, não sendo possível imputar-lhe esse vício quando se limita a reproduzir o regime preexistente (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 211/2007, 310/2009 e 176/2010). Também como este Tribunal já salientou, não obsta a este raciocínio o facto de a norma precedente constar de diploma anterior à Constituição de 1976 (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 588/99 e 340/2005).
Assim, também por este motivo, não se verifica a invocada inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84.
8. Vejamos agora se as normas do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84 e do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, infringem o disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, segundo o qual «[Ne]nhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».
Como já se escreveu no Acórdão n.º 368/08, esta norma constitucional «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E a proibição é necessária para garantia de efetivação de princípios fundamentais de politica criminal (…)».
A proibição dos efeitos necessários das “penas” estende-se, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à “condenação” pela prática de certos crimes (v., neste sentido, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 505).
No caso em apreço não nos encontramos no âmbito desta proibição consagrada no artigo 30.º, n.º 4, da CRP. Na verdade, a norma questionada no presente recurso não prevê uma sanção acessória ou um “efeito necessário” associado à condenação anterior pela prática de um crime.
Do que se trata neste artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84, é de definir as condições essenciais subjetivas de acesso a uma associação pública (Ordem dos Advogados), de inscrição obrigatória para o exercício da respetiva atividade profissional de advogado.
De entre essas “condições essenciais” para a inscrição, incluiu-se a “idoneidade moral para o exercício da profissão”, prevendo-se que não poderá ser inscrito quem não possua idoneidade moral, nomeadamente, por ter sido condenado por qualquer crime gravemente desonroso. O conceito indeterminado de “falta de idoneidade moral” é concretizado na própria norma, a título exemplificativo, com os casos em que tenha havido prévia condenação em “crime gravemente desonroso”. A expressão “crime gravemente desonroso” é, em si mesma, outro conceito indeterminado, que caberá ao aplicador preencher, no caso concreto, em função da idoneidade moral exigida para o exercício da profissão.
O que significa que a condenação prévia num crime não tem como efeito automático nem necessário a impossibilidade de inscrição na Ordem dos Advogados. Simplesmente, será avaliado in casu se essa condenação foi aplicada pela prática de um crime “gravemente desonroso” e como tal demonstrativo de que o candidato não possui “idoneidade moral” para o exercício da profissão de advogado.
Do exposto resulta que a norma questionada é insuscetível de contender com a proibição constante do artigo 30.º, n.º 4, da CRP.
Resta dizer que a condenação anterior em “crime gravemente desonroso” não se mostra um critério desproporcionado, infundado ou desadequado à avaliação da idoneidade moral para o exercício da profissão de advogado.
9. Não havendo fundamento para considerar inconstitucional a norma do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do EOA/84, não há igualmente razão para sustentar a inconstitucionalidade do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, uma vez que esta norma se limita a reproduzir o que se contém naquela primeira quanto às condições de inscrição na Ordem dos Advogados.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.10.2011, referente à inconstitucionalidade da norma do artigo 498.º, n.º 1, do CPC (aplicável por força do artigo 4.º do CPP); e do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.6.2011, na parte respeitante aos artigos 97.º, n.º 1, alínea a), 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP; em ambos os casos por falta de suscitação das questões de constitucionalidade;
b) Não julgar inconstitucionais as normas do artigo 156.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março) e do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (Regulamento n.º 29/2002, aprovado em sessão do Conselho Geral de 7 de julho de 1989, publicado no DR – II Série, de 19 de junho de 2002);
Consequentemente, negar provimento ao recurso na parte que dele se conhece.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 20 de junho de 2012 – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.