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Processo nº 538/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto de 14 de Novembro de 1996 foi negado provimento ao recurso contencioso de anulação interposto por E... do indeferimento do requerimento de nomeação na categoria de chefe de secção pelo Presidente do Conselho da Administração Regional de Saúde do Norte, de 18 de Outubro de 1995, devidamente identificado no processo. Inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 26 de Junho de 1997, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Para o que agora releva, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que 'As disposições dos arts. 32º, nº 4 e 29º, nº 1 do DL nº 335/93, de 29/9 e 3º, nº 2 do DL nº 11/93, de 16/1 (...) são claros (...), no sentido da caducidade do concurso [a que concorrera a recorrente] em causa, após a aprovação dos mapas de pessoal da nova ARS, em 15/12/94. Ora, não se vislumbra em que medida é que uma norma que põe termos à validade de um concurso, determinado pela extinção da entidade promotora do mesmo, possa bulir com o direito ao trabalho e à segurança do emprego e à carreira profissional da recorrente (arts. 53º, 58º e 59º da CRP). A única expectativa da recorrente que se terá gorado, apenas tem a ver com a progressão na carreira, por não ter sido promovida por via do concurso em causa. Todavia, a verdade é que tal concurso foi aberto inicialmente para o preenchimento de apenas cinco vagas, sendo que a recorrente ficou graduada em
33º lugar sem qualquer garantia, pois, de vir a ser promovida no período de validade do concurso. Por outro lado, é normal que na generalidade dos concursos haja candidatos graduados que acabem por não ser nomeados no prazo de validade e nem por isso as normas que regulam esses prazos violam aqueles princípios constitucionais. Também quanto à alegada violação do princípio da igualdade a que conduziria a interpretação propugnada na sentença recorrida, carece a recorrente de qualquer razão. O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange três dimensões:
– Proibição do arbítrio (...);
– Proibição de discriminação (...);
– Obrigação de diferenciação .... A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão dos poderes públicos, não excluindo, porém, a liberdade de conformação legislativa. (...) No caso em apreço, a norma do artº 32º, nº 4 do DL nº 335/93, de 29/9/93, estabelece que os concursos abertos até à data da entrada em vigor deste diploma mantêm-se válidos até à aprovação dos novos mapas de pessoal, mapas que só viriam a ser aprovados em 15/12/94. Trata-se de norma transitória determinada pela extinção das ARS (arts. 3º e 4º do DL nº 11/93) que visou precisamente salvaguardar as expectativas de funcionários graduados em concursos pendentes, encontrando, por isso, justificação material plausível e aceitável, não impondo qualquer solução que se possa considerar desmesurada ou arbitrária. O prejuízo que eventualmente terá resultado para a recorrente da entrada em vigor de tais normas não atinge sequer os seus direitos ou interesses, de forma desrazoável, na medida em que a recorrente, como vimos, não tinha qualquer garantia de vir a ser nomeada, face à sua graduação no concurso e atendendo às vagas inicialmente existentes. Quanto aos princípios da justiça e da proporcionalidade têm a ver com a actuação concreta da Administração e não propriamente com a interpretação de normas jurídicas. E como a recorrente não imputou ao acto contenciosamente impugnado vício de violação de lei por infracção destes princípios, em tempo oportuno, não pode agora este Supremo Tribunal apreciar inovatoriamente a eventual verificação de tais vícios no âmbito do presente recurso jurisdicional.' Inconformada, E... recorreu para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da L.T.C., uma vez que o Tribunal a quo, no entendimento da recorrente, aplicou o nº 4 do artº 32º e o artº 29º do Decreto-Lei nº 335/93, de 29 de Setembro, conjugados com o nº 2 do artº 3º do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Novembro, com uma interpretação que torna tais normas inconstitucionais; bem como aplicou com errada interpretação, os artºs
13º e 18º, 266º e 269º da Constituição da República, bem como 53º, 58º e 59º do mesmo diploma fundamental. Todas estas normas foram violadas na decisão ora em crise, questão que fora suscitada na alegação apresentada no Tribunal Administrativo do Círculo e dirigida aos Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo'. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal Administrativo. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as suas alegações. Em síntese, sustentou ter adquirido o direito à nomeação, porque, durante o prazo de validade do concurso, constante do respectivo aviso de abertura, se verificou a nomeação de 32 candidatos e a desistência de um deles, o que deveria ter conduzido à sua nomeação, pois ficara classificada em 33º lugar; a Administração não podia arbitrariamente retirar-lhe esse direito, modificando unilateralmente o quadro legal existente durante o concurso. A entidade recorrida contra-alegou. Em suma, contrapôs que, quando foi publicada a lista que classificou em 33º lugar a recorrente (14 de Outubro de 1994), já estava em vigor o Decreto-Lei nº 335/93, através do qual se ficou desde logo a saber que a Administração Regional de Saúde no âmbito da qual o concurso fora aberto se extinguia em 31 de Dezembro do mesmo ano e que a validade do concurso terminaria quando fossem aprovados os mapas de pessoal. A desistência apenas ocorreu depois de ter cessado a validade do concurso. Ora a recorrente sabia que só podiam ser admitidos 32 candidatos, por só haver
32 vagas; 'não existiu, assim, nenhuma expectativa jurídica digna de protecção constitucional que a lei ou a decisão de indeferimento hajam violado'. Para além disso, não está em causa o seu direito ao trabalho, porque apenas se discute uma promoção.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir. Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade a alegada inconstitucionalidade das normas do 'nº 4 do artº
32º e [d]o artº 29º do Decreto-Lei nº 335/93, de 29 de Setembro, conjugados com o nº 2 do artº 3º do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Novembro', cuja interpretação pelo Supremo Tribunal Administrativo a recorrente sustenta violar o disposto nos 'artºs 13º e 18º, 266º e 269º da Constituição da República, bem como 53º, 58º e 59º do mesmo diploma fundamental'. O Decreto-Lei nº 335/93, que veio aprovar o Regulamento das Administrações Regionais de Saúde, previsto no nº 4 do artigo 6º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro, prevê, no nº 4 do seu artigo 32º, o seguinte:
'4. Os concursos abertos até à data da entrada em vigor deste diploma mantêm-se válidos até à aprovação dos novos mapas de pessoal'. Quanto ao artigo 29º do mesmo diploma, tem este texto:
'1- As ARS são colocadas me regime de instalação, pelo período de um ano, extinguindo-se as criadas ao abrigo do Decreto-Lei nº 254/82, de 29 de Junho, transitando o pessoal e transmitindo-se o respectivo património para as novas, nos termos do presente diploma.
2- As dotações orçamentais, os direitos e obrigações, incluindo as posições contratuais de que são titulares as administrações regionais de saúde criadas ao abrigo do Decreto-Lei nº 254/82, de 29 de Junho, são automaticamente transferidos para as ARS, de harmonia com o disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro, sem dependência de quaisquer formalidades.
3- Até à publicação dos quadros de pessoal a que se refere o nº 1 do artigo 19º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei nº 11/93, de
15 de Janeiro, devem ser aprovados, por despacho do Ministro da Saúde, os mapas propostos pelos conselhos de administração das ARS, com a dotação do pessoal indispensável ao seu funcionamento durante o regime de instalação.' Finalmente, o nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro, estabelece:
'2- Na data a que se refere o número anterior [1 de Janeiro de 1994] extinguem-se as administrações regionais de saúde criadas ao abrigo do Decreto-Lei nº 254/82, de 29 de Junho, transitando o pessoal para as novas administrações regionais de saúde, nos termos dos artigos seguintes'. Pretende a recorrente que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo conferiu a estas normas contraria 'os artºs 13º e 18º, 266º e 269º da Constituição da República, bem como 53º, 58º e 59º do mesmo diploma fundamental'. Não tem, porém, razão. Antes de o demonstrar, há, porém, que verificar se as normas identificadas no requerimento de interposição do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, como exige a al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. E conclui-se que, do artigo 29ºdo Decreto-Lei nº 335/93, o Supremo Tribunal Administrativo só fez apelo ao nº 1, assim se restringindo, portanto, o objecto do recurso.
3. Interessa ter presente a sequência em que a recorrente faz assentar a aquisição do direito à nomeação de que se considera titular. Em particular, importa acentuar que, quando a recorrente toma conhecimento da sua classificação em 33º lugar na lista dos candidatos admitidos no concurso
(publicada em 14 de Outubro de 1994, no Diário da República, II Série), já tinham entrado em vigor, quer o Decreto-Lei nº 11/93, quer o Decreto-Lei nº
335/93. Ou seja: a lei já determinava que a validade do concurso apenas se mantinha até à aprovação do mapa de pessoal da Administração Regional de Saúde do Norte, criada pelo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo referido Decreto-Lei nº 11/93, estando portanto já extinta a Administração Regional de Saúde do Porto, no âmbito da qual havia sido aberto o concurso, desde 1 de Janeiro de 1994 (artigo 33º do Decreto-Lei nº 335/93, conjugado com os nºs 1 e 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 11/93). Sabia, por outro lado, que o concurso havia sido aberto para o 'provimento de cinco lugares de chefe de secção (...) bem como para os que venham a existir' na
área da Administração Regional de Saúde do Porto. Quando foram nomeados os candidatos colocados nos 32 primeiros lugares, pelo despacho do Ministro da Saúde de 15 de Dezembro de 1994, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Janeiro de 1995, data em que foram aprovados os mapas de pessoal da Administração Regional de Saúde do Norte, o quadro legal vigente deixou de permitir, pois, a nomeação da recorrente por efeitos do concurso a que se tinha candidatado. A desistência de um dos nomeados foi posterior; como, naturalmente, foi posterior o requerimento da recorrente para ser nomeada chefe de secção.
4. Sustenta a recorrente que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo adoptou das normas agora impugnadas viola 'o direito ao trabalho e à segurança no emprego, entendendo-se que o direito à carreira profissional mais não é que uma emanação desse direito fundamental – artºs 53º, 58º e 59º.
(...) Ora o que sucedeu no caso vertente foi que o Supremo Tribunal entendeu que um direito fundamental podia ser restringido e eliminado (...). Dirigindo-se este ‘eliminação retroactiva’ a um pequeno número de candidatos no concurso, sendo todos eles bem concretamente identificados, teremos a acrescentar que a lei não reveste as características de generalidade e abstracção também exigidas pela C.R.P. (...). Seguramente tal contraria os mais elementares princípios de boa fé que devem nortear toda a actividade da administração. E os princípios de proporcionalidade e justiça que igualmente devem estar presentes nesta actividade – artº 266º. Resulta também ofendido o direito à igualdade – artºs
13º e 266º. Porque (...) lei posterior veio originar tratamento radicalmente diferente para a recorrente (...)'.
5. Em primeiro lugar, as normas impugnadas não afectam, nem o direito à segurança no emprego, nem o direito ao trabalho ou à progressão na carreira. Aliás, só o último poderia estar em causa, porque de uma promoção se trataria. E a verdade é que, não tendo qualquer fundamento a alegação da aquisição, pela recorrente, de um 'direito à nomeação', não se vê como justificar a aquisição e subsequente frustração de um qualquer direito à promoção na carreira. Não foram, assim, infringidos os artigos 53º, 58º ou 59º da Constituição, nem tão pouco o artigo 18º, cuja relevância, aqui, pressupunha estar em causa um desses direitos. Já num caso materialmente semelhante – a apreciação da alegada inconstitucionalidade de uma norma do regime de instalação que permitia a cessação da comissão de serviço de funcionário assim nomeado antes de decorrido o prazo da comissão –, o Tribunal Constitucional afirmou que '(...) a cessação da comissão de serviço da recorrente teve como consequência o regresso ao quadro de origem, com os inerentes direitos e deveres funcionais. Deste modo, nem a permanência na função pública, nem o direito ao trabalho foram postos em causa. A cessação da comissão de serviço apenas afectou a concreta conformação da prestação de serviço pela funcionária, que, no entanto, está já fora do âmbito dos referidos direitos (cf., sobre o conteúdo do direito de permanecer na função pública, o Acórdão nº 340/92 do Tribunal Constitucional, D.R., II série, de 17 de Novembro de 1992). Só seria configurável uma violação das normas constitucionais citadas se a cessação da comissão de serviço provocasse a quebra do vínculo à função pública e a impedisse de regressar ao lugar de origem' –no caso presente, de nele permanecer (Acórdão nº 369/96, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Maio de 1996).
6. Nem foi violado o princípio da igualdade, pois não se encontra nenhum regime discriminatório. Por um lado, é manifesto que o tratamento dos candidatos admitidos tem de ser diferente depois de cessada a validade do concurso; por outro, não é arbitrário o regime de cessação dos efeitos do concurso que decorre da conjugação das normas em causa, uma vez que tem fundamento material suficiente na extinção do organismo no âmbito do qual o concurso foi efectuado. Há jurisprudência abundante deste Tribunal sobre as exigências do princípio da igualdade; salienta-se o acórdão nº 80/86, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º, I, pág. 79 e segs.
7. Finalmente, não se mostram violados os princípios da proporcionalidade e da justiça que a administração deve seguir na sua actuação. Nem se encontra qualquer ligação – nem a recorrente a estabelece – entre eles e as normas aqui questionadas.
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 29 de Setembro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarrro Beleza José de Sousa e Brito Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa