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Processo n.º 1192/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste – Sintra (juízo Grande Instância Cível), em que é reclamante A., S.A. e reclamado EDIFUNDO – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, legalmente representado pela Sociedade gestora ESAF, a primeira reclamou, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido em 27/06/2013 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela ora reclamante.
2. Por decisão da 1ª instância, foi decretado um segundo arresto de bens da ora reclamada, pedido pela ora reclamante para garantia de um crédito no valor de € 7.801.034,98, resultante dos danos causados pelo desabamento de terras, provenientes de um prédio da reclamada, que invadiram a autoestrada A9/CREL. Inconformada, ENDIFUNDO recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 31 de janeiro de 2013, decidiu conceder provimento ao recurso, determinando o levantamento do arresto decretado, e decidindo, para o releva para a presente reclamação:
“(…) a nível de procedimento cautelar, com a proibição da repetição da providência, quis-se apenas impossibilitar a dedução da mesma providência cautelar, na dependência da mesma causa.
Por isso, por efeito da regra da proibição de repetição da providência, consagrada no n.º4 do art. 381.º do CPC, não pode a parte, depois da providência cautelar ter sido julgada improcedente ou tiver caducado, requerer de novo a mesma providência, na dependência da mesma causa, ainda que baseada em factos diferentes.
Com semelhante regra, efetivamente, ultrapassam-se os efeitos do caso julgado, certamente por se ter entendido não se justificar, no âmbito da mesma ação, o requerimento de igual procedimento cautelar depois do anterior ter sido considerado injustificado ou ter caducado. Daí que, mesmo que existam factos novos, mas escapando aos efeitos do caso julgado, não se admita a repetição do mesmo procedimento cautelar.
Tendo o interessado, no âmbito de uma ação, a possibilidade de prevenir, através de providência cautelar, de natureza provisória, o direito que pretende fazer valer na ação, não fica desacautelada a sua posição, o qual, no entanto, está obrigado a realizar uma adequada ponderação quanto à instauração do procedimento cautelar e, decretada a providência, a agir cuidadosamente na sua conservação.
(…)
Vertendo à situação concreta dos autos, regista-se que a Apelada, no âmbito da ação proposta contra o Apelante, instaurou contra este um procedimento cautelar de arresto, nomeadamente em 7 de abril de 2010, o qual viria a ser julgado improcedente, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de novembro de 2011, transitado em julgado.
Entretanto, a Apelada, em 15 de fevereiro de 2012, no âmbito da mesma ação declarativa, requereu novo procedimento cautelar de arresto contra o Apelante onde, para além do crédito invocado ser superior, apenas são novos alguns factos suscetíveis de consubstanciar o requisito do periculum in mora.
Embora pelo efeito do caso julgado nada obstasse a novo requerimento de arresto em virtude da alegação de novos factos, que traduzem uma distinta causa de pedir, já o disposto no n.º4 do art. 381.º do CPC, que proíbe a repetição da providência, no caso desta ter sido julgada injustificada ou ter caducado, obstava a que a Apelada instaurasse contra o Apelante novo procedimento cautelar de arresto, no âmbito da mesma ação declarativa de efetivação da responsabilidade civil, nomeadamente quando o arresto anterior foi julgado injustificado.
Nestas condições, estando proibido novo arresto, não pode subsistir o arresto decretado pela decisão de 3 de abril de 2012 e mantido pela decisão de 8 de outubro de 2012”.
3. Desse Acórdão interpôs a A., S.A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “nos termos das disposições conjugadas dos artigos 387.º-A, in fine, 678.º, n.º2, c), interpretado anteriormente à luz do artigo 721.º-A, n.º1, c) do Código de Processo Civil”.
Por decisão proferida pelo Relator do Tribunal da Relação, em 10 de maio de 2013, o recurso não foi admitido, por se considerar que o pressuposto do recurso de revista interposto pela recorrente assenta na “jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça”, sendo que “a apelada não alegou a existência de acórdão uniformizador do Supremo tribunal de Justiça que tivesse sido contrariado pelo acórdão proferido nos autos”.
4. A A., S.A, veio então interpor recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e ainda da decisão do Relator de não admissão do recurso de revista de revista para o STJ, para o Tribunal Constitucional, em requerimento em que invoca duas questões de constitucionalidade: (1) a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 381.º, n.º4, do CPC, acolhida pelo Acórdão da Relação de 31 de janeiro de 2013; (2) a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 387.º-A, do CPC, acolhida pela decisão de 10 de maio de 2013, que não admitiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, arguindo que ambas violam o direito de acesso ao direito e aos tribunais vertido no artigo 20.º da CRP.
5. Por despacho datado de 27/06/2013, o Relator do Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com base nos seguintes fundamentos:
“(…)
A decisão proferida não aplicou norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo.
Por uma razão muito simples. No recurso de apelação não foi suscitada qualquer inconstitucionalidade, nomeadamente quanto ao disposto no n.º4 do art. 381.º do CPC, cuja violação estava em discussão.
Deste modo, nem se compreende como se pode alegar que o acórdão proferido constitui uma «decisão surpresa», quando se limitou a decidir no âmbito da questão jurídica controvertida, que respeitava à proibição da repetição da providência.
No contexto descrito, é manifesto não existir fundamento legal para o recurso para o Tribunal Constitucional, nomeadamente ao abrigo da invocada alínea b) do n.º1 do art. 70.º da Lei do Tribunal Constitucional”.
6. Inconformada com o teor de tal despacho, a A., S.A, reclamou para a conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, e para o Tribunal Constitucional. O Relator considerou que a reclamação para a conferência não era admissível, pelo que indeferiu o requerimento respetivo, e mandou remeter os autos ao Tribunal Constitucional.
7. É do seguinte teor a reclamação para o Tribunal Constitucional.
“1. A A., S.A. (…) veio recorrer para o Tribunal Constitucional porque considera que a decisão recorrida do Tribunal da Relação de Lisboa faz uma interpretação normativa que afronta princípios constitucionais e normas constitucionais que tocam no núcleo mais sensível do Estado de Direito.
2. Com efeito, alegou a A. em primeiro lugar que a decisão que ordenou o levantamento do arresto de bens do EDIFUNDO (…), proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 31 de janeiro de 2013, era baseada numa interpretação inconstitucional do artigo 381.º, n.º4 do Código de Processo Civil (“CPC”), pelo facto de aquele Tribunal da Relação de Lisboa entender (entendimento diverso daquele propugnado pelo Tribunal de 1ª instância que decretou o arresto, que a proibição de não repetição de providência cautelar contida no citado preceito legal é independente da verificação da existência de factos novos e/ou supervenientes, ou seja, é independente do instituto do caso julgado).
3. Foi por não poder conformar-se com o atropelo aos seus direitos fundamentais e aos princípios nucleares que enformam o Estado de Direito Democrático, nomeadamente o direito de acesso ao direito e aos tribunais, em especial o direito à tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais através de procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade – a tutela cautelar-, consubstanciado na interpretação do artigo 381.º, n.º4 do CPC acima referida, com a qual foi surpreendida em última instância, que a A. recorreu para o Tribunal Constitucional.
4. Alegou a A., em segundo lugar, não poder conformar-se com a interpretação do artigo 387.º-A do CPC constante do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 9 de maio de 2013, a qual também consubstancia uma inconstitucionalidade por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais.
5. Por estes motivos, a A. requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade da interpretação das duas normas jurídicas acima mencionadas com a Constituição.
6. Contudo, foi agora a A. notificada do despacho de 27 de junho de 2013, nos termos do qual foi decidido não admitir o recurso pela mesma interposto para este Tribunal Constitucional.
7. Espera a A., no entanto, reverter tal juízo por considerar que está em causa o direito de acesso ao direito e aos tribunais, mormente, à tutela cautelar”.
8. A ora reclamante suscitou ainda uma questão prévia, relativa ao facto de o Tribunal da Relação de Lisboa, no despacho proferido em 27/06/2013, pronunciar-se sobre a não admissão do recurso interposto apenas no que respeita à interpretação do artigo 381.º, n.º4 do CPC, nada tendo referido acerca da alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 387.º-A do CPC. Nesse seguimento, invoca omissão de pronúncia, bem como a nulidade do referido despacho, nos termos do disposto do na alínea d) do n.º1 do artigo 668.º e do n.º 3 do artigo 666.º do CPC.
9. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou, no que toca à questão prévia, no sentido de que “apesar de apenas se fundamentar expressamente a não admissão do recurso quanto ao acórdão da Relação, nada obsta a que o Tribunal Constitucional aprecie a reclamação na sua totalidade”.
Pronunciou-se, pelo mais, no sentido do indeferimento da reclamação, nos termos seguintes:
“(…)
13. (…) tal como a reclamante indica, não tendo reclamado para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho que não admitiu o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, pode, uma vez que se mostrem respeitados os prazos, recorrer diretamente para o Tribunal Constitucional daquele despacho (artigo 70.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3 da LTC).
14. Como dissemos, a reclamante prescindiu da reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão que não admitiu o recurso.
15. Assim sendo, o momento processual próprio para suscitar a questão da constitucionalidade reportada à recorribilidade do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, era o da interposição daquele recurso.
16. A reclamante, efetivamente, coloca uma questão prévia de admissibilidade do recurso.
17. Porém, parece-nos que, quando trata desta questão, fá-lo sempre e só numa perspetiva de interpretação do direito ordinário em consonância com a concreta situação dos autos, citando-se princípios constitucionais.
18. Não vislumbramos a suscitação de forma clara de uma questão de constitucionalidade normativa – como, aliás, no próprio requerimento de interposição do recurso não vem enunciada, com a clareza exigível, uma questão com essa natureza - passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
19. A questão também vem tratada no Parecer junto, mas da mesma forma e no mesmo sentido.
20. Pelo exposto e no que respeita á questão da constitucionalidade que tem a ver com a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, deve indeferir-se a reclamação.
21. Quanto à constitucionalidade da norma do artigo 381.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicado pelo acórdão da Relação que concedeu provimento ao recurso interposto pela requerida Edifundo, começamos por dizer que no requerimento de interposição do recurso (fls. 1439 a 1447) não se enuncia, nem se identifica expressamente qual a interpretação cuja inconstitucionalidade deveria constituir objeto do recurso.
22. Embora essa deficiência fosse, eventualmente, passível de ser suprida face ao disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, constata-se, porém, a falta de um requisito de admissibilidade do recurso: não suscitação de forma adequada da questão, “durante o processo”.
23. Na verdade, nas alegações apresentadas na resposta ao recurso interposto pela requerida para a Relação, a requerente, então recorrida, poderia ter suscitado a questão da constitucionalidade, o que não fez, como, aliás, assume (vd. n.º 2, do requerimento de interposição do recurso, a fls. 1439).
24. A Relação, ao conceder provimento ao recurso, não sufragou qualquer interpretação anómala insólita ou surpreendente, que dispensasse a agora recorrente do cumprimento do ónus da suscitação prévia.
25. Com efeito, por um lado, a interpretação em causa, já decorria do afirmado pela requerida nas suas alegações e por outro – como nos dá conta o acórdão da Relação – era a perfilhada por alguma doutrina e jurisprudência.
26. Concordando-se, pois, com o que sobre esta matéria se diz no douto despacho ora reclamado, deve a reclamação ser indeferida.
27. Poderíamos ainda acrescentar um outro fundamento para a não admissibilidade, nesta parte, do recurso.
28. A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação e, simultaneamente, da decisão que, desse acórdão, não lhe admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
29. Naturalmente que, nestas circunstâncias, não se pode considerar que o acórdão da Relação estava consolidado na ordem jurídica dos tribunais judiciais, não constituindo, pois, uma decisão definitiva (vd. v.g. Acórdão n.º 426/2013).
30. Assim, em face do disposto no artigo 70.º, n.º 2, da LTC, falta também este requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da mesma Lei”.
10. As partes foram notificadas do parecer do Ministério Público para dizerem o que tivessem por conveniente.
A Reclamante veio apresentar resposta, invocando, em suma, que: (i) no que toca alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 387.º-A do CPC a reclamante procedeu, de forma perfeitamente clara, à identificação uma questão de constitucionalidade normativa, passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade; (ii) no que toca a alegada inconstitucionalidade do artigo do artigo 381.º, n.º 4, do CPC, a mesma não foi objeto de suscitação, de forma adequada, “durante o processo”, pelo facto de o Acórdão da Relação constituir, nesse ponto, uma “decisão-surpresa”; (iii) em terceiro lugar, no que respeita à decisão do Acórdão da Relação não constituir uma decisão definitiva, invoca que a decisão de não admissão do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça já havia transitado em julgado.
11. A Reclamada EDIFUNDO apresentou também resposta, referindo, em suma, seguir as conclusões do Parecer do Ministério Público.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
12. São duas as questões de constitucionalidade em causa. Em primeiro lugar, a recorrente levanta a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 381.º, n.º4, do CPC, acolhida pelo Acórdão da Relação e, em segundo lugar, a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 387.º-A, do CPC, acolhida pela decisão que não admitiu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo que ambas violam o direito de acesso ao direito e aos tribunais vertido no artigo 20.º da CRP.
13. A primeira questão diz respeito 381.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
13.1. No que toca a este primeiro objeto, há que começar por sublinhar que a reclamante não cumpriu um dos requisitos necessários para o Tribunal Constitucional se pronunciar sobre o mérito do presente recurso: a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo. De facto, a questão de constitucionalidade agora em análise não foi arguida durante o processo, ou seja, antes da prolação da decisão recorrida, maxime, num momento prévio ao esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal da Relação quanto à matéria em causa (cfr. entre outros, o acórdão n.º 352/94).
De facto, o que a recorrente suscitou nas alegações de recurso para a Relação diz respeito à interpretação do artigo 381.º, n.º4 do CPC, citando vária doutrina e jurisprudência, mas tendo situado toda a discussão no campo do Direito infraconstitucional, nomeadamente no que respeita ao caso julgado, à existência de novos factos justificativos da providência ou na verificação dos requisitos para o decretamento da mesma, mas nunca levantando nenhuma questão de inconstitucionalidade.
Invoca agora a recorrente que o Tribunal da Relação “decidiu tendo por base uma interpretação não assumida por qualquer das partes, nem exarada no processo”. Assim, invoca que tal decisão constitui uma “decisão-surpresa”.
Para apreciar este ponto, convém lembrar o que, para a jurisprudência do Tribunal Constitucional, constitui uma “decisão-surpresa”. A jurisprudência constitucional tem vindo a entender, num entendimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade funcionalmente adequado ao sistema de acesso ao Tribunal Constitucional, que a satisfação deste pressuposto não é exigível quando, por circunstâncias excecionais, não tenha sido possível à parte colocar antecipadamente uma tal questão. Ocorre uma dessas situações quando a representação da possibilidade de aplicação de determinada norma ou da interpretação que lhe é conferida na decisão recorrida, considerando o concreto desenvolvimento da lide e o estado da jurisprudência e da doutrina, não é razoavelmente exigível do interessado, numa estratégia processual diligente e cautelosa.
Ora, não é esse o caso dos presentes autos. De facto, a Relação, ao conceder provimento ao recurso, não sufragou qualquer interpretação anómala insólita ou surpreendente, que dispensasse a recorrente do cumprimento do ónus da suscitação prévia. Com efeito, nas alegações perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a então recorrida A., S.A. discorre largamente sobre a interpretação que, no seu entender, o referido Tribunal deveria dar ao artigo 381.º, n.º4 do CPC, para evitar, precisamente, que este interpretasse a norma no sentido com que o veio a fazer. Assim, a reclamante antecipou a possibilidade de a providência cautelar requerida ser indeferida com base, precisamente, no entendimento do artigo 381.º, n.º4 do CPC que veio a ser sufragado pela Relação. A então recorrida tinha assim, todas as condições para cumprir o ónus de suscitar a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 381.º, n.º4 do CPC que veio efetivamente a ser acolhida, já que o Acórdão da Relação se limitou a decidir no âmbito da questão jurídica controvertida, que respeitava à proibição da repetição da providência de arresto. Por outro lado, mesmo que nada referisse quanto a esse aspeto, sempre se dirá que a questão em causa, respeitante à repetição da providência cautelar de arresto era já discutida largamente pela jurisprudência e doutrina, pelo que a parte, devidamente representada por advogado, deveria ter antecipado o acolhimento dessa interpretação.
13.2. Ainda no que respeita esta questão de constitucionalidade, incumbe sublinhar que também no requerimento de interposição do recurso a recorrente não logra identificar uma questão de constitucionalidade normativa. De facto, aí limita-se a questionar a forma como o artigo 381.º, n.º4 do CPC foi interpretado, referindo que “o Acórdão recorrido afirmou que: indeferido um primeiro arresto – e independentemente do que suceda posteriormente – um segundo aresto não pode ser conhecido”, o que, considera a recorrente, “é neste ponto que reside a denegação da justiça inerente à decisão recorrida” (fls. 1442). Assim, não chega a delinear uma norma para efeitos de julgamento da constitucionalidade, mas apenas a colocar em causa a forma como o acórdão recorrido interpretou o artigo 381.º do CPC, matéria que não incumbe ao Tribunal Constitucional sindicar.
14. A segunda questão diz respeito à interpretação do artigo 387.º-A do CPC constante do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 10 de maio de 2013, que, no entender da recorrente “consubstancia uma inconstitucionalidade por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais”.
14.1. No que toca a este ponto, a ora reclamante suscitou uma questão prévia, relativa ao facto de o Tribunal da Relação de Lisboa, no despacho proferido em 27/06/2013 nada ter referido acerca da alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 387.º-A do CPC. Nesse seguimento, invoca omissão de pronúncia, bem como a nulidade do referido despacho, nos termos do disposto do na alínea d) do n.º1 do artigo 668.º e do n.º 3 do artigo 666.º do CPC.
Ora, cabe aqui sublinhar que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a nulidade do despacho do tribunal a quo. Por outro lado, como referiu o parecer do Ministério Público, “apesar de apenas se fundamentar expressamente a não admissão do recurso quanto ao acórdão da Relação, nada obsta a que o Tribunal Constitucional aprecie a reclamação na sua totalidade”.
14.2. De facto, importa esclarecer, neste ponto, que do despacho do tribunal a quo que decidiu não admitir recurso para o STJ, cabia reclamação, nos termos do artigo 688.º do CPC (então em vigor), a interpor perante aquele Tribunal, no prazo de dez dias. No entanto, a ora reclamante deixou esgotar esse prazo, assim se entendendo que renunciou tacitamente à reclamação perante o STJ. Nesses termos, deve entender-se que se mostram esgotados os meios de recurso ordinário, nos termos do n.º4 do artigo 70.º da LTC. De facto, o pressuposto do esgotamento desses meios de recurso não impõe ao interessado um ónus de efetiva e diligente utilização dos meios impugnatórios normalmente contemplados no ordenamento processual, bastando que tais meios se considerem precludidos, no momento de interposição do recurso de constitucionalidade. Assim, como refere Carlos Lopes do Rego, “o que releva decisivamente é, pois que se haja tornado impossível, no momento em que se interpõe o recurso de constitucionalidade, o recurso para um tribunal hierarquicamente superior ao que proferiu a decisão recorrida”, mesmo se “tal impossibilidade decorrer da perda do direito de recorrer por caducidade (decurso do prazo)” (Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 123).
14.3. No entanto, posto isto, também a segunda questão de constitucionalidade não constitui um objeto idóneo de recurso de fiscalização da constitucionalidade. Como refere o parecer do Ministério Público, a recorrente reporta-se ao artigo 387.º-A do CPC sempre e só numa perspetiva de interpretação do direito ordinário em consonância com a concreta situação dos autos, limitando-se a invocar princípios constitucionais.
De facto, na alegação do recurso de revista, a Recorrente limita-se a discorrer sobre a melhor interpretação a conferir ao preceito em análise. E é nesse contexto que se inserem as seguintes passagens, que a recorrente agora identifica como correspondendo à suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa: por um lado, afirma - “seria inadmissível, sendo mesmo inconstitucional por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que num estado de direito democrático, em que o princípio de acesso ao direito está constitucionalmente consagrado (…) uma decisão do Tribunal da Relação sobre providências cautelares em que não haja “dupla conforme” estar retirada, em absoluto e sem ter em consideração a relevância jurídica que as questões em causa podem assumir e o valor da causa de pedir e da sucumbência do âmbito de cognição do Supremo Tribunal de Justiça”. E, mais à frente, “a interpretação sistemática e o espírito da reforma do regime dos recursos operada em 2007 não pode retirar, sem mais, da esfera de harmonização de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça a tutela cautelar, sob pena de violação do princípio constitucional do direito à tutela jurisdicional consagrado no artigo 20.º n,º 1 da Constituição da República, ordinariamente previsto no artigo 2.º do CPC”.
Ora, estas referências a preceitos constitucionais não correspondem àquilo que o Tribunal Constitucional considera como constituindo uma suscitação processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade normativa perante o Tribunal a quo. De acordo com a jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional, para efeitos de saber o que constitui uma questão de constitucionalidade normativa, deve identificar-se o “conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, de 13/05).
Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que, para que uma questão de constitucionalidade se considere suscitada em termos adequados perante o tribunal a quo, não é suficiente referir que a mesma não interpretou um preceito legal no sentido propugnado pelo interessado ou que a decisão viola a Constituição. É necessário que seja discernível a autonomização da questão de constitucionalidade da norma relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa, de modo a colocar o juiz ad quem perante a necessidade de apreciar tal questão sob pena de omissão de pronúncia.
Ora, é isso que a recorrente não logrou fazer neste ponto, limitando-se a contestar a interpretação dos preceitos legais escolhida pela decisão recorrida.
De facto, fazendo-se o acesso ao Tribunal Constitucional por via de recurso é necessário que o tribunal que proferiu a decisão recorrida tenha sido confrontado, por iniciativa do sujeito processual interessado, com a questão de dever recusar a aplicação de uma norma ou de um sentido normativo precisamente determinado (no uso do poder ou dever funcional que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição). Ora, em nenhuma passagem das alegações de recurso de revista a recorrente logra delinear uma norma – ou interpretação normativa – que impute de inconstitucional, limitando-se apenas a discorrer genericamente sobre a situação em causa poder violar preceitos constitucionais.
Em nenhum momento, verdadeiramente, ela logrou suscitar durante o processo de forma clara de uma questão de constitucionalidade normativa passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Tanto basta para o recurso de constitucionalidade não poder ser aceite.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.