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Processo n.º 135/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. No Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa V. P. e outros interpuseram recurso contencioso do despacho de 3 de Novembro de 1995 do Inspector-Geral das Finanças, que indeferiu a pretensão de serem providos na categoria de Inspector de Finanças Superior Principal. Por sentença de 15 de Janeiro de 1997 foi negado provimento ao recurso e mantido o despacho impugnado. Desta decisão vieram os recorrentes interpor recurso de agravo para o Supremo Tribunal Administrativo. Por Acórdão de 3 de Dezembro de 1998, este Supremo Tribunal decidiu negar provimento ao recurso, podendo ler-se na respectiva fundamentação, no que para o caso importa, que:
'[...] Referem também os recorrentes que a Lei n.º 2/92, de 9.3, não define aqui o seu horizonte temporal, o que viola o art.º 268º, n.ºs 2 e 5 da Constituição da República e, por isso, mal andou a sentença ao entender o contrário.
[...] Como se vê, exige a Constituição que a lei de autorização defina o seu âmbito temporal. Ora, de uma forma expressa, tal definição não acontece aqui. Simplesmente, e como se impõe, a presente autorização legislativa inscreve-se na Lei do Orçamento e, mesmo não versando matéria fiscal, deve entender-se que tem o prazo implícito correspondente ao termo da mesma, ou seja, o termo do ano económico a que respeita.
É que o princípio da anualidade que caracteriza o Orçamento – v. art.º 2º da Lei n.º 6/91, de 20.2 – arrasta por implicitude essa consequência, sendo que esta forma de temporização deve ser tida como válida (cfr. Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, págs. 466 e 679 e, entre outros, os Acs. deste Tribunal de
29.6.95, 23.1.96 e 11.7.96, nos recs. 35391, 36007 e 36414, respectivamente). Não se verifica, pois, aqui, inconstitucionalidade alguma. Segundo os recorrentes, o art.º 168º, n.ºs 2 e 5, também teria sido violado por a lei de autorização não precisar devidamente o conteúdo desta (conteúdo mínimo exigível). Querem os mesmos referir-se, assim, ao sentido da autorização pois que, quanto ao objecto não há dúvidas.
[...] O cotejo da lei de autorização permite concluir rapidamente que esta tripla vertente foi conseguida. Diz-se nela, com efeito, e como melhor resulta do atrás transcrito, que visando prosseguir o aperfeiçoamento e modernização da regime jurídico da função pública, impõe-se alterar o estatuto do pessoal dirigente, constante do Dec.-Lei n.º 323/89, em especial os art.ºs 18º e 19º, tendo como escopo definir com maior clareza o direito à carreira. Está, pois, expresso o ‘conteúdo mínimo exigível’.
[...] Não se verifica portanto, também aqui, a apontada inconstitucionalidade, pelo que bem se julgou. E não existindo as inconstitucionalidades apontadas não se pode sustentar por aí, como o fazem os recorrentes, a inconstitucionalidade da lei editada ao abrigo da autorização, o Dec. Lei n.º 311/93, de 13.2, aprovado em Conselho de Ministros em 31.12.92. Finalmente, dizem os recorrentes que, como a originária redacção dos artigos
17º, alínea a) e 18º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 323/89, em sintonia com os art.ºs
47º, n.º 2 e 50º, n.º 2 da CRP, dava guarida à sua pretensão, o Dec. Lei n.º
311/93, de 13 de Fevereiro, que a alterou, veio infringir o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito democrático, pelo que enferma de inconstitucionalidade material. Mas mais uma vez não têm razão.
[...] Desta forma, quando o n.º 3 do art.º 18º do Dec. Lei n.º 323/89, na redacção introduzida pelo Dec. Lei n.º 311/93, vem estabelecer que ‘a aplicação do disposto na alínea a) do número anterior aos funcionários de carreira ou corpos especiais depende da verificação dos requisitos especiais de acesso previstos nas respectivas leis reguladoras, bem como das habilitações literárias exigidas’, limita-se a consagrar apenas, e com força interpretativa – art.º 2º do citado Dec. Lei 311/93 –, uma das possíveis leituras da redacção originária do preceito, justamente aquela que o Conselho Consultivo havia adoptado. E como se sabe uma interpretação assim é designada de autêntica, valendo a lei interpretativa com esse sentido desde o início da sua vigência (v. art.º 13º do Cód. Civil e Oliveira Ascensão, ‘O Direito – Introdução e Teoria Geral’, 2ª edição, págs. 439 e segs.).
[...] A interpretação autêntica a que se aludiu não veio ditar um sentido à lei que ela não contivesse já, antes se limitou, face às dúvidas existentes, a fixar aquele que tem por mais natural. Não se vê, assim, onde esteja a violação do princípio da confiança. Não houve, portanto, qualquer surpresa ou inovação.'
3. É desta última decisão que vem interposto por V. P. o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da constitucionalidade das seguintes normas: a) artigo 5º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, 'quer porque a mesma (sendo ‘lei de autorização’, mas não sendo suficiente atinência com o diploma orçamental em que formalmente se insere) não contém a indicação da sua
‘duração’ nem do seu ‘sentido’, em termos constitucionalmente adequados – e, pois, por ofensa ao artº 168º, n.ºs 2 e 5, é originariamente inconstitucional – do que resulta, derivada ou reflexamente, a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro, editado ao seu abrigo, e no qual se funda o acto administrativo com que se não conforma'; b) artigo 18º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro '(na redacção conferida pelo artº 1º do Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro, à luz da
‘natureza interpretativa’ que lhe foi atribuída pelo artº 2º deste diploma): é que a originária redacção dos artºs 17º, a), e 18º, n.º 2, do Decreto--Lei n.º
323/89, de 26 de Setembro, bem sintonizada com o que promana dos artºs 47º, n.º
2 e 50º, n.º 2, da Constituição, dava guarida à pretensão do Recorrente e o Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro, arreda o ‘grau de concretização’ (com patente ‘subjectivação’) que o direito do Recorrente tinha adquirido, com o que infringe o ‘princípio da confiança’ (ínsito no princípio do Estado de Direito democrático)'. Neste Tribunal, apresentou o recorrente alegações, que concluiu do seguinte modo:
'1 - O art.º 5º, n. 1, d), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, não incide sobre matéria fiscal nem tem atinência com a matéria orçamental, dele não sobressaindo, com relevo, algum carácter normativo orçamental, no plano da execução da política económico-financeira.
1.1 - Assim, e salvo o merecido respeito, aquela norma não comunga da característica da anualidade da lei orçamental.
1.2 - Deste modo, o art.º 5º, n.º 1, d), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, deveria alinhar todos os requisitos constitucionalmente exigidos a uma lei de autorização, incluindo a indicação da sua ‘duração’ (cfr. art.º 168º, n.ºs 2 e
5, da Constituição. Pelo que,
1.3 - Não o fazendo, o art.º 5º, n.º 1, d), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, é originariamente inconstitucional, o que, derivada ou reflexamente, inquina o Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro, editado ao seu abrigo (e, pois, o art.º l8º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, aditado pelo art.º 1º daquele Decreto-Lei n. 34/93, de 13 de Fevereiro).
1.4 - Assim, e salvo o merecido respeito, tendo decidido diferentemente o douto acórdão recorrido não fez boa interpretação e aplicação do direito, e, pois, não fez bom julgamento (cfr. art.ºs 9º a 15º das presentes alegações).
2 - Por outro lado, a formulação empregue no art.º 5º, n.º 1, d), da Lei n.º
2/92, de 9 de Março, não indica o ‘sentido’, em termos constitucionalmente relevantes, da legislação a editar, pelo que, por ofensa ao art.º 168º, n.ºs 2 e
5, da Constituição, é originariamente inconstitucional, o que, derivada ou reflexamente, inquina o Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro, editado ao seu abrigo (e, pois, o n.º 3 do art.º 18º do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, aditado pelo art.º 1º daquele Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro).
2.1 - Deste modo, e salvo o merecido respeito, tendo decidido diferentemente o douto acórdão recorrido não fez boa interpretação e aplicação do direito, e, pois, não fez bom julgamento (cfr. art.ºs 16º a 19º das presentes alegações).
3 - Por outro lado, a originária redacção dos artigos 17º a), e 18º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, bem sintonizada com o que promana dos art.ºs 47º, n.º 2 e 50º, n.º 2, da Constituição, dava guarida à pretensão do Recorrente (a criação de um lugar de Inspector de Finanças Superior Principal ancoradamente no exercício do cargo de Inspector de Finanças Chefe, para que foi nomeado quando já era Inspector de Finanças Superior).
3.1 - Quer assim dizer que o Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro (quando adita o n.º 3 ao art.º 18º do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, e lhe confere ‘natureza interpretativa’: cfr. art.ºs 1º e 2º do citado Decreto-Lei n.º
34/93, de 13 de Fevereiro), arreda o ‘grau de concretização’ (com patente
‘subjectivização’) que o direito do Recorrente tinha adquirido, com o que infringe o ‘princípio da confiança’ (ínsito no princípio do Estado de Direito democrático: art.º 2º da Constituição), e, pois enferma de inconstitucionalidade material.
3.2 - Deste modo, e salvo o merecido respeito, tendo decidido diferentemente o douto acórdão recorrido não fez boa interpretação e aplicação do direito, e, pois, não fez bom julgamento (cfr. art.ºs l7º e 2º a 22º das presentes alegações).
4 - Aliás, o Recorrente quando foi nomeado Inspector de Finanças Chefe já era, titular da categoria de Inspector de Finanças Superior, pelo qual a criação do lugar de Inspector de Finanças Superior Principal não belisca a ‘racionalidade’ do sistema de carreiras: que as funções dirigentes por ele exercidas tinham patente ligação funcional com o âmbito (funcional) da carreira de origem - o que, salvo o merecido respeito, não pode deixar de relevar para os efeitos do art.º 50º, n.º 2, da Constituição, estatuição em obediência à qual tem que ser interpretado e aplicado este aditado (pelo art.º 1º do Decreto-Lei n.º 34/93, de
13 de Fevereiro) n.º 3 do art.º 18º do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro
(cfr. art.ºs 1º a 8º das presentes alegações).' A entidade recorrida, em contra-alegações que oportunamente apresentou, concluiu por sua vez:
'1. Do expendido decorre que a fundamentação do Recorrente, em todas as vertentes por este exploradas, não encontra qualquer base de sustentação legal, ao invés, revela-se completamente desprovida de razão e validade a sua alegação de que o acórdão faria uma má interpretação e aplicação do direito e um mau julgamento, pelo que pede a sua revogação.
2. Ideia que decorre do equívoco de que o acto administrativo estaria eivado da mesma inconstitucionalidade material originária que afectaria a Lei n.º 2/92, de
9 de Março e, derivada ou reflexamente, também o Decreto-Lei n.º 34/93, de 13 de Fevereiro.
3. Mantém, pois a Entidade Recorrida a sua inarredável convicção de que o recurso agora interposto pelo Recorrente, não merece o solicitado acolhimento, termos em que reitera a sua posição originária de lhe não reconhecer razão alguma de Direito, tão menos de Justiça, aos argumentos invocados pelo Recorrente, em tudo louvando a douta e sábia sentença proferida pelos Venerandos Juízes.' Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. É a seguinte a redacção das normas impugnadas:
– Lei n.º 2/92, de 9 de Março:
'Artigo 5º Regime jurídico
1. - Prosseguindo na via de aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública, fica o Governo autorizado a legislar no sentido de: a) ... b) ... c) ... d) Alterar o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local, constante do Decreto-Lei n.º 323/89, de
26 de Outubro, em especial os artigos 18º e 19º, tendo em vista definir com maior clareza o direito à carreira, bem como o direito à indemnização prevista nos n.ºs 7 e 8 do artigo 18º do mesmo diploma;
...'
(A parte final da alínea d) refere-se à indemnização alternativa ao provimento em categoria superior à anteriormente possuída em caso de cessação antecipada da comissão de serviço por extinção ou reorganização da respectiva unidade orgânica, não sendo directamente relevante para o caso dos autos).
– Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º
34/93, de 13 de Fevereiro:
'Artigo 18º Direito à carreira
3. - A aplicação do disposto na alínea a) do número anterior aos funcionários oriundos de carreiras ou corpos especiais depende da verificação dos requisitos específicos de acesso previstos nas respectivas leis reguladoras, bem como das habilitações literárias exigidas.
...' Por sua vez, a redacção da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, para a qual este n.º 3 remete, era a seguinte:
'2. - Os funcionários nomeados para cargos dirigentes têm direito, finda a comissão de serviço, ainda que seguida de nova nomeação: a) Ao provimento em categoria superior à que possuíam à data da nomeação para dirigente, a atribuir em função de anos de exercício continuado nestas funções, agrupados de harmonia com os módulos de promoção na carreira e em escalão a determinar, nos termos do artigo 19º do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro'.
5. Diga-se, preliminarmente, que a natureza interpretativa do n.º 3 do artigo
18º do Decreto-Lei n.º 323/89, estabelecida pelo artigo 2º do Decreto-Lei n.º
34/93, não está em causa nos presentes autos, apesar de impugnada. É que o que se pretende com a impugnação de tal natureza interpretativa (como se vê até pela invocação da violação do princípio da confiança) é afastar a sua aplicação retroactiva (artigo 13º do Código Civil), e no caso vertente tal efeito não existe. Na verdade, o ora recorrente, como refere o ponto 1.3. do recurso contencioso interposto em 4 de Janeiro de 1996, 'completou o período de três anos de exercício de funções dirigentes (correspondentes ao respectivo módulo em comissão de serviço)' em 6 de Agosto de 1995, ou seja, numa altura em que a redacção originária do Decreto-Lei n.º 323/89 – que, supostamente (e desinteressa discutir o ponto, muito embora existissem decisões contraditórias que vieram justamente originar a intervenção dita interpretativa do legislador), daria 'guarida à pretensão do recorrente' – já não vigorava (como não vigorava também no momento em que os restantes subscritores do referido recurso contencioso completaram a sua primeira comissão de serviço em cargos equiparados a dirigentes). Ora, a natureza interpretativa da disposição impugnada, que importaria para uma violação do princípio da confiança, só poderia relevar para a aplicação do direito anterior – do direito que as normas interpretativas visavam tornar claro
–, já que, em relação às situações verificadas depois da intervenção clarificadora do legislador, não pode obviamente falar-se de efeito
'retroactivo' resultante da natureza interpretativa (e da consequente integração da lei interpretativa na interpretada). E acaba de ver-se que nos presentes autos não se coloca a questão da aplicação da redacção originária do Decreto-Lei n.º 323/89, pois que já era aplicável no momento da cessação da comissão de serviço – que é o momento relevante para aplicação do disposto no citado artigo
18º, n.º 2 (sendo quando se preenche a previsão normativa que atribui direito ao provimento em categoria superior) – a redacção de 1993. Como, de resto, a norma expressamente atributiva de tal natureza interpretativa
(para o passado) também não foi impugnada – embora de nada valesse que o tivesse sido, já que um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(Lei do Tribunal Constitucional), é que, além de impugnada pelo recorrente, a norma tenha sido aplicada na decisão recorrida, e a norma atributiva de natureza interpretativa ao novo regime não foi, nem podia ter sido, aplicada no caso sub judicio –, há apenas que cuidar da questão da eventual inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 323/89 em consequência da inconstitucionalidade da norma habilitante (cfr. Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da República, I Série A, de 17 de Agosto de 1992). Nenhum outro fundamento resta para que se possa imputar inconstitucionalidade, designadamente inconstitucionalidade material, à opção tomada pelo legislador de 1993, mormente quando nem sequer se produzira a facti species que, no direito anteriormente vigente, podia ser entendida como geradora do provimento em categoria superior à detida.
É certo que se poderia pensar em argumentar, ex adverso, que uma expectativa em tal sentido podia ter pesado, porventura decisivamente, na decisão de desempenho da comissão de serviço. Todavia, como se escreveu, por exemplo, no Acórdão n.º
287/90 (DR, II Série, de 20 de Fevereiro de 1990), 'não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo
(...)' (Itálicos aditados). E nesse mesmo acórdão definiu-se o critério do que constituiria uma lesão intolerável das expectativas – a afectação das expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
'(...) a) quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não foi ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (...) Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.' Ora, no caso sub judicio, o simples facto de a intervenção do legislador se fazer no sentido anteriormente aplicado pelos tribunais e já adoptado em Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no domínio do anterior direito (v. infra, ponto 7) é suficientemente demonstrativo de que não pode ter havido uma afectação das expectativas 'extraordinariamente onerosa'.
6. Quanto à norma habilitante da alteração legislativa de 1993, alegada fonte da
'inconstitucionalidade consequente' (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 680, anotação XXXIII ao artigo 168º) desta alteração, suscitaram-se no processo três diferentes questões: a da inexistência de um prazo de duração da autorização, a da falta de sentido normativo da autorização – ambas retomadas nas alegações produzidas neste tribunal –, e a da eventual ultrapassagem do prazo implícito na norma de autorização. Vejamos cada uma delas, sem prejuízo de, em momento posterior, se aferir da real necessidade da existência de uma autorização parlamentar para a intervenção legislativa através do Decreto-Lei n.º 34/93. Quanto à primeira questão, sublinha o recorrente que a norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 5º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, 'não incide sobre matéria fiscal e não tem atinência com a matéria orçamental', pelo que teria de observar o disposto no n.º 2 do [...] art. 168º [da Constituição], incluindo a fixação da sua 'duração' e a definição do seu 'sentido'. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira (ob. cit., pág. 679, anotação XXX ao artigo 168º) 'a autorização legislativa há-de ter um prazo, sendo temporalmente limitada (n.º 2, 2ª parte), ainda que a Constituição não prescreva um prazo máximo, podendo este ir teoricamente até à duração de uma legislatura.' Mas, acrescentam logo a seguir, 'o prazo pode ser apenas implícito, desde que não incerto'. Ora, implicitamente, todas as autorizações legislativas contidas no Orçamento de Estado vigoram até ao final do ano civil a que o Orçamento diz respeito, como o próprio Tribunal Constitucional já estabeleceu: 'sendo a lei do orçamento constituída por múltiplos preceitos, todos eles visando a definição pelo período de um ano da política económico-financeira do Estado, e formando por isso um corpo normativo unitário, é evidente que o horizonte temporal de tal lei, delineado no art. 108º, n.º1, da C.R.P., caracteriza, à partida, todas e cada uma das suas normas.' (Acórdãos n.ºs 280/86 e 281/86, publicados no DR, IIª Série, de 7 de Janeiro de 1987, ambos transcrevendo o Acórdão 131/85, DR, IIª Série, de 24 de Julho de 1985; cfr. também o Acórdão n.º 1/89, DR, IIª Série, de
11 de Abril de 1989, onde, remetendo-se para J.M. Cardoso da Costa, 'Sobre as autorizações legislativas na Lei do Orçamento', Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, separata do número especial dos Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Teixeira Ribeiro, 1981, se reafirmou a jurisprudência que considera 'válidas as autorizações legislativas sem prazo explícito constantes da Lei do Orçamento, já que a sua duração resulta implícita e automaticamente do carácter anual da Lei do Orçamento.'). Poderia ainda pôr-se em causa esta posição com o argumento de que ela antecede no tempo a introdução do n.º 5 do artigo 168º (actual n.º 5 do artigo 165º) da Lei Fundamental, segundo o qual 'as autorizações concedidas ao Governo na lei do Orçamento observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam'. Ora, tal n.º 5 veio clarificar o regime das autorizações legislativas previstas na lei orçamental, contendo dois segmentos normativos: o primeiro, que vale para todas as autorizações aí concedidas ao Governo, sujeita-as ao regime previsto nos n.ºs 2, 3 e 4 (sem prejuízo, pois, da possibilidade de o prazo ser, mesmo para essas autorizações, como para as restantes, implícito); o segundo, que vale só para as autorizações concedidas na lei orçamental ao Governo sobre matéria fiscal, dispõe sobre a caducidade das autorizações (nos casos previstos no n.º
4), dispondo que elas 'só caducam no termo do ano económico a que respeitam'. Esta especialidade quanto à caducidade das autorizações legislativas em matéria fiscal constantes da lei do orçamento justifica-se, nas palavras de J. M. Cardoso da Costa ('Sobre as autorizações legislativas da lei do orçamento', Estudos em homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, vol. III, pág. 435), 'porque a sua inserção em tal documento (e no seu contexto) as reveste do mesmo significado material desse diploma; porque, sendo assim, elas representam elementos programáticos integrantes da política financeira globalmente definida pela Assembleia da República para o ano económico; e por, nestas condições, elas não podem, ao fim e ao cabo, ser havidas como autorizações concedidas a «um Governo» determinado (...) mas antes só como autorizações concedidas «ao Governo» sem mais'. Depois de 1989, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., cit., pág. 680, anot. XXXII ao artigo 168º, referem como justificação desta especificidade 'o princípio de que tais autorizações são solidárias com o orçamento por serem normalmente imprescindíveis à sua execução'. Assim sendo, não se afigura legítimo um argumento a contrario, para as autorizações legislativas contidas na lei do orçamento que não incidam sobre matérias fiscais, no sentido de estas terem de prever expressamente o seu prazo de duração. Tal argumento a contrario, como o tirado a partir do n.º 5 do artigo
168º (actual artigo 165º) pelo recorrente – a autorização legislativa em causa não versa sobre matéria fiscal, logo tem de prever expressamente um prazo de duração – não corresponde, nem histórica, nem teleológica nem sistematicamente ao sentido desse n.º 5. Deste resulta, em conformidade com a sua razão de ser, um regime diferenciado em matéria de caducidade, para o caso de se verificar alguma das situações previstas no n.º 4 (que haja demissão do Governo, cesse a legislatura ou seja dissolvida a Assembleia da República), que, esse sim, não vale para as autorizações da lei do orçamento sobre as restantes matérias. Todavia, mantém-se, mesmo para as autorizações legislativas que não incidam sobre matéria fiscal, a possibilidade de o prazo de duração ser implicitamente fixado, resultando, designadamente, da inclusão da autorização na Lei do Orçamento. Pode, pois, dizer-se, para as autorizações legislativas contidas na lei do orçamento, que 'o facto de não estar explicitado na norma de autorização o prazo de utilização respectivo não infirma a circunstância de o mesmo resulta inequivocamente do carácter anual da lei em que formalmente a mesma se encontra inserida. O prazo de utilização das autorizações legislativas orçamentais é o que constitucionalmente previsto corresponde à vigência da Lei do orçamento'
(Isabel Morais Cardoso, 'Autorizações legislativas na lei do orçamento', in XX aniversário do Provedor de Justiça – Estudos, Lisboa, 1995, pág. 131 – e cfr. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo V – Actividade constitucional do Estado, Coimbra, 1997, págs. 324-5). Conclui-se, pois, que a sujeição de tais autorizações às regras dos n.ºs 2 e 3 do artigo 168º (actual artigo 165º) não põe em causa uma definição implícita de um prazo para a utilização da autorização legislativa (seja ela sobre matéria fiscal ou não, porque aí a Constituição não distingue), indo tal prazo até ao fim do ano civil a que a lei orçamental respeita, nem sendo essa definição contrariada pelo disposto no n.º 5 do mesmo artigo para as autorizações legislativas em matéria fiscal.
7. Quanto à segunda questão – a da inexistência de um conteúdo mínimo definidor do sentido da autorização legislativa concedida, na medida em que não permitiria, numa das fórmulas retiradas da jurisprudência constitucional
(designadamente do Acórdão n.º 358/92, publicado no DR, Iª Série A, de 26 de Janeiro de 1993) 'a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados' –, pode, desde logo, invocar-se o lugar paralelo do Acórdão deste Tribunal n.º 523/97 (publicado no DR, IIª Série, de 21 de Outubro de 1997), onde, igualmente a propósito de uma autorização legislativa 'no prosseguimento da via de aperfeiçoamento e modernização do regime jurídico da função pública', e a propósito, também, da 'definição do estatuto do pessoal dirigente da Administração Pública', se entendeu que 'a normação sindicada decorre da filosofia e da letra da autorização legislativa'. Acresce, porém, que, no caso ora em apreço, do que se tratou foi de dar expressão legislativa a uma interpretação da lei vigente já aplicada pelos tribunais (v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Fevereiro de 1993 – anterior, portanto, ao decreto-lei autorizado, embora só posteriormente publicado, em apêndice ao DR, de 14 de Agosto de 1996, pág. 662). E acresce ainda que, no momento da publicação – e até da aprovação em Conselho de Ministros – do Decreto-Lei n.º 34/93, tal entendimento já valia, por força do disposto no n.º 1 do artigo 40º da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Lei Orgânica do Ministério Público), como interpretação oficial, em resultado da homologação, por despacho de 26 de Junho de 1992, da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 61/91 (publicado no DR, IIª Série, de 26 de Novembro de 1992).
É certo que se pode invocar que esse foi o sentido fixado, mas que não se sabia se o seria ou não, podendo, a partir do texto da autorização legislativa, ter-se consagrado claramente outra solução. E, por essa via, poder-se-ia ser tentado a diagnosticar a falta de um limite interno à autorização legislativa em causa, com 'as indicações necessárias quanto à delimitação da matéria e quanto aos critérios de valoração do regime a adoptar ao abrigo da delegação, em termos susceptíveis de permitirem quer a utilização desses poderes pelo legislador delegado, quer o controlo da forma de exercício desses mesmos poderes' (itálicos aditados ao texto, transcrito do Acórdão n.º 358/92). Simplesmente, como aí se referia, citando opiniões doutrinárias nesse sentido, a decisão competia ao legislador, que não poderia 'transferir o essencial dessa decisão para a entidade que emite o decreto' – e por isso se usavam as expressões de 'legislador delegante' e 'legislador delegado', cabendo naturalmente ao primeiro as opções a tomar. Ora, tendo em conta que a anterior alínea v) do n.º 1 do artigo 168º (actual alínea t) do n.º 1 do artigo 165º) da Constituição só reservava para o legislador parlamentar a matéria das 'bases do regime e âmbito da função pública' (v. os Acórdãos n.ºs 78/84, 142/85, 190/87, e 340/92, publicados no DR, respectivamente, II série, de 11 de Janeiro de 1985 e de 7 de Setembro de 1985, I série, de 2 de Julho de 1987, e II série, de 17 de Novembro de 1992, no sentido que tal reserva inclui apenas 'o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais' da regulamentação da função pública'; v. também, sobre o sentido da reserva de lei circunscrita às 'bases' de um regime jurídico, o Acórdão n.º 494/99, in DR, II série, de 1 de Setembro de 1999), o que há que concluir é que a intervenção do legislador governamental, circunscrita e limitada como o foi, não interferiu na área de reserva da Assembleia da República, e, portanto, não carecia sequer de credencial parlamentar habilitante. A inclusão da norma da alínea d) do n.º 1 do artigo 5º no Orçamento do Estado poderá, assim ter ficado a dever-se ao efeito de inércia do pedido de autorização para aprovar o Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro – que, pela sua extensão e amplitude podia ser incluído na área de competência reservada –, e à tendência para, por via de cautela, só introduzir alterações em diplomas editados ao abrigo de autorização legislativa mediante nova autorização legislativa, mesmo em casos em que se requer a autorização inicial é apenas a regulamentação do todo – o conjunto de opções que modelam o regime –, e mesmo quando as sucessivas intervenções se fazem a propósito de particularismos diversos, sem interferir com os princípios fundamentais ou as opções de fundo do regime previamente aprovado (como foi, patentemente, o caso). No mesmo sentido, aliás, pode ver-se o citado Acórdão n.º 142/85, onde, designadamente, se escreveu o seguinte:
'[...] o que a reserva do artigo 168º, n.º 1, alínea u), implica, sim, é a necessidade de, a partir dos numerosos e dispersos textos legais reguladores da função pública, e sem, naturalmente, perder de vista o respectivo contexto, maxime institucional e histórico, averiguar e estabelecer as linhas de força estruturais dessa regulamentação, os princípios básicos que a informam e caracterizam, pois aí se situará a linha de fronteira entre o que pertence e o que não pertence à competência legislativa exclusiva da Assembleia da República. Nessa competência entrará só – como é óbvio – o que contenda com aqueles princípios, por importar a sua substituição, modificação ou derrogação; sobre tudo o mais, poderá o Governo legislar sem necessidade de qualquer autorização prévia. Numa palavra, e para nos servirmos de uma consabida distinção, dir-se-á: a reserva parlamentar inclui apenas o que tenha a natureza de uma regulamentação de princípio, por constituir, ou coenvolver uma redefinição de ‘princípios jurídicos’; a emissão de normas que não briguem com esses princípios, mas representem apenas uma diferente modelação ou concretização delas, essa encontra-se o Governo habilitado a fazê-la autonomamente.' Uma vez que o direito ao provimento dos funcionários não oriundos de carreiras ou corpos especiais não foi alterado, e que o direito ao provimento dos funcionários oriundos destas carreiras ou corpos, na sequência do desempenho de cargos dirigentes, só o foi no sentido – já anteriormente julgado necessário por alguma jurisprudência e transformado em 'interpretação oficial' por homologação do Parecer, nesse sentido, do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República – de o tornar dependente da verificação dos requisitos especiais de acesso previstos nas respectivas leis reguladoras, há-de concluir-se que a intervenção do legislador não buliu minimamente com a regulamentação de princípio já aplicada e, portanto, não interferiu minimamente com as 'bases do regime e âmbito da função pública', situadas na área de reserva da Assembleia da República (constituindo a autorização legislativa incluída no Orçamento do Estado, pois, apenas um excesso de forma).
8. O que acaba de dizer-se prejudica igualmente a terceira questão – aliás não suscitada pelo recorrente, embora tratada pela decisão recorrida –, que é a da aprovação do diploma 'habilitado' em sessão do Conselho de Ministros ocorrida no
último dia do prazo de vigência da norma de autorização: 31 de Dezembro de 1992. Na verdade, não havendo verdadeira necessidade de autorização parlamentar, a aprovação do Decreto-Lei n.º 34/93 podia ter tido lugar a qualquer momento. De todo o modo, e como bem ajuizou a decisão recorrida, o entendimento do Tribunal Constitucional tem sido o de que basta que tenha lugar a aprovação em Conselho de Ministros para se ter por executada a autorização legislativa (cfr. Acórdãos n.ºs 156/92, 386/93 e 672/95, publicados, respectivamente, no DR, IIª Série, de 28 de Julho de 1992, de 2 de Outubro de 1993 e de 20 de Março de
1996).
9. Resumindo e em conclusão: porque na situação em causa, posterior a 1993, não chegou a haver uma aplicação do direito anterior ao Decreto-Lei n.º 34/93, não há que tomar conhecimento da questão da natureza interpretativa da alteração introduzida no artigo 18º do Decreto-Lei n.º 323/89 pelo Decreto-Lei n.º 34/93; porque não existe um direito à não alteração do quadro legal que lhe seria eventualmente aplicado no futuro, não se pode atender à invocada violação do princípio da confiança, sendo certo, aliás, que a interpretação aplicada era já defendida por alguma jurisprudência e em Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República; porque a intervenção legislativa do Governo não invadiu a área de reserva da Assembleia da República, não carecia de autorização legislativa (ainda que esta tivesse sido concedida com delimitação do seu objecto, extensão e, implicitamente, duração, e a regulamentação aprovada a tenha invocado).
III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita, e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 9 de Fevereiro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa