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Proc. nº 481/97
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
A - RELATÓRIO
1. Por despacho de 3 de Fevereiro de 1997, o Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca da Guarda deduziu acusação contra A. C. e outros, sendo o primeiro acusado da prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punido pelo artigo 16º, nº 1, alíneas a) e b) da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, com referência ao disposto no artigo 26º, nº 7, alíneas a) e b) do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 2º e 17º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, e 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro.
Requereu o Ministério Público, desde logo, que fossem aplicadas ao arguido A. C. as medidas de coacção consistentes na prestação de caução no montante de 20.000.000$00, suspensão do exercício das funções de presidente da câmara, e proibição de se ausentar para o estrangeiro.
Admitida a instrução requerida pelos arguidos, o Mmº Juiz, por despacho de 21 de Março de 1997, impôs ao arguido A. C. a medida de obrigação de prestação de termo de identidade e residência e de prestação de caução no montante de 20.000.000$00, nos termos dos artigos 193º e 197º do Código de Pocesso Penal, além da obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, nos termos do artigo 200º, nº 1, alínea b), do CPP; e, por fim, considerando que os crimes indiciados teriam sido praticados no exercício das funções de presidente da Câmara Municipal de ..., ou por causa desse exercício, ordenou ainda a suspensão dessas mesmas funções pelo arguido, nos termos do disposto nos artigos
193º, 194º e 199º, nº 1, alínea a), do CPP.
2. O arguido A. C. interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Coimbra. Na respectiva motivação, suscitou a questão de inconstitucionalidade do artigo 199º do CPP, por violação dos artigos 120º e
121º da Constituição e formulou as seguintes conclusões:
C - Em concreto, o problema reside em saber se o conceito de 'função pública', inserto no art. 199º do CPP, comporta ou não o cargo de presidente da câmara municipal.
D - 'Uma das categorias integrantes da noção constitucional de cargos públicos são os cargos políticos (CRP, arts 120º e 121º) normalmente de carácter electivo, entre os quais se contam naturalmente os titulares dos órgãos do poder local, como expressamente decorre do art. 121º da CRP.
E - Revisto o elenco dos cargos políticos e tomando como referência os exemplos das Leis 4/83, de 2-4, e 34/87, de 16-7, e a Constituição (art.
249º), a conclusão a tirar é segura: à face da Constituição, o posto de Presidente da Câmara Municipal constitui um cargo político e não uma função pública (sublinhado dos signatários).
F - Também à face do direito penal não pode deixar de se estabelecer uma clara distinção conceitual entre as figuras da função pública e funcionário público, por um lado, e cargo político e titular de cargo político. O cargo de presidente da câmara municipal cabe indubitavelmente na categoria dos titulares de cargos políticos (assim expressamente o art. 3º da lei n.º 34/87); está por isso excluído do conceito de funcionário público, por mais abrangentemente que este fosse definido.
Por isso, as disposições penais respeitantes aos funcionários públicos não se aplicam, salvo equiparação expressa, aos titulares dos cargos políticos' (sublinhado dos signatários).
G - «O Juiz não pode aplicar aos arguidos titulares de cargos políticos, de natureza electiva ou não, a suspensão de funções com fundamento em que a sua condenação implica perda do cargo ou demissão»
H - Além de que na situação sub judice não pode aplicar-se por analogia uma medida de coacção aplicável a funcionário público. Acresce que a suspensão do exercício de um cargo político não é equiparável à suspensão do exercício da função pública.
I - À face da Constituição, o posto de presidente da câmara municipal constitui um cargo político e não uma função pública pelo que tal cargo não pode ser incluído no conceito de função pública utilizado no art. 199º do CPP.
J - Porque o despacho recorrido inclui em tal conceito o cargo de presidente da câmara ordenando a suspensão do respectivo mandato como medida coactiva viola o disposto nos arts 120º e 121º da CRP e art. 199º do CPP, por tal interpretação não ser conforme à Constituição nem aos indicados conceitos e normas.
K - A inconstitucionalidade da norma do art. 199º do CPP resulta da violação expressa dos arts 120º e 121º da CRP, e ainda da interpretação analógica (que os princípios da legalidade e da tipicidade proíbem) de que o despacho recorrido se socorre na aplicação de tal dispositivo.
E juntou aos autos parecer do Prof. Vital Moreira, no qual este jurista formulou as seguintes conclusões:
1ª - O art. 199º do CPP só permite a suspensão do exercício de funções públicas;
2ª - No nosso direito (constitucional, administrativo, penal) existe uma clara distinção entre o exercício de funções públicas e o exercício de cargos políticos;
3ª - Em especial o art. 386ª do Código Penal, apesar do conceito amplo de funcionário público, que é tradicional no direito penal, exclui explicitamente os titulares de «funções políticas»;
4ª - De resto, a responsabilidade penal dos titulares de cargos políticos enquanto tais encontra-se regulada numa lei especial, a Lei n.º 34/87, de 16-7, pelo que não se verifica nenhuma equiparação deles aos funcionários públicos;
5ª - Os membros dos órgãos autárquicos são naturalmente titulares de cargos políticos, como de resto decorre da referida Lei n.º 34/87, uma entre várias outras que definem o estatuto jurídico especifico dos titulares de cargos políticos;
6ª - Desse modo, os presidentes da câmara municipal não podem ser suspensos das suas funções autárquicas, por falta de credencial legal para essa grave medida de coacção;
7ª - De resto, essa solução é tudo menos incongruente ou injustificável, estando a sua ratio legis na preocupação de proteger o titulares de cargos políticos perante medidas cautelares, que podem prejudicar irremediavelmente o cumprimento do mandato popular.
3. Na sua resposta àquela motivação de recurso, o Ministério Público concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em causa e pela sua plena aplicabilidade ao caso. Aí afirmou:
É o próprio art.º 120º da Lei Constitucional que nos diz responderem, os titulares de cargos políticos, civil e criminalmente em conformidade com o que a lei ordinária dispuser e determinar.
Ora,
Como vimos, a lei ordinária -'maxime' os artºs 191º e segts do C. P. Penal; 66º, 67º, 69º e 437º do C. Penal de 1982; 66º, 67º e 386º do C. Penal, na revisão de 1995 e 32º da Lei 34/87, de 16 Julho – dispunha e determinava, dispõe e determina, consoante as situações e verificados os respectivos pressupostos, a aplicação das leis do processo penal, nomeadamente no que tange às medidas de coacção, aos titulares de cargos políticos.
De modo que,
A medida coactiva de suspensão do exercício de funções a que alude o artº 199º nº 1 al. a) do C. P. Penal aplicada ao arguido, 'porque a interdição do exercício respectivo' pode vir a ser 'decretada como efeito do crime imputado', é legal – nota 2 do citado artº, in Código de Processo Penal, Anotado, 3ª edição de 1990, pág. 296, do Exmo Conselheiro Maia Gonçalves.
Já na Relação de Coimbra, o Ministério Público elaborou parecer no sentido do improvimento do recurso.
4. Por acórdão de 25 de Junho de 1997, a Relação negou provimento ao recurso. Entendeu-se nesse aresto, e no que ao conceito de funcionário público concerne, distinguindo-o nomeadamente do conceito de agente administrativo, o seguinte:
Ao utilizar o conceito de organização do poder político (em vez do conceito tradicional de organização do Estado) e ao abranger nele realidades como os Tribunais, as Forças Armadas e a Administração Pública, a Constituição quer significar que a parte organizatória é globalmente a organização em sentido amplo o que implica a)-abandono da tradicional concepção restrita da Constituição como estatuto jurídico formal do Estado instituição ou Estado pessoa colectiva b)-Transferência para a esfera política, constitucionalmente relevante de aparelhos de Estado tradicionalmente relegados para o domínio extraconstitucional (v. g. Administração Pública; forças de segurança).
É nessa perspectiva, e em termos constitucionais, que a parte organizatória não regula apenas a organização do político, mesmo no sentido amplo que se acaba de assinalar. A organização do Estado-colectividade engloba vários domínios da vida social hoje em dia considerados como reentrantes no
âmbito do público. É o caso de grupos e associações que além de constituírem formas de auto-organização da própria sociedade projectam a sua relevância na organização constitucional da poder político. Situando-se num plano intermédio entre o Estado e a sociedade várias organizações encontram guarida na parte organizatória da Constituição.
O sentido constitucional desta concepção extensa da organização do poder político – ordem global do público e do político – é uma nova manifestação da tentativa de conferir maior transferência constitucional ao sistema político real (Vital Moreira e G. Canotilho Fundamentos da Constituição pág. 179 e seg.)
*
Por seu turno a definição constitucional do conceito de função pública suscitou alguns problemas dada a diversidade de sentido com que as leis ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defendidos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde ao sentido amplo da expressão em direito administrativo designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado; região autónoma; autarquia local etc.) qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho) e independentemente do seu carácter provisório ou definitivo, permanente ou transitório. (Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Anotada pág. 264 e seg.)
Temos, assim, por adquirido que o conceito de funcionário em termos penais assume hoje um significado lato indo ao encontro da perspectiva constitucional mais lata do exercício da função pública.
Para assim concluir:
Igualmente é certo que á instrução e julgamento dos crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos aplicam-se as regras gerais do processo nos termos do artigo 32 da Lei 34/87.
E nos termos da mesma Lei não se vislumbra motivo para não se aplicar o disposto no artigo 199 do C. P. P. àquele que exerce funções de Presidente da Câmara partindo do duplo pressuposto que o mesmo exerce uma função pública e, para além disso, que o conceito de funcionário insíto do Código Penal abrange aqueles que exercem tais funções públicas.
A única diferença face ao regime estabelecido naquela Lei (artigos 32 a 38) é o de que em relação aos titulares dos cargos ali enumerados o seguimento do processo depende do facto de o respectivo órgão ter decidido a suspensão das suas funções. Se o processo só pode seguir após aquela suspensão é evidente que em relação aqueles titulares não tem sentido falar na medida de coacção consubstanciada na suspensão do exercício de funções.
Tal não acontece porém, em relação ao exercício das funções de Presidente da Câmara.
Assim, o acórdão retirou desses fundamentos a conformidade constitucional da interpretação dada ao artigo 199º do CPP «integrando no conceito de função pública o cargo político de Presidente da Câmara».
5. Inconformado, o recorrente interpôs então recurso desse aresto para o Tribunal Constitucional, tendo por objecto a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 199º do CPP, interpretada no sentido de abranger no conceito de função pública o cargo político de presidente da Câmara Municipal, por violação dos artigos 50º, nº 1, 120º e 121º da Constituição da República Portuguesa.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, tendo o recorrente juntado alegações, na fundamentação das quais acompanhou o citado parecer do Prof. Vital Moreira, do qual juntou nova cópia, considerando ser essencial para a questão de inconstitucionalidade suscitada a distinção entre
«função pública» e «cargo público», tal como desenvolvida e explicitada nesse parecer.
E prosseguiu assim para a conclusão de inconstitucionalidade do artigo 199º do CPP, «na medida em que passou a abranger os titulares de cargos electivos», pois que «uma das razões que impediam tal entendimento era precisamente o facto de ele ir afrontar a protecção constitucional do direito de acesso aos cargos públicos». Desenvolveu o seu pensamento pela forma seguinte:
33. O preceito legal só se refere aos funcionários públicos exactamente porque não poderá abranger também os titulares de cargos públicos, sob pena de inconstitucionalidade.
34. Na verdade, a situação é qualitativamente diversa, dado que a suspensão do exercício de um cargo político não é equiparável à suspensão do exercício da função pública. De facto, a inadmissibilidade da suspensão de cargos políticos a título de medida de coacção é tudo menos justificável ou irrazoável. A 'imunidade' dos titulares de cargos políticos face à referida medida de coacção tem plena justificação, sobretudo quando se trata, como é o caso, de cargos electivos. A razão de ser desse tratamento especial está justamente no facto de se tratar de cargos representativos, directa ou indirectamente saídos do sufrágio popular.
35. Pela mesma razão também seria inconstitucional aplicar aos titulares de cargos públicos o art. 6º do Estatuto Disciplinar da função pública, constante do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16-1, que prevê a suspensão automática do exercício da função por defeito do despacho de pronúncia em processo penal. Na verdade, tal estatuto disciplinar aplica-se explicitamente somente aos funcionários públicos (art. 1º do referido diploma) a que acrescem os titulares dos órgãos dirigentes dos institutos públicos (art. 2º), não havendo nenhuma razão para o estender aos titulares de cargos políticos, que não se encontram sujeitos a nenhuma relação de sujeição hierárquica ou de subordinação equiparada, que é condição da relação disciplinar.
[...]
37. A lógica do entendimento restritivo está em não permitir que um mandato emergente da soberania popular seja suspenso ou preterido senão a título de pena, em virtude de sentença condenatória definitiva por crimes praticados no exercício de funções. Na realidade, dificilmente seria congruente com a pertinência do princípio democrático que o exercício do mandato popular pudesse ser suspenso a titulo de medida cautelar ou preventiva em processo penal, ainda para mais antes mesmo da pronúncia definitiva pela prática de um crime. No caso concreto, trata-se de um titular de órgão do poder local, mas a situação não é diferente da que se suscitaria a propósito de qualquer outro titular de cargo político, desde o Presidente da República até ao Governador Civil, passando pelos Deputados da Assembleia da República ou membros do Governo de Portugal ou qualquer outro dos cargos constantes da lista dos cargos políticos da Lei n.º
34/87 (art. 3º), tornando-se patente que o exercício desses cargos não deve ser suspenso por via de medidas cautelares, como se de comuns funcionários públicos ou agentes administrativos se tratasse.
38. É por essa mesma razão que também no âmbito do controle da legalidade administrativa da acção dos órgãos autárquicos, no quadro da tutela sobre autarquias (Lei n.º 87/89, de 9-9), tão pouco se prevê a possibilidade de suspensão das decisões ou acções de perda de mandato. Ressalvados os casos de verificação de inelegibilidades supervenientes, ou de perda de mandato por faltas, o mandato electivo autárquico só cede perante uma acção contenciosa de perda de mandato em consequência da verificação dos actos ilícitos previstos na lei. Diferentemente dos funcionários públicos, que estão sujeitos ao poder disciplinar do superior hierárquico – o qual, entre outras coisas, pode envolver a suspensão preventiva de funções, em sede de processo disciplinar – os titulares de cargos políticos, esses, não estão sujeitos a poder disciplinar mas antes, quando muito, ao poder tutelar, o qual, entre nós, no caso da administração autárquica local, consiste somente no controlo da legalidade (e não de mérito) e não consente medidas administrativas de demissão ou de dissolução, por parte da entidade tutelar (ao contrário do que sucedia no domínio da Constituição de 1933 e do Código Administrativo de 1940).
39. Em qualquer dos casos – tanto no domínio da responsabilidade penal, como no domínio da tutela administrativa – para haver afastamento do cargo político autárquico exige-se uma decisão judicial condenatória definitiva, não cabendo uma medida cautelar, seja administrativa seja judicial. Admitir a suspensão preventiva do exercício das funções electivas, ainda que por decisão judicial, traduzir-se-ia necessariamente no perigo de impedir o cumprimento de um mandato político por factos que no final podem provar-se inconcluentes ou irrelevantes para fundamentar uma pena de perda de mandato.
40. Aliás, a função que a suspensão do exercício de funções políticas podia ter como medida preventiva pode em geral ser suprida por outras medidas de coacção; mas uma tal suspensão causaria sempre prejuízos irreparáveis ao mandato popular assim interrompido, dado o seu carácter temporário. Entre manter em funções uma autarca contra o qual haja indícios de ter cometido um crime em funções susceptível de perda de mandato e admitir que um autarca possa ser suspenso durante um longo período em virtude de acusações de que depois possa vir a ser inocentado, um entendimento conforme à Constituição deve optar inequivocamente pela primeira situação, enjeitando as medidas preventivas de suspensão, que se revelam manifestantes desnecessárias e desproporcionadas para efeitos de processo penal, face ao valor constitucional em causa.
41. A exclusão da suspensão preventiva de funções constitui seguramente um dos «direitos, regalias e imunidades» que constitucionalmente cabem aos titulares de cargos políticos, para garantia e segurança dos seus mandatos (CRP, art. 117º-2).
42. Em conclusão, à face da Constituição, o posto de presidente da câmara municipal constitui um cargo político e não uma função pública, pelo que tal cargo não pode ser incluído no conceito de função pública utilizado no art.
199º do CPP.
43. Porque o despacho recorrido inclui em tal conceito o cargo de presidente da câmara, ordenando a suspensão do respectivo mandato como medida coactiva, adopta uma interpretação que viola o disposto no art, 50º, n.º 1 e
117, n.º 2 da CRP, por, conforme o supra exposto, tal interpretação da norma subjacente não ser conforme à Constituição nem aos indicados conceitos e normas.
6. Por sua vez, o MP concluiu, nas respectivas contra-alegações, pela conformidade constitucional da norma indicada. Apoiou-se, nomeadamente, no parecer da Procuradoria-Geral da República publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Outubro de 1991, no processo nº 126/90, no qual se concluiu «que a suspensão de exercício de funções de titular de órgão de autarquia local pode ser decretada, como medida de coacção nos termos do artigo 199º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando se revele adequada e proporcionada às finalidades do processo, em caso de crime de responsabilidade, previsto na Lei nº 34/87, de 16 de Julho, punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos».
E, referindo-se ao nº 2 do artigo 117º da Constituição, afirmou ainda o Ministério Público:
Nesse nº 2 consagra-se uma imposição legiferante (a lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, bem como sobre os respectivos direitos, regalias e imunidades).
Todavia, até à data, essa lei ainda não foi editada, e, sem ela, nada autoriza a afirmação do recorrente. E o mesmo se dirá quando confrontada com o que a Constituição prevê quanto a imunidades dos deputados no artigo 160º, nº 3:
«Movido procedimento criminal contra algum Deputado, e acusado este definitivamente, salvo no caso de crime punível com a pena referida no número anterior [pena de prisão superior a três anos], a Assembleia decidirá se o Deputado deve ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo».
Preceito constitucional que mostra também que, ao contrário do que sustenta o recorrente, não pode justificar-se a inadmissibilidade da suspensão de cargos políticos a título de medida de coacção no caso de se tratar de cargos electivos (a razão de ser do tratamento especial que preconiza residiria na circunstância de se tratar de cargos representativos, directa ou indirectamente saídos do sufrágio popular).
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
7. O artigo 199º do Código de Processo Penal é do seguinte teor:
Artigo 199º
(Suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos)
1. Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida legalmente cabida, a suspensão do exercício:
a) Da função pública;
b) De profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública; ou
c) Do poder paternal, da tutela, da curatela, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito, sempre que a interdição do exercício respectivo possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
2. A suspensão é comunicada à autoridade administrativa, civil ou judiciária normalmente competente para decretar a suspensão ou a interdição respectivas.
A norma cuja inconstitucionalidade vem questionada nos presentes autos é, assim, a constante da alínea a) do nº 1 do preceito transcrito, na interpretação a ela dada no acórdão recorrido, no sentido de aí abranger – ou, mais concretamente, de abranger na expressão «função pública» utilizada pelo normativo em questão – os titulares de cargos políticos electivos – recte, os titulares de órgãos autárquicos -, assim permitindo a aplicação aos mesmos, em processo penal, da medida de coacção consistente na suspensão do exercício do respectivo mandato.
Para o recorrente, e apoiando-se no parecer do Prof. Vital Moreira, o conceito de «função pública» constante daquela norma não pode abranger o cargo de presidente da câmara, por se tratar de um cargo político. Como se pode ler no citado parecer:
Com efeito, os titulares de cargos públicos, designadamente os cargos políticos, não estão inseridos em nenhuma relação de emprego, são providos por via eleitoral ou por designação livre de outro titular do poder político, têm um mandato temporário, não estão sujeitos a uma relação hierárquica nem a poder disciplinar. A sua responsabilidade funcional é uma responsabilidade política, perante o eleitorado que os elegeu ou perante o órgão que os designou.
Como salienta aquele ilustre constitucionalista, a Lei Fundamental distingue claramente entre função pública e cargos públicos (cfr. artigos 47º e
50º), referindo-se o artigo 117º (artigos 120º e 121º, na versão anterior à Lei Constitucional nº 1/97) especificamente aos cargos políticos, aí se incluindo o de presidente da câmara municipal.
Concluindo pela diferença de regimes entre funcionários públicos e titulares de cargos políticos, e encontrando-se o regime relativo aos crimes de responsabilidade cometidos por estes últimos no exercício das respectivas funções regulado pela Lei nº 34/87, de 16 de Julho (nos termos do disposto naquele artigo 117º da Constituição), nota-se ainda, naquele parecer, que essa Lei nº 34/87, «apesar de prever como efeito da pena sempre a destituição do cargo ou a perda do mandato (arts. 28º ss), não estabeleceu nenhum regime específico de medidas processuais coactivas, nomeadamente através da suspensão do exercício do cargo político em causa», e que «não pode haver medidas de coacção lá onde a lei as não prevê». Daí decorre, sempre segundo o referido parecer, a inaplicabilidade do artigo 199º do CPP aos titulares do cargo de presidente de câmara. E prossegue o seu raciocínio:
A imunidade dos titulares de cargos políticos face à referida medida de coacção tem plena justificação, sobretudo quando se trata, como é o caso, de cargos electivos. A razão de ser desse tratamento especial está justamente no facto de se tratar de cargos representativos, directa ou indirectamente saídos do sufrágio popular.
A lógica da situação legislativa está em não permitir que um mandato emergente do mandato popular seja suspenso ou perdido senão a título de pena, em virtude de sentença condenatória definitiva por crimes praticados no exercício de funções. Na realidade, dificilmente seria congruente com a preeminência do princípio democrático que o exercício de um mandato popular pudesse ser suspenso a título de medida cautelar ou preventiva em processo penal, ainda para mais antes mesmo da pronúncia definitiva pela prática de um crime.
8. Efectivamente, adiante-se já, é esta a única interpretação que se afigura correcta do ponto de vista da sua conformidade constitucional.
Não se pode entender, como o faz a decisão recorrida, que o conceito de funcionário «em termos penais assume hoje um significado lato indo ao encontro da perspectiva constitucional mais lata do exercício da função pública», uma vez que a Lei Fundamental diferencia de forma clara o regime da função pública daquele próprio dos titulares de cargos políticos, não decorrendo do texto constitucional o pretendido conceito amplo de função pública.
Aliás, o próprio Código Penal dispõe, no nº 3 do artigo 386º que «a equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial», assim assumindo aquela diferenciação. Logo, não se pode entender que do Código Penal decorre - ou que este adopta - um conceito lato de funcionário, capaz de abranger os titulares de cargos políticos, pois o que expressamente dele decorre é antes a exclusão dessa
«equiparação», remetendo-a para lei especial quando deva ocorrer.
Por outro lado, mal se entenderia a pretendida exclusão dos titulares de cargos autárquicos - nomeadamente dos presidentes de câmara - desse regime especial, face a todos os restantes titulares de cargos políticos, não encontrando tal opção qualquer assento constitucional.
Como assinalam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, págs. 541-542, nota I ao artigo 120º - a que corresponde o actual artigo 117º):
O objecto deste preceito é o estatuto dos titulares dos cargos políticos (cfr. epígrafe). A densificação do conceito «cargos políticos» (também utilizado no art. 121º), que tem uma extensão e intensão diferente da de «cargos públicos» (art. 50º), apresenta algumas dificuldades. Não se afigura, porém, difícil delimitar negativamente o conceito. Primeiro, não se identificam titulares de cargos políticos com titulares de órgãos de soberania; por um lado, estes últimos abrangem os titulares da função jurisdicional, que parece não devem considerar-se titulares de cargos políticos; por outro lado, os cargos políticos não se resumem aos órgãos de soberania, visto que do art. 121º decorre que os cargos políticos não têm de ser estaduais, podendo ser cargos das regiões autónomas ou do poder local. Titulares de cargos políticos também não são só aqueles que têm um estatuto constitucionalmente definido de imunidades e prerrogativas; estas só vêm definidas quanto aos titulares de alguns órgãos de soberania, sendo inequívoco que nem só eles são titulares de cargos políticos. A noção que melhor parece corresponder à razão de ser deste preceito constitucional é aquela que considera cargos políticos todos aqueles aos quais estão constitucionalmente confiadas funções políticas.
E, nesta conformidade, a Lei nº 34/87, que define e regulamenta os crimes de responsabilidade dos titulares de órgãos políticos - em cumprimento do nº 3 do artigo 117º da Constituição - ao elencar os cargos políticos, no seu artigo 3º, refere expressamente, na alínea i), o cargo de
«membro de órgão representativo de autarquia local».
Com efeito, os titulares de órgãos autárquicos são eleitos por sufrágio directo, revestindo também o seu mandato natureza electiva e representativa. E assim foi também reconhecido no citado Parecer da Procuradoria-Geral da República, excluindo por tal via os autarcas do âmbito de aplicação das normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes Administrativos (concretamente, a norma relativa à suspensão de funções e vencimento de funcionário em consequência da prolação e trânsito em julgado de despacho de pronúncia em processo de querela – artigo 6º do mencionado Estatuto).
Como aí se afirmou:
Os titulares dos órgãos deliberativo e executivo das autarquias são eleitos por sufrágio directo pelo colégio eleitoral com a respectiva base territorial; a relação que se constitui nesta designação não releva de qualquer designação funcional, antes devendo ser considerada no âmbito da constituição e efeitos de um mandato político.
Esta relação constitui-se por acto eleitoral; o objecto do decorrente mandato político será o de atribuir àqueles que são investidos nessa relação na sequência da eleição (segundo trâmites processuais próprios) o direito de tomar, em nome da pessoa colectiva, as decisões necessárias à prossecução dos respectivos fins, sem necessidade de serem sancionadas por uma ratificação popular.
A eleição não constitui, porém, uma delegação de poderes, mas um modo de designação da titularidade dos órgãos; os poderes resultam da lei (das atribuições da pessoa colectiva e das competências dos órgãos fixadas na lei), e não dos eleitores, não recebendo, por isso, o titular eleito nem ordens nem instruções do colégio eleitoral.
A relação de mandato político constituída através da eleição tem, quanto aos titulares dos órgãos das autarquias, um conteúdo de inteira independência. Na prossecução das finalidades da pessoa colectiva apenas devem obediência aos imperativos legais, devendo proceder adequadamente à promoção dos interesses públicos que lhes são confiados.
[...]
Salientou-se que, pelo modo de designação e pela natureza do mandato eleitoral, esses titulares são independentes, estão apenas sujeitos à lei e à prossecução do interesse público, não estando subordinados, no domínio do exercício das respectivas competência, a directivas ou instruções de outrem.
Não estão, assim, sujeitos ao exercício de qualquer poder (direcção, superintendência, disciplinar) que pressuponha uma relação de hierarquia, como é o caso do exercício do poder disciplinar considerado e actuado no âmbito do Estatuto.
Este parecer concluiu, assim, pela inaplicabilidade daquele artigo
6º do Estatuto Disciplinar aos titulares de órgãos autárquicos, verificando ainda que os casos de perda de mandato previstos na lei revestem a natureza de
«sanção penal acessória necessariamente ligada a uma condenação por crimes de responsabilidade como tal definidos na respectiva lei». E, face a essa constatação, afirmou-se:
Nestes casos, a decisão é proferida em processo penal (aplicam-se as regras gerais de competência e de processo), sem especialidades – nomeadamente a previsão específica de qualquer suspensão – quanto aos membros de órgão representativo de autarquia local – artigo 32º da Lei nº 34/87.
Não se prevê, pois, como em relação a outros titulares, a possibilidade de suspensão em consequência de algum acto processual, nomeadamente o despacho de pronúncia ou equivalente, transitado em julgado.
No entanto, veio este parecer, seguidamente, a considerar aplicável aos titulares de órgãos autárquicos o artigo 199º do CPP (como salienta o MP nas suas alegações), «quando se revele adequada e proporcionada às finalidades do processo, em caso de crime de responsabilidade», remetendo-a para uma
«ponderação judicial autónoma em face de exigências processuais adequadas», sem que se tenha procedido, todavia, ao escrutínio ex professo da compatibilidade daquela norma geral face às especialidades do regime electivo.
9. Ora, esta pretensa sujeição dos titulares de órgãos autárquicos – in casu, presidentes de câmara - à regra geral do artigo 199º do CPP suscita, desde logo, a questão de saber se uma norma do Código de Processo Penal, constante de um diploma elaborado pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa, pode regular esta matéria sem incorrer em inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea m) do artigo 164º da Constituição, a qual estabelece a reserva absoluta de competência da Assembleia da República relativamente ao estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais eleitos por sufrágio directo e universal.
Com efeito, esta matéria – aplicação de medida de suspensão do exercício do cargo político em processo penal em curso – é indiscutivelmente matéria relativa ao estatuto dos órgãos do poder local. Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa Anotada, cit..., pág. 666):
O âmbito da matéria da alínea l – estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e de vários outros titulares de cargos públicos – surge claramente delimitado por referência aos arts. 113º e 120º [actuais artigos 110º e 117º]. Trata-se de definir o regime de responsabilidade dos titulares dos cargos aí mencionados (nomeadamente da responsabilidade criminal), bem como os deveres, responsabilidades e incompatibilidades e, reciprocamente, os direitos, regalias e imunidades, incluindo o regime das remunerações (mas não necessariamente a fixação do seu montante).
E tanto assim é que, de resto, relativamente aos Deputados à Assembleia da República, essa matéria encontra-se expressamente prevista no respectivo Estatuto (cfr. artigos 4º, 5º, 11º e 20º da Lei nº 7/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei nº 24/95, de 18 de Agosto, pela Lei nº 55/98, de 18 de Agosto e pela Lei nº 45/99, de 16 de Junho).
Com efeito, nos termos do Estatuto do Deputado, a suspensão do mandato pode verificar-se:
- a pedido do interessado dirigido ao Presidente da Assembleia da República (casos a que se refere o artigo 5º, substituição temporária por motivo relevante, nos quais se incluem, além de motivos pessoais do próprio Deputado, ou de actividade profissional inadiável, bem como o exercício de funções específicas no partido, ainda os casos de doença grave, exercício da licença por maternidade ou paternidade);
- para efeitos de exercício de actividade incompatível com a de Deputado (casos a que se reporta o artigo 20º, nº 1);
- ou, enfim, em virtude da ocorrência de procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 11º do mesmo Estatuto.
Nos termos desta última disposição, compete à Assembleia da República, uma vez movido procedimento criminal contra um Deputado e proferida acusação definitiva contra este, decidir se o mesmo deve ou não ser suspenso para efeitos do seguimento do processo, sendo a suspensão obrigatória apenas quando se tratar de crimes dolosos a que correspondam pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos ou em flagrante delito (nº 3). Esta norma reproduz, de resto, o sentido do artigo 157º da Constituição.
A igual regime estão sujeitos os membros do Governo – cfr. artigo
196º do texto fundamental.
Já, porém, o Estatuto dos Eleitos Locais (Lei nº 29/87, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 97/89, de 15 de Dezembro, pela Lei nº 1/91, de 10 de Janeiro, pela Lei nº 11/91, de 17 de Maio, pela Lei nº
127/97, de 11 de Dezembro e pela Lei nº 50/99, de 24 de Junho) é omisso em relação a esta matéria, razão pela qual a Lei das Autarquias (actualmente constante da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro), apenas prevê os casos de suspensão do mandato a pedido do titular, nomeadamente por doença, afastamento da área da autarquia por período superior a trinta dias ou exercício dos direitos de paternidade ou maternidade (cfr. artigo 77º). E o Decreto-Lei nº
100/84, de 29 de Março, com as respectivas alterações, agora revogado pela Lei nº 169/99, mas em vigor à data da prolação do acórdão recorrido, apenas previa igualmente essa suspensão a pedido do titular.
10. É certo que, apesar de a Lei nº 34/87, de 16 de Julho, ao regular a suspensão do mandato dos titulares dos cargos nela enunciados, nada prever para os membros dos órgãos das autarquias locais, o artigo 32º do mesmo diploma determina que «à instrução e julgamento dos crimes de responsabilidade de que trata a presente lei aplicam-se as regras gerais de competência e de processo, com as especialidades constantes dos artigos seguintes».
Daqui retira o Ministério Público, nas suas alegações, que, apesar de não haver regra especial sobre suspensão de mandato dos autarcas no decurso de processo criminal contra eles movido, se aplica de pleno o artigo 199º do CPP. E, aliás, sempre se poderia acrescentar que se essa suspensão estivesse prevista na Lei nº 34/87, ainda que por mera remissão, já se não poderia então falar em violação do artigo 164º da Constituição, uma vez que aquela Lei nº
34/87 é precisamente a lei reguladora dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, matéria que integra o respectivo estatuto jurídico.
Ora, como se assinalou, os artigos 34º a 39º da Lei nº 34/87 dispõem em especial no tocante às regras de processo aplicáveis a outros titulares de cargos políticos, designadamente aos membros de Governo e aos Deputados, reproduzindo aquelas regras já enunciadas relativamente à respectiva suspensão
(a decidir pela Assembleia da República), não dispondo de qualquer norma semelhante para os membros de órgãos representativos das autarquias locais.
Mas daí não decorre necessariamente a conclusão de que aos titulares dos órgãos autárquicos se há-de aplicar o regime geral do CPP, equiparando-os aos funcionários públicos, no que se reporta à suspensão do respectivo mandato como medida de coacção.
O sentido primordial das normas especiais dos artigos 34º e seguintes da Lei nº 34/87 consiste em fazer depender o seguimento do procedimento criminal contra os titulares de órgãos políticos neles indicados da existência de uma prévia decisão política. Ora, é essa imunidade que a Lei nº
34/87 não reconhece aos titulares de órgãos autárquicos.
Por outro lado, se a suspensão de exercício de funções - cuja decisão ou autorização é obrigatoriamente cometida a um órgão político específico – se encontra prevista, em termos especiais, nos mesmos artigos 34º a
39º da Lei nº 34/87, e necessariamente associada à decisão sobre o seguimento do procedimento criminal, tal deve-se ao facto de o legislador ter considerado necessário e conveniente, no que toca a tais titulares de órgãos políticos
(assim, os Deputados ou os membros do Governo), a respectiva suspensão de funções, enquanto contra eles decorra esse procedimento criminal, tendo em consideração a especial repercussão que o mesmo teria relativamente ao exercício dos cargos em causa. É que «tal situação não é compatível com o prestígio da AR e da função de deputado» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit..., pág. 640, nota V ao artigo
160º).
Assim, nos artigos 34º e seguintes da Lei nº 34/87 pretende-se responder à inconveniência que resultaria do exercício de determinadas funções de particular responsabilidade, no quadro nacional, na pendência de processo criminal.
Nesta conformidade, assegura-se uma prévia decisão política relativamente à verificação de tal inconveniência, estando ela hoje tarifada em determinados casos, relativamente aos quais se determina a obrigatoriedade da suspensão do mandato para efeitos de seguimento do processo – é o que se passa com os crimes dolosos a que corresponda pena de prisão superior a três anos ou em que tenha ocorrido detenção em flagrante delito (cfr. artigo 157º da Constituição). Fora estes casos, e como regra geral, a decisão de seguimento do processo, autorizando para tanto a suspensão do mandato do respectivo titular, é confiada à discricionariedade do órgão político. Assim, esta discricionariedade na decisão é de natureza política: não tem que ver com o interesse processual, antes se relaciona com os interesses gerais da comunidade política, designadamente no que se reporta ao decoro que deve revestir o exercício de certas funções.
Por isso, como se assinalou, a decisão que autoriza a suspensão de funções encontra-se indissoluvelmente ligada à que autoriza o seguimento do processo. No caso dos autarcas, não estando o seguimento do procedimento criminal dependente de decisão política, não existe, concomitantemente, decisão sobre a suspensão.
É que, no tocante aos titulares de cargos autárquicos, apesar do seu relativo impacto ao nível local, não se verificam as mesmas razões ou considerações de ordem política global. Ou seja, o legislador não considerou incompatível com o exercício das respectivas funções a existência de procedimento criminal contra esses titulares de órgãos autárquicos.
Neste contexto, a ausência de tratamento especial relativamente aos autarcas nos artigos 34º e segs. da Lei nº 34/87 radica no entendimento de que se considera desnecessário um tal regime especial de imunidades para esses titulares de cargos políticos, sem que daí deva necessariamente decorrer a aplicabilidade do regime geral do artigo 199º do CPP, destinado a tutelar um outro interesse, que já não o da imagem das instituições – aqui, o que releva é o mero interesse processual.
11. Assim sendo, a norma constante do artigo 199º do Código de Processo Penal, se fosse interpretada no sentido de abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entraria em colisão com o disposto no citado artigo 164º, alínea m), da Constituição, na ausência de norma que para ela expressamente remeta, na lei que define o regime da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos.
Não é essa, porém, a melhor leitura da disposição em causa, a qual, interpretada no seu sentido literal, não abrange a situação em apreço.
É, pois, essa interpretação que ora se adopta, nos termos do preceituado no artigo 80º, nº 3, da LTC.
III – DECISÃO
12. Nestes termos, decide-se:
a) interpretar a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 199º do Código de Processo Penal, como não abrangendo os titulares de cargos políticos;
b) conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada para aplicação da norma em apreço com a interpretação acima fixada.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2000 Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa