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Processo nº 573/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. L..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da al. b) do art.70º da Lei nº 28/82, de 15.11, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 85/89, de 07.09', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Subsecção Criminal), de 28 de Abril de 1999, que manteve a sua condenação na pena de 2 anos e 6 meses pela prática do crime de burla agravada, pretendendo 'que se aprecie a inconstitucionalidade dos arts.
469º, 470º e 471º do Código de Processo Penal (1929), na medida em que estes preceitos legais não exigem a fundamentação e a motivação das respostas aos quesitos formulados', porque tais normas 'violam o art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa'. No ponto que aqui interessa, sustenta-se no acórdão recorrido:
'Insurge-se depois o recorrente contra o facto de não se ter fundamentado a convicção a que o tribunal chegou nas respostas dadas aos quesitos, defendendo a inconstitucionalidade do art. 469º do C.P.P. de 1929. Esta questão já foi apreciada demasiadas vezes pelo Tribunal Constitucional e sempre foi decidido que tal norma não é inconstitucional. Neste sentido pode ver-se o acórdão nº 350/91, de 4.7.91, em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
19º volume, 1991 (Maio-Agosto), págs. 527 e seguintes e os vários acórdãos nele referidos a págs. 533. Pelas razões nele invocadas, com as quais se concorda, temos também para nós que o preceito não é inconstitucional. Que não se justifica, legalmente, a fundamentação das respostas aos quesitos era já entendimento pacífico quer deste Supremo Tribunal, quer dos Tribunais da Relação'.
2. Por acórdão nº 661/99, a fls. 3148 dos autos, foi decidido 'ordenar o prosseguimento do recurso', ficando revogada a Decisão Sumária ditada nos autos pelo Relator (a qual apontava para negar provimento ao recurso).
3. Ordenada pelo Relator a feitura das alegações, veio apresentá-las o recorrente, formulando as seguintes conclusões:
'1ª A fundamentação e a motivação das decisões judiciais constituem um pressuposto fundamental da sua eficácia, uma vez que só assim os destinatários e da comunidade jurídica em geral poderão ficar «convencidos» da sua justiça;
2ª Só com a fundamentação e a motivação das respostas aos quesitos, entendidas como verdadeiras decisões jurisdicionais, é possível, ainda, o reexame do processo lógico e racional que lhe serviu de pressuposto;
3ª Permitir o recurso de decisões sobre as quais não existiu qualquer motivação ou fundamentação representaria um total esvaziamento do objecto do recurso, uma vez que não existiria nada para censurar , reapreciar ou criticar;
4ª A fundamentação constitui, para além disso, uma garantia de controle democrático do poder judicial em face dos cidadãos e do próprio Estado;
5ª 'A garantia constitucional do dever de fundamentação ocupa um lugar central no sistema de valores nos quais deve inspirar-se a administração da justiça no Estado democrático moderno'.
6ª Tendo em consideração a escala de valores em jogo, poder-se-á afirmar que nas sentenças penais condenatórias existirá uma exigência constitucional de fundamentação de especial intensidade;
7ª O dever de fundamentação e de motivação abrange, na arquitectura processual, quer a decisão em matéria de facto quer a decisão em matéria de direito;
8ª 'A fundamentação das sentenças penais - especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas - deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação é o da sua livre apreciação pelo julgador;
9ª O art. 32°, no 1 da CRP, ao garantir que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa não se refere apenas à produção de prova na audiência em
1ª instância, mas a todas as fases do processo;
10ª As garantias de defesa consagradas no art. 32°, no 1 da CRP abrangem todos os meios necessários à efectiva defesa dos arguidos, nomeadamente de defesa contra os erros de julgamento e arbítrio dos julgadores sobre matéria de facto e de direito;
11ª O direito de defesa do arguido contra eventuais erros e abusos e, ainda, no que respeita à própria legalidade da decisão no domínio probatório, impõe que a fundamentação e a motivação da decisão quanto às respostas aos quesitos conste da decisão;
12ª A omissão desse dever terá como consequência a impossibilidade do réu de requerer o controlo da legalidade dessa decisão (fundamental na estrutura do processo) pela via do recurso;
13ª A interpretação acolhida no acórdão recorrido quanto aos arts. 469° , 470 e
471° do CPP-1929, no sentido de não exigir a fundamentação e a motivação das respostas aos quesitos, viola basilares princípios informadores do estado de Direito democrático, nomeadamente a transparência das decisões judiciais, o do controle das decisões judiciais pela via do recurso, e as garantias de defesa do réu;
14ª A garantia do efectivo direito de defesa do réu, consagrada no art. 32°, nº1 da CRP, impõe que na decisão jurisdicional, que tenha por objecto decidir sobre a matéria de facto, seja apresentada a fundamentação e a motivação do tribunal colectivo, ou seja, que sejam referidos os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o pressuposto lógico e racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência;
15ª A interpretação acolhida no acórdão recorrido, no sentido da não exigência dos motivos que fundamentam a decisão em matéria de facto, é materialmente inconstitucional, por violar o direito de defesa consagrado no art. 32°, no 1 da CRP;
16ª O acórdão da 1 a instância, objecto do acórdão proferido em recurso e ora recorrido, por não fundamentar ou motivar as respostas dadas aos quesitos violou, por isso, o direito de defesa a que se refere o art. 32°, no1 da CRP;
17ª Por outro lado, no caso concreto dos autos, não foi indicada, concretamente, qualquer prova positiva aue contrariasse o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32° , nº1 da CRP;
18ª Com a omissão referida - consistente na falta de fundamentação e de motivação - ficou por demonstrar qual a prova concreta que conduziu a que o tribunal colectivo tivesse dado como provados os quesitos que formulou, marcando e condicionando, dessa forma, de forma irremediável a solução de direito;
19ª Essa prova positiva, contrária à presunção de inocência é necessária para afastar esta presunção, deve constar da motivação da decisão. sem o aue não possível verificar se a decisão violou aquela garantia constitucional;
20ª O Acórdão recorrido, ao não dar provimento ao recurso do réu, decidindo não ser necessária a indicação na fundamentação da decisão da 1ª instância dos motivos da decisão sobre a matéria de facto, e ao defender que os arts. 469°,
470° e 471 ° do CPP-1929 não exigem esse fundamentação, violou a garantia constitucional consagrada no art. 32°. no 1 da CRP;
21ª O mesmo acórdão violou também garantia constitucional da presunção de inocência do arguido, consagrada no art. 32°, nº 2 da CRP , ao decidir que os motivos que afastam essa garantia não necessitam de ser indicados na decisão;
22ª A legitimação democrática do poder judicial passa necessariamente, no sistema constitucional português, pela necessidade de motivação das decisões judiciais em matéria de facto;
23ª A interpretação dada nas diversas decisões que terminaram com a referida no Acórdão recorrido (e, muito em especial, no acórdão recorrido que decidiu sobre a matéria de facto), aos arts. 469º, 470°, 471° do CPP-1929 violou o art. 32°, nos 1 e 2 da CRP;
24ª A declaração de inconstitucionalidade das normas em referência, terá como consequência a revogação do Acórdão da 1ª instância que decidiu sobre as respostas aos quesitos, devendo o mesmo ser substituído por outro que, motivadamente e com a devida fundamentação, responsa aos quesitos formulados de acordo com a interpretação a dar aos arts. 469°, 470° e 471 ° do CPP-1929 e que foi defendida neste recurso'
4. O Ministério Público apresentou contra-alegações, em que começou por delimitar o objecto do recurso e concluiu depois nestes termos:
'1º - A norma constante do artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, na medida em que dispensa a fundamentação das respostas aos quesitos em processo de querela, aplicada em decisão jurisdicional proferida face ao texto do artigo
208º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na versão anterior à revisão constitucional de 1997, não viola o princípio constitucional de que as decisões judiciais devem ser fundamentadas nos termos previstos na lei.
2º - Na verdade, estando assegurada a plenitude dos poderes cognitivos das Relações para reapreciarem, sem qualquer limite ou restrição – como decorrência da inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929 – a decisão sobre a matéria de facto impugnada, mostram-se garantidos os direitos de defesa do arguido e o direito ao recurso da decisão condenatória.
3º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
5. Foi entretanto, por determinação do Relator, junto aos autos o acórdão deste Tribunal Constitucional nº 251/2000, proferido no Processo nº 867/98, da 2ª Secção, identificado nas contra-alegações do Ministério Público.
6. Sem vistos, cumpre decidir. Prima facie, há que delimitar o objecto do presente recurso e fazê-lo como o fez o Ministério Público, nas suas contra-alegações, considerando-o circunscrito à norma do artigo 469º, do Código de Processo Penal de 1929, no entendimento seguido no acórdão recorrido, já que os dois artigos seguintes daquele Código - artigos indicados pelo recorrente - 'nenhum relevo assumem quanto à questão jurídico-constitucional em debate: na verdade, o artigo 470º limita-se a estatuir acerca do procedimento a seguir aquando da discussão da matéria de facto pelo colectivo, prescrevendo competir ao presidente dirigir a discussão e votação dos juízes, que se realizará por ordem de antiguidade; por outro lado, o artigo 471º proclama a confidencialidade da deliberação e votação, cominando aos juízes que integram o colectivo um dever de sigilo' ('Afigura-se que a matéria regulada nestes dois preceitos é absolutamente estranha ao tema da fundamentação da decisão acerca da matéria de facto, já que – como é óbvio – não é do procedimento adoptado para a sua discussão no âmbito do colectivo ou de imposição de um dever de sigilo aos juízes que o integram que decorre a questionada dispensa de fundamentação das respostas aos quesitos – a qual assenta, de forma exclusiva, na referida interpretação da norma constante do artigo 469º do referido Código' - acrescenta ainda o Ministério Público). Ora, aquela norma do artigo 469º foi julgada inconstitucional no citado acórdão nº 251/2000, inédito, tirado em sessão plenária, 'na medida em que dispensa a fundamentação das respostas aos quesitos em processo de querela, por violação do artigo 208º, nº 1, da Constituição (hoje 205º, nº 1, da Constituição), em conjugação, com os artigos 2º e 32º, nº 1, da Constituição.'. Havendo, pois, que aplicar a doutrina daquele aresto, há apenas que repetir aqui o mesmo julgamento de inconstitucionalidade, com o consequente provimento do recurso de constitucionalidade.
7. Termos em que, DECIDINDO: a) Julga-se inconstitucional o artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, na medida em que dispensa a fundamentação das respostas aos quesitos em processo de querela, por violação do artigo 208º, nº 1, da Constituição (hoje 205º, nº 1, da Constituição), em conjugação, com os artigos 2º e 32º, nº 1, da Constituição. b) Em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo, por isso, ser reformado o acórdão recorrido, em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 31 de Maio de 2000 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa