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Processo n.º 215/2012
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., melhor identificado nos Autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (doravante “LTC”), da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer das questões de constitucionalidade elencadas no requerimento de interposição de recurso.
Refutando esta decisão de não conhecimento do objeto do recurso, o reclamante argumentou do seguinte jeito:
“(...)
1. O Exmo. Senhor Conselheiro Relator diz que o aqui Reclamante apenas suscitou as questões de inconstitucionalidade no requerimento de Recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/12/2011, interposto para este Tribunal Constitucional.
2. Porém, grande parte do texto do requerimento de Recurso para o Tribunal Constitucional é, como na gíria se costuma dizer, praticamente “copy/paste” do texto das alegações de agravo em 2ª instância. Designadamente o texto em itálico das páginas 1 e 2 da douta decisão reclamada, extraído do texto do requerimento de Recurso para o Tribunal Constitucional é, por sua vez, com pequenas adaptações, um “copy/paste”, a bem dizer sintetizado, ou seja com cortes, do texto das alegações/conclusões do recurso de agravo em 2ª Instância de fls. 230ss e 382ss.
3. E então, se o douto despacho aqui reclamado considera que as questões de inconstitucionalidade foram adequadamente suscitadas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (embora diga que o foram extemporaneamente), também terá que se admitir que foram suscitadas nas próprias alegações de Recurso para o STJ.
4. A principal diferença estará no facto de no Requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional o Recorrente ter sido conciso e incisivo e nas alegações de Recurso para o STJ ter sido extensivo e prolixo.
5. A suscitação da inconstitucionalidade das referidas normas, segundo uma certa interpretação que considerámos e consideramos desconforme à Constituição, poderia ter sido feita de modo mais concreto, mais conciso, mais sintético ou incisivo. Não pomos isso em causa. Mas também não temos qualquer dúvida que foi feita. E foi feita de modo suficientemente inteligível. Não está em causa as alegações apresentadas ao STJ estarem mal escritas, com mau estilo, serem demasiado volumosas e extensas e de leitura desconfortável e desagradável. Mas se as expurgarmos de certas partes que pela sua extensão podem tornar mais difícil a sua leitura, podemos sem qualquer dificuldade de maior verificar que nelas se suscita a questão da inconstitucionalidade dos preceitos do CC e do CPC aqui em causa.
6. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é em grande medida um resumo das alegações/conclusões do recurso de agravo em 2ª instância. Aliás, grandes partes do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional são cópia do texto das alegações/conclusões de folhas 230ss. e 382ss. pelo que, a nosso ver, a não ser que se deite mão a um formalismo demasiadamente rigorista, dizer que o esforço de suscitação das inconstitucionalidades foi cabalmente feito no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, implica, a nosso ver, dizer que esse mesmo esforço foi igualmente feito nas alegações/conclusões do agravo em 2ª instância, conjugadamente de fls. 230 ss. e 382 ss, pese embora a prolixidade e extensão com que tal ocorreu no recurso de agravo em 2ª instância.
7. Assim, aquilo que se diz no Requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, já o recorrente o tinha dito nas alegações/conclusões de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de fls. 230 ss e 382 ss. Simplesmente no Recurso para o Tribunal Constitucional essa suscitação de inconstitucionalidade aparece destacada, isolada e nas alegações de recurso de agravo em 2ª instância essa mesma suscitação aparece envolta e embrulhada em muito mais texto.
8. Suscitar uma questão é sugerir essa mesma questão, é sugerir a existência de um problema, ou de outra coisa qualquer. É isso que significa suscitar (Dicionário Lello & Irmãos, verbete suscitar). O recorrente fez essa suscitação de inconstitucionalidade tanto no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, como o fez nas alegações do recurso de Agravo em 2ª Instância.
9. O texto do Requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é essencialmente uma súmula de parte significativa das alegações/conclusões de fls. 230ss e 382ss do agravo em 2ª instância. Se as questões de inconstitucionalidade foram suscitadas no Requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é pois porque o foram também nas alegações/conclusões do recurso de agravo em 2ª instância, de que esse requerimento é súmula e, em algumas partes, mesmo cópia.
10. Pelo menos nos excertos das alegações e conclusões, de fls. 230ss e 382ss, do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Supremo Tribunal de Justiça que a acima se copiaram e transcreveram, o Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade das referidas normas, embora o tenha feito de um modo, sem dúvida, prolixo. Em todo o caso, apesar dessa prolixidade, não deixarão de se encontrar em muitos desses excertos as passagens que constituem o núcleo essencial do Requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional.
11. No Recurso para o STJ o Agravante sugeriu e afirmou que determinadas normas do CC e do CPC (pelo menos os nºs 1 e 2 do art. 1871º do CC, os nºs 1 e 2 do art. 519º do CPC e o nº 1 do art. 71º do CC) tinham necessariamente que ter uma determinada interpretação, sob pena de outra – que acabou por ser a seguida pele STJ – ter que ser considerada inconstitucional. Ou seja, suscitou a inconstitucionalidade dessas normas.
12. Não temos dúvidas que lendo Vs. Exas., Senhores Conselheiros, os excertos das alegações/conclusões do recurso de Agravo em 2ª instância acima transcritos, concluirão que o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA estava em condições de tomar em conta as questões de inconstitucionalidade levantadas nas alegações do recurso interposto para esse Tribunal, de modo a poder considera-las na decisão recorrida, porque de facto foram insofismavelmente levantadas e suscitadas.
13. Através dos excertos das alegações/conclusões do Agravo em 2 instância acima transcritos – apesar da prolixidade e mau estilo de escrita do Recorrente – é patente ter sido atempadamente suscitada a inconstitucionalidade das normas em causa.
14. Essa suscitação foi feita extensa e repetidamente nas alegações e conclusões do Recurso de Agravo em 2ª Instância. É certo que, por serem demasiado extensas e complexas, o STJ – e bem, diga-se de passagem –, impôs ao Agravante a sintetização dessas conclusões. Mas isso em nada bule com o objeto do recurso tal como este foi definido no momento da apresentação das alegações.
15. Com efeito, vigora aqui, no caso dos convites para sintetização das conclusões das alegações do recurso – como a propósito do CPP refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., 2011, anot. 8 ao art. 417º, p. 1155 – um autêntico Princípio da Vinculação ao Âmbito dos Fundamentos do Recurso Definidos nas Conclusões Inicialmente Apresentadas. Ou seja, as conclusões formuladas na sequência do convite no sentido da sua síntese estão vinculadas ao âmbito dos fundamentos do recurso e ao seu objeto tal como definido nas conclusões inicialmente apresentadas e não constituem, nem poder ser consideradas, uma modificação do objeto e do âmbito do recurso.
16. Trata-se de uma mera e simples tentativa de súmula das conclusões das alegações anteriormente apresentadas, súmula essa que em nada pode bulir com o conteúdo do objeto do recurso, que se mantém necessariamente o mesmo.
17. Entendemos pois, que aquele requisito, a que se refere o Exmo. Senhor Conselheiro Relator, de terem sido levantadas e suscitadas questões de inconstitucionalidade durante o processo a tempo de serem tidas em conta na decisão recorrida foi cumprido. Mais uma vez não negamos que a singeleza e a concisão com que o devíamos ter feito foram prejudicadas pela extensão das nossas alegações. Mas que o Recorrente suscitou, nas alegações de recurso para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, uma série de questões de inconstitucionalidade de diversas normas que lográmos resumir e sintetizar no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, disso não temos dúvidas.
18. E, em todo o caso, e embora o despacho do STJ que admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional não vincule este Tribunal, certo é que o STJ admitiu – sem expressar quaisquer hesitações – o recurso para o Tribunal Constitucional.
(...)”
Notificada para o efeito, B. respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento.
Fundamentação
A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2011 e de 9 de fevereiro de 2012, pretendendo que sejam apreciadas as seguintes questões de inconstitucionalidade:
“(...)
O mencionado acórdão aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada no processo – alegações de recurso de agravo em 2.ª instância a fls. 230ss, 382ss -, nomeadamente a al. a) do n.º 1 e 2 do art. 1871.º do Código Civil e os n.ºs 1 e 2 do art. 519.º do CPC na interpretação pela qual se impõe a realização da prova pericial por exumação do corpo do investigado ainda que o fundamento da ação seja, além do facto biológico da procriação, a factualidade a que se refere a al. a) do n.º 1 do artigo 1871.º do CC; e, portanto, na interpretação segundo a qual tendo o autor (porque alegou a procriação biológica mas também a posse de estado) a possibilidade de provar e estabelecer a paternidade sem provar diretamente a filiação biológica porque precisamente está dispensado de o fazer uma vez que alegou ter beneficiado da posse de estado, é legítimo impor coercivamente, havendo oposição do Réu, sucessor e filho do falecido investigado, a realização de um meio de prova tão gravoso e agressivo dos direitos das pessoas como é a exumação, e de que para a simples prova da posse de estado, base factual da presunção a que se refere a al. a) do n.º 1 do artigo 1871.º do CC é legítimo destruir o cadáver do investigado e proceder à sua exumação quando tal prova se pode in casu fazer por outras vias probatórias e ainda de que, mesmo que não tivessem sido alegados factos relativos à procriação, sempre este tipo de prova (exumação) teria de ser admitido por poder retirar valor probatório a provas de sinal contrário produzidas pelo réu.
(...) As referidas normas assim interpretadas, tal como fez o Acórdão do STJ, violam: a) os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso, por se estar perante uma violação ou compressão desnecessária ou excessiva de direitos constitucionalmente garantidos (...); b) a norma do artigo 26.º n.º 1 da CRP e consequentemente a constitucionalmente garantida reserva da intimidade da pessoa (falecida); c) o artigo 24.º n.º 1 da CRP e consequentemente a dignidade da vida humana (já vivida) através da violação do respeito que é devido ao cadáver de uma pessoa falecida como projeção post-mortem representativa da pessoa viva.
Finalmente, quanto ao art. 71.º, n.º 1 do Código Civil, na medida em que aplicou igualmente o Acórdão do STJ esta norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do agravo em segunda instância, na interpretação segundo a qual esta norma não determina que os direitos de personalidade gozam de proteção direta depois da morte do respetivo titular, assumindo uma permanência genérica dos direitos de personalidade do defunto após a sua morte (...), estando, pois, segundo essa interpretação, em causa no artigo 71.º, n.º 1 CC apenas a proteção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n.º 2 do mesmo artigo), que seriam afetadas por atos ofensivos da memória do falecido (...), pelo que esta norma, se interpretada nestes termos, é violadora: a) do princípio constitucional da proibição do excesso, pois como nas alegações de agravo de 2.ª instância é referido “é insofismável que (...) o princípio da verdade biológica não assume dignidade constitucional e que, só por si, não pode fundar a admissão da requerida perícia; b) do artigo 24.º n.º 1 da CRP [e consequentemente da dignidade da vida humana (já vivida)] através da violação do respeito que é devido ao cadáver de uma pessoa falecida como projeção post-mortem representativa da pessoa viva; c) do 26.º n.º 1 da CRP [(e consequentemente da constitucionalmente garantida reserva da initimidade da pessoa falecida)].
(…).
2. Muito embora o tribunal a quo seja a instância que, a título preliminar, aprecia a admissibilidade do recurso, decorre expressamente do n.º 3 do artigo 76.º, da LTC, que o Tribunal Constitucional não está vinculado pela decisão que aquele venha a proferir no que tange à admissibilidade do recurso. Deste jeito, e uma vez que o presente caso se enquadra na hipótese normativa delineada no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se nos termos e com os seguintes fundamentos.
3. Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, cabe recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Daqui decorre que o conhecimento do objeto do recurso pelo Tribunal Constitucional está dependente de um conjunto de pressupostos processuais. Com efeito, deve o recorrente requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam sido decisivas ou pelo menos necessárias para a resolução da questão principal.
Assim sendo, cumpre desde logo apreciar se o recorrente suscitou uma questão de inconstitucionalidade (i) e se o fez durante o processo, isto é, de forma tempestiva e adequada (ii).
O recurso de constitucionalidade, seja ele qual for, tem sempre por objeto uma questão de inconstitucionalidade normativa. Esta pode definir-se como o juízo de desconformidade de um ato normativo – ou de uma dada interpretação do mesmo – que é ratio decidendi num caso submetido a julgamento, com o conjunto das normas e princípios constitucionais. O mesmo é dizer que o controlo a efetuar pelo Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que afere da constitucionalidade de critérios normativos e não de decisões jurisdicionais. Ressaltam deste entendimento, jurisprudencialmente reiterado (v., entre outros, o Acórdão n.º 551/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), duas conclusões.
A primeira é a de que inexiste, no quadro do nosso modelo de fiscalização concreta, uma figura como a da ação de defesa da constitucionalidade, a qual permitiria ao Tribunal Constitucional sindicar diretamente a violação de direitos fundamentais por concretos atos de julgamento.
A segunda é a de que não cumpre o ónus de suscitação o recorrente que, ao invés de individualizar, com precisão e rigor, os critérios abstratamente enunciados que reputa como desconformes com o parâmetro normativo-constitucional, se limita a imputar diretamente à decisão jurisdicional o alegado vício de inconstitucionalidade, ou a controverter “a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub juditio” (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 34).
Depois, exige-se que o cumprimento daquele ónus de suscitação haja ocorrido durante o processo, o que implica a existência de um tempo e de um modo adequados para levantar, no processo-base, a questão de inconstitucionalidade normativa (v. Acórdão n.º 155/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Trata-se, na verdade, de uma exigência essencial, cujo desiderato é o de obstar a que o recorrente se sirva da figura do recurso de constitucionalidade para atrasar a execução da sentença ou converter o tribunal ad quem em superinstância de recurso. Considerou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que “suscitar uma questão de inconstitucionalidade durante o processo não é (...) fazê-lo antes de terminado o processo, mas sim num momento em que a questão da constitucionalidade ainda possa ser conhecida, em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar.” Entende-se, portanto, aquele requisito, não num sentido puramente formal, mas num sentido funcional, que releva a necessidade de a questão de inconstitucionalidade ter sido levantada a tempo de ser tida em conta na decisão recorrida (v. Acórdão n.º 352/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
A ser assim, conclui-se legitimamente, salvo circunstâncias excecionais, pela extemporaneidade de arguições que ocorram em incidentes pós-decisórios – tais como o pedido de aclaração da decisão, o pedido de reforma da decisão, o requerimento de arguição da nulidade da decisão, entre outros – ou no próprio requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Excogitadas estas considerações, é mister sublinhar que o recorrente não cumpriu, ao contrário do que é expressamente avançado, a obrigação de suscitar a questão de inconstitucionalidade (i) num tempo e modo adequados (ii). Na verdade, em momento algum do processo (corretamente assimilado), maxime, nas alegações de agravo em segunda instância, procede o recorrente ao levantamento de uma questão de inconstitucionalidade – talqualmente delimitada supra - destarte não conferindo ao tribunal a quo a faculdade de sobre ela se pronunciar antes da prolação da decisão recorrida.
Mesmo que houvesse lugar a alguma das exceções toleradas pela jurisprudência deste Tribunal à regra da suscitação tempestiva do incidente de inconstitucionalidade - o que não acontece – a verdade é que o recorrente tampouco cumpre, no pedido de aclaração da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (v. artigo 669.º, do CPC), leia-se, em incidente pós-decisório, aquele ónus de suscitação.
Com efeito, a única referência processualmente relevante a um (qualquer) problema de inconstitucionalidade consta da alegação 60.ª do requerimento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, onde se pode ler: “(...) Sempre terá que se reconhecer ao Réu a possibilidade de se opor e impedir a realização da exumação, pois com a destruição do cadáver para recolha de material biológico (...) são atingidos os sentimentos do Réu para com a memória de seu Pai (...) a dignidade humana e a intimidade da pessoa falecida que (...) merecem tutela.” Contudo, esta referência velada a princípios e normas constitucionalmente pertinentes não se confunde, como é bom de ver, com o levantamento de modo processualmente adequado de uma questão de constitucionalidade, nos termos excogitados supra.
Com efeito, o recorrente não só não indicou de forma inteligível e clara os preceitos legais ou as específicas interpretações normativas deles extraídas que advoga ofensivas do parâmetro normativo-constitucional, como omitiu qualquer referência a uma eventual relação de desconformidade entre elas e aquele parâmetro. Um tal esforço só foi cabalmente empreendido pelo recorrente no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, isto é, em momento processualmente extemporâneo.
Assim sendo, somos levados a concluir que o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente não reúne os pressupostos processuais inferidos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), preceito ao abrigo do qual o recurso é interposto.
4. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto de recurso.
(...)”.
5. Na reclamação que agora se aprecia, o reclamante funda a revogação da decisão sumária proferida nos seguintes argumentos:
Em primeiro lugar, argumenta o reclamante que se limitou, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a repetir textualmente (“copy/paste” é a expressão aduzida na reclamação) o que havia veiculado nas alegações de agravo em segunda instância. Daqui resulta, em seu entender, que tendo este Tribunal considerado, na decisão sumária reclamada, que apesar de extemporânea, a suscitação do incidente de inconstitucionalidade, naquele requerimento de interposição, foi feita de forma correta, deveria o mesmo Tribunal admitir – necessariamente - que o reclamante havia levantado adequadamente aquele incidente durante o processo (v. pontos 2, 4 e 6 da reclamação apresentada).
Em segundo lugar - e algo contraditoriamente, diga-se –, o reclamante invoca ter suscitado o incidente de inconstitucionalidade quer nas alegações de agravo em segunda instância, quer no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. A única diferença entre um e outro levantamento radicaria na circunstância de, no segundo, a questão de inconstitucionalidade surgir “destacada” ou “isolada”, e no primeiro aparecer “embrulhada em muito mais texto” (v. ponto 7 da reclamação).
Finalmente, e para corroborar os argumentos supra mencionados, o reclamante serve-se de uma definição semântica, veiculando que “suscitar uma questão é sugerir essa mesma questão, é sugerir a existência de um problema ou de outra coisa qualquer.”
6. Ora, os argumentos aduzidos pelo reclamante na reclamação apresentada em nada perturbam ou infirmam a pertinência das razões em virtude das quais foi proferida a decisão sumária reclamada, em que se decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto. Na verdade, de uma leitura conjugada dos artigos 70.º, n.º 1, al. b), 70.º, n.º 2 e 72.º, n.º 2, da LTC, resulta que o recurso para o Tribunal Constitucional nelas previsto está dependente da verificação de uma série de requisitos: com efeito, deve o recorrente requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam sido decisivas ou pelo menos necessárias para a resolução da questão principal.
Não contestando a reclamação apresentada aquilo que se deve entender por suscitação tempestiva do incidente de inconstitucionalidade, parece evidente, no entanto, que subsistem alguns equívocos sobre o que é o levantamento, de forma ou modo processualmente adequado, de uma questão de inconstitucionalidade.
Reitera-se, assim, que levantar uma questão de inconstitucionalidade implica colocar o problema da desconformidade entre uma norma jurídica – ou interpretação normativa desta (objeto do controlo) – e o parâmetro normativo-constitucional, entenda-se, o conjunto de normas e princípios constitucionalmente relevantes (parâmetro do controlo). Esta exigência justifica-se porque o controlo a que procede o Tribunal Constitucional é um controlo normativo, incidente sobre normas jurídicas (ou sobre interpretações normativa destas). O mesmo é dizer que este Tribunal não se debruça sobre o mérito da decisão proferida no processo-base, nem tampouco sobre as eventuais inconstitucionalidades de que padeça essa mesma decisão, uma vez que não tem previsão entre nós a figura da Verfassungsbeschwerde alemã, ou o recurso de amparo espanhol (v.g., os Acórdão n.º 353/86, Diário da República, II Série, de 9 de abril de 1987).
Este é, aliás, o entendimento por diversas vezes assumido pela jurisprudência deste Tribunal, como assevera o seguinte excerto do Acórdão n.º 551/01 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt): “(...) ao Tribunal Constitucional compete julgar, não o ato decisório recorrido em si mesmo considerado, envolvendo a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou tão pouco o mesmo, visto como resultado da conjugação da matéria de facto ao critério normativo utilizado, mas sim a constitucionalidade mesma desse critério normativo” (v., ainda, os Acórdãos n.º 155/95 e 82/2001, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Depois, suscitar de forma processualmente adequada uma questão de inconstitucionalidade traduz-se, entre outros requisitos, numa exigência de que aquele levantamento se processe de forma inteligível e clara, de modo a que o tribunal a quo dele possa e deva tomar conhecimento (Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, 2011, p. 753 ). Essa inteligibilidade e clareza têm de passar, naturalmente, por uma individualização expressa, durante o processo, das normas ou sentidos interpretativos contestados, por um lado, e dos princípios e regras constitucionais alegadamente ofendidos, por outro. Isto mesmo se pode ler, por ex., no Acórdão n.º 269/94 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt): “Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (..) tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.'
É possível precisar, na senda da jurisprudência deste Tribunal, que mesmo não preenchendo o levantamento os índices de clareza ou inteligibilidade adequados, deverá o Relator admitir o recurso se e na medida em que possa concluir que “foi delineada, nos seus traços essenciais, uma questão de constitucionalidade normativa” (v. Acórdão n.º 220/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O critério decisivo nesta matéria é, pois, o de considerar que ocorreu uma arguição adequada da questão de inconstitucionalidade quando, independentemente da maior ou menor clareza de que se revestiu tal arguição, se conclua que o tribunal a quo tomou – ou deveria ter tomado - dela conhecimento (v. Acórdão n.º 498/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ainda assim, e ao contrário do que veicula o reclamante, suscitar uma questão não é apenas “sugerir a existência de um problema ou de outra coisa qualquer.” Mesmo inexistindo um qualquer tipo de “forma sacramental” por intermédio da qual se deva levantar a questão de inconstitucionalidade, existem indubitavelmente um tempo e um modo processualmente adequados para aquela suscitação. De outro modo resultaria indubitavelmente gorada a lógica inerente ao processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, que é a de que, sublinhe-se, “só há recurso para o TC quando outro tribunal tenha decidido (expressa ou implicitamente) uma questão de constitucionalidade” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, 2010, p. 945).
Ora, atento o exposto, percebe-se que nada do que o reclamante veiculou nas alegações de agravo de segunda instância é confundível ou assimilável ao levantamento processualmente adequado de uma questão de inconstitucionalidade. Senão vejamos.
É verdade que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o reclamante requereu a este Tribunal a apreciação da constitucionalidade de uma série de normas e interpretações normativas, alegando e fundamentando, efetivamente, a relação de desconformidade existente entre elas e certas normas e princípios constitucionais. No entanto, ao contrário do que invoca o reclamante, estes não são elementos “copiados” ou de alguma forma extraídos das alegações de agravo em segunda instância. Trata-se, antes, de questões novas levantadas em momento processualmente extemporâneo.
Naquelas alegações, com efeito, o reclamante em momento algum individualiza de forma (mais ou menos) clara um problema de desconformidade entre certas normas jurídicas ou interpretações normativas e outros princípios ou regras constitucionais. Em consequência, não admira que o Supremo Tribunal de Justiça não se tenha sobre ele pronunciado nem tampouco podido pronunciar-se.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre aquela ausência, ficam as mesmas desfeitas pela forma como o reclamante termina as respetivas alegações (alegação n.º 61), evidenciando limpidamente que o objeto da sua contestação não é a (in)constitucionalidade de normas jurídicas (ou de interpretações normativas), mas antes a errada aplicação do Direito aos factos, problema que, como já se disse, não integra o objeto do controlo a empreender por este Tribunal.
Decisão
7. Assim, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 27 de junho de 2012.- J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.