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Processo nº 542/99
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M..., indiciada em processo criminal pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, interpôs, num único requerimento, recurso de dois despachos proferidos no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa para o Tribunal da Relação de Lisboa (requerimento de fls.
7455).
O primeiro dos despachos impugnados (de fls. 7268 e segs.) decidira manter a prisão preventiva anteriormente decretada; o segundo (de fls. 7432 e segs.) julgara a arguição de nulidade por omissão de despacho que ordenasse a junção aos autos da transcrição de escutas telefónicas realizadas, deferindo-a e ordenando essa junção.
Considerando terem sido efectivamente interpostos pela arguida dois recursos, posto que num único requerimento, o Tribunal de Instrução Criminal apreciou autonomamente a respectiva admissibilidade, o regime de subida e os efeitos correspondentes.
Assim, o recurso relativo ao despacho que manteve a prisão preventiva foi admitido, com subida imediata, em separado e sem efeito suspensivo.
Por seu turno, o recurso relativo à arguição de nulidade foi igualmente admitido, com subida nos próprios autos, mas apenas com o recurso que viesse a ser interposto da decisão que pusesse termo à causa, também sem efeito suspensivo.
2. Inconformada com a decisão de considerar terem sido interpostos dois recursos, a arguida reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Por um lado, sustentou que a separação dos dois recursos não é legal, por violação do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 414º do Código de Processo Penal; por outro, invocou a inconstitucionalidade – por violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição – da alínea c) do nº 1 do artigo
407º e da alínea a) do nº 1 do artigo 414º do Código de Processo Penal, na interpretação perfilhada no despacho impugnado.
O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que 'se em sentido formal, o recurso pode ser encarado como sendo constituído pela peça processual que o interpôs e (ou) o motivou, ad substantiam, o recurso é constituído pela actividade judicial de impugnar um determinado despacho ou sentença, pretendendo obter a reapreciação e revogação da decisão judicial respectiva, o que significa que num mesmo recurso (encarado de uma perspectiva meramente formal) pode haver várias decisões autónomas impugnadas (...)'. Assim, julgou 'que a admissão de um recurso diverso para cada uma das decisões recorridas é conforme com a lei e que os regimes de subida atribuídos a cada desses recursos, pode ser difererente um do outro e que, in casu, o atribuído ao recurso do despacho que rejeitou a arguição de nulidade das escutas telefónicas está conforme com a lei'.
A questão de constitucionalidade suscitada, que o Tribunal da Relação de Lisboa tomou como correspondendo, no essencial, à questão de 'saber se esta garantia constitucional [prevista no nº 1 do artigo 32º] envolve também um direito de recurso de todas as decisões judiciais ou seja o direito ao duplo grau de jurisdição', foi também julgada improcedente pelo referido acórdão.
3. Veio então a arguida recorrer para o Tribunal Constitucional, pedindo que fossem julgadas inconstitucionais as 'normas dos arts. 407º nº 1 alínea C e nº 3 e 414º nº 1 do C.P.P., por violação do disposto no artº 32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa se interpretadas no âmbito aí expresso'.
Notificada para produzir alegações, a ora recorrente apresentou as razões pelas quais considera inconstitucionais as normas referidas, se interpretadas no sentido de 'num único recurso impugnando a manutenção da medida de coacção e a validade de escutas telefónicas, o mesmo possa estar sujeito a dois despachos de admissão, para que uma parte subisse imediatamente e a outra subisse apenas e após a decisão que pusesse termo ao processo'.
Conforme explica, 'a questão fulcral prende-se, com saber se é constitucionalmente suportável a quebra de unificação do acto de recurso, ou seja, se interposto um único recurso de despachos judiciais, por as questões aí suscitadas poderem autonomamente terem regimes de subida diferenciados, ser admissível a divisão do recurso em dois, de molde a diferenciar-se o regime de subida, quando tal situação prejudique processualmente o recorrente'.
Em seu entender, ter-se-ia verificado uma 'quebra das garantias de defesa do processo penal, numa dupla vertente'. De um lado, e 'sob um ponto de vista formal existe violação do disposto no art. 32º nº 1 da C.R.P. na medida em que a subida diferida de uma parte do recurso, sem que a lei expressamente o possibilite ou obrigue, vai obrigar ao protelamento da decisão, o que não deverá deixar de ter reflexos na continuação dos autos'. De outro, 'sob o ponto de vista material', haveria também violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição, pela circunstância de a retenção da parte do recurso relativo à nulidade levar ao protelamento da decisão sobre a questão, com consequências negativas, entre as quais 'o perigo da estigmatização da recorrente pela sua sujeição a julgamento, a aplicação de condenação com base somente ou também nas provas impugnadas e a continuação da medida de coacção pelo tempo necessário à decisão'.
O Ministério Público contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
'1º Têm de considerar-se como recursos realmente autónomos os que surgem reportados a diferentes despachos judiciais, proferidos em datas diferenciadas e versando sobre questões perfeitamente diferentes e autónomas.
2º Não pode inferir-se do princípio constitucional das garantias de defesa a vigência de um irrestritivo regime de subida imediata de todos os recursos interpostos de decisões interlocutórias, que não tenham incidência na privação de liberdade cominada ao arguido nem – muito menos – a outorga a este, através de uma discricionária e artificiosa 'unificação' dos recursos que realmente interpôs, do direito a fraudar o regime de subida que a lei de processo estabelece para tais recursos.
3º Termos em que deverá improceder manifestamente o recurso interposto.'
4. São do seguinte teor as disposições do Código de Processo Penal de 1987
(alterado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) impugnadas pela recorrente:
'Artigo 407º
(Momento da subida)
1. Sobem imediatamente os recursos interpostos:
.... c) De decisões que apliquem ou mantenham medidas de coacção ou de garantia patrimonial, nos termos deste Código;
....
3. Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo
à causa.'
'Artigo 414º
(Admissão do recurso)
1. Interposto o recurso e junta a motivação ou expirado o prazo para o efeito, o juiz profere despacho e, em caso de admissão, fixa o seu efeito e regime de subida.'
Constitui então objecto do presente recurso a norma que se extrai das disposições legais transcritas, segundo a qual a impugnação unitária de duas decisões judiciais diferentes não obsta à admissão de dois recursos diferentes, nem implica a sujeição ao regime mais favorável dos dois recursos efectivamente interpostos.
É de sublinhar que não está aqui em causa a apreciação da constitucionalidade das normas que definem o momento de subida dos recursos relativos a decisões sobre nulidades relacionadas com a admissão de meios de prova em geral, ou, em particular, de transcrições de escutas telefónicas. A norma cuja constitucionalidade é posta em causa é tão somente a que permite a aplicação ao recurso de cada uma das distintas decisões unitariamente impugnadas de regime diferente para a fixação do momento de subida e dos efeitos.
5. Delimitado o objecto do presente recurso nos termos anteriormente indicados, torna-se clara a sua improcedência.
Estabelece efectivamente o nº 1 do artigo 32º da Constituição que o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso; a recorrente não consegue, todavia, indicar concretamente qual a garantia que considera ter sido violada.
Não está naturalmente em causa o direito a recorrer, já que a norma impugnada não o limita ou restringe, pois que apenas permite a fixação de regimes diferenciados quanto ao regime de subida e efeitos do recurso interposto. De resto, não é impugnada pela recorrente a norma que estabelece um regime de subida diferida para os recursos relativos a decisões de admissão de meios de prova, pelo que não pode ter-se em consideração a argumentação aduzida sobre as consequências negativas de uma subida não imediata.
Como é obvio, não pode basear-se no nº 1 do artigo 32º a ideia segundo a qual o recurso relativo a toda e qualquer decisão deve seguir o regime de subida – mais favorável – previsto para outra decisão também impugnada, desde que o recorrente não distinga formalmente os dois recursos. Antes de mais, porque nada nas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, ou na sua ratio, aponta nesse sentido. Para além disso, porque tal entendimento conduziria a que fosse possível a qualquer recorrente atribuir potestativamente o regime de subida que desejasse ao recurso de qualquer decisão judicial proferida ao longo do processo: bastaria que recorresse simultaneamente – e mediante um único requerimento – de outra decisão cujo regime de subida correspondesse ao pretendido. O absurdo da pretensão da recorrente é, pois, patente.
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, quanto à decisão de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 21 de Setembro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida