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Proc. nº 777/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - R. F., advogado e com os demais sinais dos autos, interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº.
28/82, do acórdão da Relação do Porto de 9/3/99 (fls. 163).
No requerimento de interposição de recurso disse, entre o mais, o recorrente:
'l) A norma cuja inconstitucionalidade se argui é constituída pelos segmentos conjugados dos artigos 342º nº. 1 e 344º nº. 2 do C. C., e/ou outros implicitamente utilizados, no entendimento acima transcrito na alínea g).
m) O princípio constitucional violado é o do acesso ao direito e aos tribunais que o artigo 20º da Constituição consagra.'
O 'entendimento' referido em l) e que consta da alínea g) do mesmo requerimento expressa-se nos seguintes termos:
'(...) para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor, que entregou um cheque para pagamento de um débito, que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer, o
ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento.'
Por decisão sumária proferida a fls. 200 e segs. não se tomou conhecimento do objecto do recurso.
Transcreve-se na íntegra tal decisão:
'1 - Z. A. interpôs, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa com processo sumário contra R. F., com os sinais dos autos, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de Esc. 916 301$00 acrescida dos juros vincendos, à taxa de 15% ao ano, sobre Esc. 500 000$00 desde a data da 22.05.1995 até efectivo pagamento, bem como custas, procuradoria e demais encargos resultantes da lei.
Contestada a acção, veio a mesma a ser julgada parcialmente procedente no saneador, proferido em 7.03.1996, que condenou, em consequência o Réu a pagar à autora a quantia de 500 00$00, acrescida de juros à taxa de 15%, desde 3.05.1995 até 28.09.95 e à taxa de 10%, desde 29.09.95 até efectivo e integral pagamento (cfr. fls. 112 a 119). Inconformado com a decisão, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto em 26.03.1996 (cfr. fls. 121), o qual por acórdão de
9.03.1999 julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença saneador, embora por fundamentos diferentes dos invocados em tal decisão recorrida no respeitante à condenação no pagamento da quantia de 500 000$00 (cfr. fls. 163 a
175 vº.). O Réu arguiu a nulidade do acórdão por considerar existir '... uma contradição manifesta entre os fundamentos da decisão, já que a suposta obrigação do Réu de provar que a Autora tivesse depositado o cheque é incompatível com o juízo, também formulado, de que era à Autora que competia apresentar o cheque a pagamento' (cfr. fls. 178 a 181). Igualmente nesta peça processual, o Réu suscitou a seguinte questão:
'g) Porém, caso se entenda que, para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor – que entregou um cheque para pagamento de um débito, que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer – o ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento, essa interpretação tão inesperada das regras do ónus da prova, designadamente dos arts. 342º nºs 1 e 2 e 344º nº 2 do C.C., ou de quaisquer outras em que se funde aquela proposição sempre seria inconstitucional por violar o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais que o art. 20º da Constituição consagra, o que se argui para todos os efeitos legais.'
Por acórdão de 21.09.1999 do Tribunal da Relação do Porto foi indeferida a requerida arguição de nulidade (cfr. fls. 185 a 188).
De novo inconformado, recorreu o Réu para o Tribunal Constitucional alegadamente ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional refere o recorrente sob a alínea g) e seguintes:
'g) Caso tal nulidade não fosse deferida, isso significava que o Tribunal tinha adoptado o seguinte entendimento: para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor, que entregou um cheque para pagamento de um débito, que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer, o ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento. h) E logo se disse que tal interpretação tão inesperada das regras do ónus da prova, designadamente dos arts. 342º nºs 1 e 2 e 344º nº 2 do C.C., ou de quaisquer outras em que se fundasse aquela proposição, sempre seria inconstitucional por violar o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais que o art. 20º da Constituição consagra, o que se arguia para todos os efeitos legais. i) A Relação do Porto desatendeu a arguição de nulidade, através de acórdão de
21 de Setembro que confirma aquele extraordinário – nunca visto – entendimento acerca das regras do ónus da prova. j) Assim sendo, o recorrente vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional do primitivo acórdão de 9 de Março de 1999. k) O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC. l) A norma cuja inconstitucionalidade se argui é constituída pelos segmentos conjugados dos arts. 342º nº 1 e 344º nº 2 do C.C., e/ou outros implicitamente utilizados, no entendimento acima transcrito na alínea g). m) O princípio constitucional violado é o do acesso ao direito e aos tribunais que o art. 20º da Constituição consagra. n) A arguição de tal inconstitucionalidade só foi feita no requerimento de arguição de nulidade e não antes por manifesta incapacidade do recorrente em poder prever tão insólita interpretação dos segmentos das normas legais em causa. o) Não era razoável prever tal entendimento, sendo certo que a Relação do Porto nem deu cumprimento ao princípio hoje constante do art. 3º nº 3 do C.P.C., pelo que, tal como constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, é tempestiva a arguição da inconstitucionalidade em apreço.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, julgando-se inconstitucional o entendimento acima referido.' Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal.
2 - A admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional está dependente do preenchimento dos seguintes pressupostos processuais:
- suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo;
- aplicação efectiva da norma impugnada pela decisão recorrida;
- esgotamento dos recursos ordinários que no caso coubessem. A competência para apreciar a admissão do recurso é do tribunal que proferiu a decisão em crise (artigo 76º , nº. 1 da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro), mas tal decisão de admissão do recurso não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. nº. 3 do mesmo preceito legal). Impõe-se determinar se estão reunidos todos os supra mencionados pressupostos de admissibilidade do presente recurso. No que concerne à tempestividade da suscitação da questão de constitucionalidade
– ter sido suscitada durante o processo, ou seja, a tempo de o tribunal 'a quo' se pronunciar sobre ela – não nos deteremos com longas considerações sobre o preenchimento do requisito. Isto porque – sem que o caso deixe de oferecer algumas dúvidas – sempre subsistem outros fundamentos de não admissibilidade do recurso, como adiante se verá. In casu, o recorrente suscitou uma alegada 'questão da inconstitucionalidade' da interpretação que teria sido dada pelo Tribunal da Relação do Porto aos artigos
342º, nº. 1 e 344º, nº. 2 do Código Civil no requerimento de arguição de nulidade (cfr. requerimento de fls. 187 a 181), ou seja, a suscitação da
'questão da inconstitucionalidade' de tal 'interpretação' da norma ocorreu quando o poder jurisdicional do tribunal recorrido se encontrava já, em princípio, esgotado com a decisão sobre a matéria do processo, sendo certo que o Tribunal entende não configurar, em regra, a arguição de nulidade meio idóneo e atempado de suscitar a questão. No entanto, a jurisprudência pacífica deste Tribunal admite a suscitação da questão de inconstitucionalidade – nas situações em que se mostra já esgotado o poder jurisdicional do tribunal 'a quo' – quando ao interessado não for exigível a antevisão de uma interpretação normativa imprevista ou inesperada, ou seja, quando a decisão se configura como decisão-surpresa. Ora, no caso, o acórdão da Relação do Porto, de 9/3/99, julgou improcedente o recurso interposto pelo ora recorrente, mantendo a sentença recorrida, embora com fundamentação diversa. Nessa fundamentação, avulta como razão determinante o entendimento sobre a causa de pedir na acção intentada contra o recorrente: não o cheque dos autos, mas o não pagamento pelo Réu de uma determinada quantia devida à Autora. Deste entendimento e por aplicação das regras sobre o ónus da prova extraiu a Relação do Porto a conclusão de que o Réu não provara, como lhe competia, o pagamento da quantia em dívida. Ora, se, em si, esta decisão dificilmente se podia considerar imprevista ou surpreendente, a verdade é que na sentença de 1ª instância se não deixa clara uma tal construção jurídica. Admite-se, assim, que ao considerar que 'O que está em causa na presente acção
é, pois, o pagamento de uma determinada quantia em dinheiro e não que tenha havido boa cobrança de um cheque entregue pelo Réu à Autora destinado ao pagamento da quantia do sinal e a quem é imputável a não cobrança do dito cheque', invertendo-se consequentemente o ónus da prova no sentido de que competia ao Réu – ora recorrente – provar o pagamento da quantia em dívida, provando que a Autora – ora recorrida – tinha depositado o cheque e obtido a respectiva cobrança, o Tribunal da Relação do Porto tenha proferido uma decisão--surpresa, pelo que se considera estar verificado o pressuposto processual de suscitação da questão da constitucionalidade durante o processo. Mas, relativamente ainda a este requisito, importa salientar que o Tribunal tem pacificamente entendido que a 'questão de inconstitucionalidade' deve ser suscitada de uma forma idónea, clara e perceptível, de modo a permitir ao tribunal 'a quo' pronúncia sobre essa questão. No caso, fica patente que o tribunal 'a quo' não apreciou a 'questão de constitucionalidade' suscitada pelo recorrente, o que, como é sabido, não seria determinante para se não conhecer do recurso de constitucionalidade. E não o fez porquê ? Cremos que por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, por a questão não ter sido suscitada de forma idónea. Não se põe em causa que o recorrente tenha expressamente alegado que '(...) caso se entenda que, para obter a extinção da obrigação cabe ao devedor – que entregou um cheque para pagamento de um débito que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer – o
ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento, essa interpretação tão inesperada das regras do ónus da prova, designadamente dos artigos 342º nºs 1 e 2 e 344º nº 2 do C.C., ou de quaisquer outras em que se funde aquela proposição sempre seria inconstitucional por violar o princípio de acesso ao direito e aos tribunais que o artigo 20º da Constituição consagra', para suscitar uma 'questão de inconstitucionalidade', com expressa indicação do preceito constitucional violado. Certo é, porém, que, indicando apenas o preceito constitucional infringido, o recorrente deixa de lado o que constituiria o fundamento da arguição – a razão por que se entende violada a norma constitucional; em que é que as normas citadas do Código Civil (com a suposta interpretação dada no acórdão arguido de nulo) infringem o artigo 20º da CRP, não o disse o recorrente e impunha-se dizê-lo para o tribunal 'a quo' poder (e dever) conhecer a questão suscitada. Não há, em suma, qualquer substanciação na alegação de inconstitucionalidade feita pelo recorrente. E esta substanciação é tanto mais imperiosa quando a norma constitucional em causa se traduz numa garantia de protecção judiciária que integra uma pluralidade de direitos, desconhecendo-se os que (e como) o recorrente entendia violados. Ainda no que concerne à menção dos preceitos (ou uma sua 'interpretação') supostamente inconstitucionais, não pode também dizer-se que a arguição feita no tribunal 'a quo' se revista do necessário rigor para se considerar a questão de constitucionalidade suscitada de forma idónea. Não é cumprir este ónus indicar as 'regras do ónus da prova, designadamente dos artºs 342º nºs 1 e 2 e 344º nº 2 do C.C., ou de quaisquer outras em que se funde aquela proposição' (sublinhados nossos). Ao recorrente compete referir, expressamente, as normas aplicadas, ainda que todas ou algumas delas o tenham sido de forma implícita. Sobre que normas, afinal, o tribunal 'a quo' deveria emitir pronúncia quanto à arguida inconstitucionalidade? Em segundo lugar, afigura-se que, nos termos em que o fez, o recorrente não suscita uma questão de inconstitucionalidade normativa, questionando antes e directamente a decisão arguida de nula. Na verdade, na já transcrita alínea g) da arguição de nulidades, o recorrente não questiona, em bom rigor, a interpretação de uma norma de direito infra-constitucional mas a aplicação que o acórdão faz das regras do ónus da prova – onde o aresto se limita a acolher o entendimento de que, sendo o pagamento uma excepção peremptória, ao Réu competia a prova do facto extintivo do direito invocado, nos termos do artigo 342º nº 2 do Código Civil – à situação em causa. Por outras palavras, o que poderia constituir um mero erro de julgamento, por aquela norma, com a interpretação dada, não poder impor ao Réu o encargo da prova do recebimento da quantia paga por meio de cheque, é convertido numa falsa questão de interpretação normativa. Pois bem. Estas razões, que entendemos como possível justificação do silêncio do acórdão recorrido sobre a 'questão de inconstitucionalidade', são aqui aplicáveis para se concluir pelo não preenchimento dos requisitos de admissibilidade do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82.
É que, por um lado, não houve suscitação de 'questão de inconstitucionalidade' de forma idónea, clara e perceptível, e, por outro, a questão suscitada não se reporta a uma interpretação normativa, mas à inconstitucionalidade da decisão judicial arguida de nula. Acrescenta-se, ainda, o seguinte: Mesmo a entender-se que a questão suscitada é de inconstitucionalidade normativa, a interpretação impugnada pelo recorrente não é seguramente a que se acolhe no acórdão recorrido. Com efeito, deixa-se bem claro no acórdão que se pronuncia sobre a arguição de nulidade, que se não dissera (como, de facto, se não disse) no acórdão alegadamente nulo que a Autora se recusara a cobrar o cheque entregue pelo Réu ou que ela não quisera apresentá-lo a pagamento, mas apenas que se não provara que a mesma Autora tivesse apresentado o dito cheque a pagamento, o que são realidades bem diferentes – a não prova de um facto não significa a prova do facto contrário. Por outro lado, diz-se igualmente no mesmo acórdão que, na sua primeira parte – onde o recorrente procura, afinal, apoio para suscitar a questão dita interpretativa – as considerações feitas apenas teriam validade 'se a causa de pedir na presente acção se fundamentasse no cheque dos autos, no título de crédito', quando, na verdade, a decisão de improcedência do recurso assenta, essencialmente, no facto de a causa de pedir ser a falta de pagamento de uma determinada quantia.
3 - Decisão: Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso por, em violação do disposto no artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, o recorrente não ter suscitado a suposta questão de inconstitucionalidade de forma idónea, clara e perceptível, durante o processo, não ter alegado uma questão de inconstitucionalidade normativa ou, se assim se não entender, atribuir à decisão recorrida uma interpretação da norma ou normas em causa que aquela não acolheu.'
É desta decisão que o recorrente reclama para a conferência, sustentando na parte que interessa o seguinte:
'7. O Senhor Conselheiro Relator admite que 'o Tribunal da Relação do Porto tenha proferido uma decisão-surpresa, pelo que se considera estar verificado o pressuposto processual de suscitação da questão da constitucionalidade durante o processo' (cfr. fls. 6 da decisão ora reclamada).
8. Todavia, e de forma contraditória com a proposição anterior, o mesmo Senhor Conselheiro Relator vem sustentar que a questão da inconstitucionalidade não fora suscitada de forma idónea, clara e perceptível, de modo a permitir ao tribunal a quo pronúncia sobre tal questão!... Então se admite que foi proferida uma decisão surpresa, como é que se sustenta ao mesmo tempo que a questão não foi suscitada no tribunal a quo de forma idónea pelo ora recorrente.
9. O requerimento de arguição de nulidade, diz ainda o Senhor Conselheiro Relator, a fls. 5 da decisão reclamada, não é meio idóneo para suscitar a questão, na linha de jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional. Então, se assim é, como parece ser, a que propósito é que tem de ir discutir se, no requerimento de arguição de nulidade, a inconstitucionalidade foi ou não suscitada de forma idónea.
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12. A decisão sumária decide ainda não tomar conhecimento do recurso porque 'o recorrente não suscita uma questão de inconstitucionalidade normativa, questionando antes e directamente a decisão arguida de nula'. Tal argumento também não procede.
É certo que o ora recorrente considerou o acórdão recorrido nulo. Mas isso é questão diferente da que ora está suscitada.
É que, não sendo o acórdão nulo, como não foi reconhecido que era, isso significa que o Tribunal interpretou implicitamente os segmentos legais conjugados dos arts. 342º nº. 1 e 344º nº. 2 do C.C. no sentido expresso da alínea g) do requerimento do recurso, o que viola o princípio constitucional que foi invocado. Deste modo, não se pode pôr em dúvida de que está suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, tendo por referência um determinado entendimento implícito dado aos segmentos legais apontados.
13. A decisão sumária vem ainda dizer que a interpretação impugnada pelo recorrente não seria a que se acolhe no acórdão recorrido. Mas também sem razão. Diz o Senhor Conselheiro Relator que o acórdão recorrido não diz que a Autora se recusara a cobrar o cheque, mas apenas que não se provara que a mesma Autora tivesse apresentado o dito cheque a pagamento. Para 'realidade kafkeana' já basta a do acórdão recorrido. Não confundamos mais...
É que decorre dos autos – desde a p. i. até ao último acórdão da Relação – que a ora recorrida não apresentou efectivamente o cheque a pagamento, porque, tal como apresenta a sua causa de pedir, terá tido a tal informação de que não tinha provisão. Isto é inquestionável. Assim sendo, não pode questionar-se que o Tribunal da Relação, no seu surpreendente acórdão de 9 de Março de 1999, adoptou o entendimento que está em causa:
'Para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor, que entregou um cheque para pagamento de um débito, que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer, o ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento,' o que terá implicitamente feito com referência aos arts. 342º nº. 1 e 344º nº. 2 do C.C.
14. Por último, a decisão sumária vem ainda dizer que a questão dos autos não tem a ver com o cheque em causa, mas sim com o facto de a causa de pedir ser a falta de pagamento de uma determinada quantia. Também se não percebe ao que vem tal argumento.
É evidente que o que está em causa é o pagamento de uma determinada quantia. Mas a questão de inconstitucionalidade que ora se discute tem a ver com o ónus da prova que se coloca no quadro das relações jurídicas entre devedor e credor nas situações em que o devedor, com o acordo do credor, lhe entregou um cheque para satisfazer determinado pagamento.
15. Não colhem os argumentos da decisão sumária. O Tribunal Constitucional deve tomar conhecimento do recurso.
É imperioso e justo que o faça.' Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - A censura que o reclamante dirige à decisão sumária de fls. 200 centra-se nos seguintes pontos: Em primeiro lugar, quanto ao que nela se julga relativamente ao modo considerado inidóneo ou inadequado como o recorrente suscitara a questão de constitucionalidade. Em segundo lugar, sobre o decidido quanto ao objecto do recurso, nos termos em que o recorrente o definiu, entendido não como uma norma (ou uma sua interpretação) mas como a própria decisão aplicativa do direito – a inconstitucionalidade reportava-se à própria decisão judicial e não, como devia, face ao disposto no artigo 70º nº. 1 al. b) da LTC, a uma norma ou interpretação normativa. Em terceiro lugar, no que respeita ao julgado sobre a interpretação normativa que o recorrente atribuiu ao acórdão impugnado e que na decisão reclamada se entendeu não acolhida em tal acórdão. Por último, manifesta o reclamante estranheza quanto ao 'argumento' de a acção em causa nada ter a ver com o cheque emitido e entregue pelo recorrente à A, sendo a causa de pedir a falta de pagamento de uma determinada quantia. Vejamos, ponto por ponto, se o reclamante tem razão.
3 - Reconhece-se a procedência da argumentação do reclamante contra o decidido sobre a suscitação da questão de inconstitucionalidade. Na verdade, aceitou-se na decisão sumária que a decisão do acórdão da Relação do Porto, que julgara o recurso interposto da sentença de 1ª instância, 'se em si dificilmente se podia considerar imprevista ou surpreendente (...)' se pudesse ainda reputar de 'decisão-surpresa' no ponto em que outra era a fundamentação da sentença então impugnada. Admitindo que este argumento peque por alguma tolerância no âmbito das exigências que a jurisprudência deste Tribunal vem aceitando à regra da suscitação da questão de constitucionalidade 'durante o processo', a verdade é que a decisão sumária – repete-se – aceitou o decidido no acórdão de fls. 163 como decisão-surpresa e não há agora que o discutir. Mas, se era assim, todo o discurso argumentativo sobre o modo como o recorrente suscitara a questão de constitucionalidade na arguição de nulidades daquele acórdão era impertinente, já que essa questão nem sequer era dirimível no âmbito de uma tal arguição. O acórdão agora recorrido não é aquele que se pronunciou sobre as nulidades invocadas (e esta terá sido a razão do erro da decisão sumária, alimentada pelo facto de o recorrente ter indicado, em cumprimento do disposto no artigo 75º-A nº. 2 da LTC, o requerimento de arguição de nulidades como a peça processual em que suscitara a questão de constitucionalidade) mas o acórdão de fls. 163, razão por que, considerado como contendo decisão-surpresa, nada mais se devesse exigir do que apontar no requerimento de interposição do recurso para o TC, a questão de constitucionalidade que se pretendia submeter ao julgamento do TC.
4 – Não tem, porém, razão o reclamante quanto ao assinalado segundo fundamento de não admissibilidade do recurso. A questão é aqui – recorde-se – a de saber se a inconstitucionalidade arguida se reporta à decisão judicial ou a uma interpretação normativa. Deve agora atender-se ao que consta do requerimento de interposição do recurso que, no caso, não é mais do que a reprodução do que se continha na reclamação por nulidades do acórdão recorrido. Já atrás se transcreveram as alíneas g) e l) daquele requerimento; delas se extrai que o recorrente impugna a conformidade constitucional das normas dos artigos 342º nº. 1 e 344º nº. 2 do C. Civil no entendimento de que 'para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor, que entrega um cheque para pagamento de um débito, que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer o ónus de provar que o credor depositou e cobrou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento'. Ora, tal como se disse na decisão sumária reclamada, tomando embora como base o alegado na alínea g) da arguição de nulidades – o que, para o caso, é irrelevante, dada a assinalada repetição do que ali se disse na alínea g) do requerimento de interposição de recurso – o recorrente só formalmente questiona uma 'interpretação' normativa; o que o recorrente impugna, em bom rigor, é a aplicação que o acórdão da Relação faz das regras do ónus da prova onde, aliás, a operação estritamente interpretativa se limita à consideração de que a norma do artigo 342º nº. 1 do CC faz impender sobre o Réu o ónus de alegar e provar os factos susceptíveis de integrar o pagamento da quantia devida e exigida pelo A . Com esta interpretação o acórdão recorrido limita-se a subsumir os factos – bem ou mal é questão diversa – ao comando da referida norma. O recurso, tal como o recorrente o recorta, teria a natureza de um recurso de amparo que o nosso ordenamento jurídico-constitucional não acolheu. Na verdade, não pode inviamente reconduzir-se a questão de interpretação normativa aquela que se consubstancia numa aplicação (controvertida) do direito aos factos. O que o recorrente faz é enunciar toda a factualidade que entende provada e pertinente à solução da causa e, por discordar da aplicação que se faz das regras sobre o ónus da prova, converte essa aplicação em 'entendimento' ou
'interpretação' das normas respectivas. A 'decisão judicial' está assim, directa e substancialmente, em causa, no recurso interposto, contra o que resulta, entre outros, do artigo 70º nº. 1 da LTC.
5 – Em termos subsidiários – e claramente sem conceder – a decisão sumária coloca ainda a hipótese de se ter suscitado uma interpretação normativa. Mas, neste ponto, também se deve confirmar o decidido no sentido de que essa hipotética 'interpretação' não seria, de todo o modo, aquela que o recorrente impugnara. Com efeito, o entendimento que o recorrente imputara ao acórdão recorrido era o de que 'para obter a extinção da obrigação cabe ao devedor que entregou um cheque para pagamento de um débito que o credor aceitou para esse efeito, mas que se recusou a cobrar, ao contrário do que lhe competia fazer, o ónus de provar que o credor depositou tal cheque que ele não quis apresentar a pagamento'. Ora, como se deixou elucidado no acórdão sobre a arguição de nulidades e decorria do acórdão de fls. 163, o que se decidiu foi que o R. não provara que o cheque fora apresentado pela A a pagamento e que tivesse havido recusa desse pagamento, o que é diverso do facto – assente pelo recorrente e de que em parte derivaria a pretensa interpretação normativa – de a A se ter recusado a cobrar o cheque e de não o ter querido apresentar a pagamento. Por outro lado – e aqui a relevância de se ter assinalado que a causa de pedir não se fundava no cheque dos autos mas no não pagamento de uma determinada quantia, tal como o faz o acórdão recorrido – o apoio que o recorrente procurou para suscitar a questão interpretativa está contido na primeira parte do acórdão recorrido, parte esta que expressamente se afastou no dito acórdão como fundamentação do decidido. De resto, sempre se poderá dizer que, em bom rigor, a norma que constituiu fundamento da decisão foi a do nº. 2 e não a do nº. 1 do artigo 342º do Código Civil. De todo o modo, a solução dada a esta questão é irrelevante por ser bastante o não preenchimento do requisito referido em 4 para não admitir o recurso Por outras palavras, a razão que se reconheceu ao recorrente na impugnação do decidido quanto à questão do modo como suscitou a inconstitucionalidade, não é suficiente para revogar a decisão sumária reclamada que se confirma enquanto não admite o recurso por não ter objecto normas (ou a sua interpretação) mas a própria decisão judicial que as aplicou.
6 – Decisão Pelo exposto e em conclusão indefere-se a reclamação. Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 20 de Junho de 2000 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração junta) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, acompanhando a declaração de voto do Exmº Conselheiro Vice-Presidente, Luís Nunes de Almeida).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o recorrente impugnou uma determinada interpretação normativa das regras atinentes ao ónus da prova, não se podendo dizer, sequer, que a interpretação normativa impugnada não coincide exactamente com a interpretação adaptada pelo tribunal a quo. Com efeito, nada impede o Tribunal Constitucional de apreciar a norma numa dimensão menos extensa do que aquela que vem delimitada pelo recorrente.
Nesta conformidade, a meu ver, sempre competiria a este Tribunal apreciar as normas em causa, quando entendidas no sentido de que, para obter a extinção da obrigação, cabe ao devedor que entregou um cheque para pagamento de um débito, cheque que o credor aceitou para esse efeito, o ónus de provar que este tenha depositado o mesmo cheque e obtido a respectiva cobrança» - questão que sempre esteve em discussão nos presentes autos.
Por outro lado, também não se poderá argumentar com a circunstância de, em bom rigor, a norma que constituiu fundamento da decisão ter sido a do nº 2 e não a do nº 1 do artigo 342º do Código Civil.
Na verdade, no requerimento de interposição do recurso, o recorrente afirmou que 'a norma cuja inconstitucionalidade se argui é constituída pelos segmentos conjugados dos artigos 342º, nº 1, e 344º, nº 2, do C.C., e/ou outros implicitamente utilizados', sendo certo que não foi ele notificado, nos termos do artigo 75º-A da LTC, para precisar quais seriam os outros segmentos implicitamente utilizados, pelo que não seria agora legítimo excluir do âmbito do recurso o artigo 342º, nº 2, do Código Civil.
Nestes termos, teria deferido a reclamação.
Luís Nunes de Almeida