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Processo n.º 1270/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em Conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., recorrente nos autos em apreço, foi condenado por decisão de 1.ª instância, como co-autor material de um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) e 204.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.
Na sequência do recurso interposto desta decisão, viu a sua condenação criminal confirmada, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de outubro de 2013.
Arguida a nulidade daquele acórdão, viria a mesma a ser indeferida por acórdão do mesmo tribunal de 20 de novembro de 2013.
No mesmo requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão, recorreu ainda o recorrente “à cautela” desde logo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada LTC (fls. 56 e ss.), tendo este recurso sido admitido já na sequência da prolação do acórdão que indeferira a arguição de nulidade (fls. 66).
2. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
Em sede de exame preliminar foi proferida decisão a rejeitar o conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:
“2. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, sendo ainda indispensável que a norma cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida. Para além da exigência de objeto normativo, este tribunal tem entendido serem ainda requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a suscitação prévia da questão da constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal recorrido (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e artigo 72.º, n.º 2, da LTC) além do esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC).
3. Antes do mais cumpre assinalar que o requerimento de interposição de recurso, além de ter sido apresentado em simultâneo com a arguição de nulidade da decisão recorrida - o que a tornou dependente da decisão que sobre a referida arguição viesse a ser proferida -, e de conter alegações – apresentadas em momento manifestamente extemporâneo face ao disposto no artigo 79.º da LTC -, não cumpre o disposto no artigo 75.º da LTC, uma vez que não indica a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada (n.º 1), nem a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade (n.º 2). A prolação do despacho-convite a que alude o artigo 75.º-A, n.os 5 e 6 da LTC, configuraria, todavia, no presente caso, a prática de ato inútil, já que, para além das deficiências apontadas, o recurso padece de vício, que, por se traduzir na falta de pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade, nunca poderia ser suprido por via do aperfeiçoamento previsto na citada disposição legal, comprometendo definitivamente o seu prosseguimento.
4. Com efeito, da leitura das alegações de recurso apresentadas no tribunal recorrido (cfr. fls. 76 a 81) decorre à evidência, que o recorrente não suscitou, de forma adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa perante aquele tribunal.
Para que ocorra uma suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade é necessária a sua enunciação, de forma clara, expressa, direta e percetível, bem como a sua fundamentação, em termos minimamente concludentes, de forma a permitir que o tribunal recorrido se pronuncie sobre a questão de inconstitucionalidade levantada. Ora, em vão se procurará encontrar nas alegações produzidas perante o tribunal recorrido a invocação de qualquer inconstitucionalidade normativa. O que o recorrente fez naquele recurso foi impugnar o próprio teor da decisão ali recorrida (decisão de 1.ª instância) com o qual não se conformou, considerando que, ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido fez uma errada aplicação do direito infraconstitucional, em violação, desde logo, de preceitos do Código de Processo Penal e do Código Penal. E mesmo quando invoca princípios ou preceitos constitucionais, designadamente decorrentes do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o recorrente limita-se a imputar à própria decisão a sua violação, e não a qualquer norma com vocação de aplicação a outros casos, i.e. com carácter de generalidade e abstração. Atente-se, por todas, na última conclusão apresentada àquele recurso: «31ª O douto Acórdão recorrido violou o estabelecido nos arts. 32.º nº 1 da C.R.P., 61º nº 1 al. d) e 379.º nº 1 al. c) do C.P.P. e 48º do C.P.»
Não se cumprindo os requisitos legais para a admissão do recurso acima identificados, resta, então, decidir em conformidade.”
3. Não concordando com aquela decisão, na parte em que indeferiu o conhecimento do objeto do recurso, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sustentando a reclamação essencialmente nos seguintes fundamentos:
«1 - Nos termos do art. 399º do CPP estabelece o princípio geral da admissibilidade de recursos das sentenças, dos acórdãos e dos despachos judiciais; Por outro lado,
2 - A Constituição da República Portuguesa garante a todos os cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos nomeadamente os constitucionalmente consagrados (art. 20º da CRP);
3 - No que diz respeito ao processo penal, o princípio constitucional das garantias de defesa, impõe ao legislador que consagre a faculdade de os arguidos recorrerem de quaisquer atos judiciais que, no decurso do processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de quaisquer outros dos seus direitos fundamentais. Assim,
4 - O recurso em processo penal é uma forma de defesa, pelo que a Constituição da República Portuguesa impõe, que o legislador consagre nesse campo a faculdade de recorrer de todos e qualquer ato do juiz, restringindo-se apenas, quando dessa forma não se atinja o núcleo essencial do direito de defesa.
5 - No caso concreto dos autos, o arguido, ora recorrente e reclamante, entende, com o devido respeito pela opinião em contrário, e logo no seu recurso inicial invocou tais factos que o tribunal “a quo” no seu douto acórdão não teve em conta o consagrado no art. 32 nº 1 da CRP e que é concretizado no art. 61º nº 1, alínea d) do CPP. Porquanto,
6 - A Constituição consagra o direito ao silêncio dos arguidos e como tal não pode este silêncio ser interpretado como uma falta de arrependimento do arguido. Pois,
7 - Se o arguido se remeteu ao silêncio e se posteriormente dissesse ao tribunal que estava arrependido, estaria a confessar os factos, ainda que de forma indireta.
8 - É certo que o tribunal é livre na apreciação da prova e na formação da sua convicção. Porém,
9 - Têm que ter, sempre, em conta os princípios e direitos fundamentais dos arguidos constitucionalmente consagrados, o que não aconteceu no caso dos autos, com o devido respeito. Por isso,
10 - Não se entende o porquê da rejeição do recurso.
11 - É certo que o recorrente ao interpor o recurso apresentou de imediato as suas alegações. Porém,
12 - Com o devido respeito pela opinião em contrário, deveria o mesmo, caso assim se entendesse ser novamente notificado para apresentar as mesmas, considerando-se as previamente apresentadas como não escritas.
13 - Só se o recorrente não as viesse no prazo então concedido apresentar se deveria julgar o recurso deserto.
14 - Quanto à não concretização dos artigos que violam a constituição, o recorrente deveria ser convidado a indicá-los nos termos do art. 75º A da L.T.C., sanando-se assim o vício. Pois,
15 - No seu entender tanto no recurso para a Relação como nas alegações apresentadas o recorrente sempre pôs em causa que a decisão do tribunal “a quo” era inconstitucional, uma vez que a mesma violava um dos seus princípios fundamentais consagrados na Constituição, nomeadamente o estabelecido no artigo 32º nº 1 da CRP, o qual é concretizado no art. 61º nº 1 alínea d) do CPP. Pois,
16 - O princípio “nemo tenetur se ipsum accusare” reconhece o todo imputado da prática de um crime, o direito ao silêncio, sendo este direito a primeira e imediata expressão de liberdade (Ac. Tribunal da Relação de Évora - Proc. 199/11.OGDFAR.E1). Assim,
17 - E apesar de consagrado que o tribunal julga de acordo com a sua convicção, Este terá sempre de o fazer de acordo e não violando os princípios fundamentais dos arguidos.
18 - O direito ao silêncio é um direito dos arguidos e, com o devido respeito, não pode utilizar-se este para se concluir pela falta de arrependimento do arguido. Pelo que,
19 - O princípio da livre apreciação da prova e da convicção do juiz tem sempre que respeitar o direito ao silêncio do arguido. Pois,
20 - Do facto de este não falar não pode concluir-se que o mesmo está ou não arrependido.
21 - A garantia do direito ao silêncio dá ao arguido o legitimidade para não contribuir para a sua auto-responsabilização, nem é obrigado a produzir prova contra si próprio.
22 - A Constituição da República Portuguesa garante ao arguido que o mesmo pode fazer a sua defesa como bem entender e que se optar pelo silêncio não pode ser prejudicado, seja de que forma for.
23 - O Tribunal não pode tirar conclusões que levem à condenação devido ao silêncio, isto é, não pode aplicar-se uma pena mais gravosa só porque o arguido não falou, pois tal não é constitucionalmente permitido.
24 - No ordenamento jurídico português, concretamente no direito processual penal, o silêncio não pode ser valorado negativamente e utilizado contra quem dele se socorrer, sob pena de estarmos perante um método de obtenção de prova proibida e consequentemente de uma prova nula.
25 - “O direito ao silêncio é o âmago da prerrogativa do direito à não incriminação.”
26 - À semelhança do que acontece com a Constituição da República Portuguesa, CEDH e o TEDH, reconhecem o direito à não incriminação.
27 - O reconhecimento deste direito emana da tutela jurídica dos direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade individual e a presunção de inocência. Assim,
28 - Não poderia ser utilizado o silêncio do arguido para se concluir pelo não arrependimento do mesmo. Por outro lado,
29 - O direito ao silêncio é a “primeira e imediata expressão de liberdade” (Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se disse antes do Julgamento, 2011, pag. 555).
30 - É certo que a Constituição da República Portuguesa não contém uma consagração expressa do direito à não auto-incriminação, mas entende-se que o “nemo tenetur” configura um princípio constitucional implícito ou não escrito.
31 – “A consagração de uma norma com o conteúdo do art. 126º do CPP representou não só a continuação do respeito pela integridade pessoal e pela dignidade humana ao nível do processo penal”. Como norma processual fundamental 2dela dimanam irradiações suscetíveis de iluminar caminhos para além das áreas por ela diretamente cobertas.” (Figueiredo Dias, Costa Andrade, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, 2009, pág. 29).
32 - Dá Mesquita lembra que: “Mesmo no período em que era admitida a tortura na fase preparatória, o arguido não era obrigado a depor no julgamento”.
33 - Também em análise à Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, João Gomes de Sousa lembra que “o TEDH, reconhecendo que a obtenção de prova em violação ao direito ao silêncio do arguido e do direito de não contribuir para a sua própria incriminação são standards normativos internacionais reconhecidos e que estão no cerne da noção de processo equitativo tal como garantido pelo art. 6º da Convenção, centrou a razão de tais princípios, entre outros, na proteção do acusado, contra um constrangimento abusivo por parte das autoridades a fim de evitar erros judiciários”.
34 - O núcleo irredutível do “nemo tenetur” reside na não obrigatoriedade de contribuir para a auto incriminação através da palavra, no sentido da declaração prestada no processo e para o processo. Assim,
35 - Entende-se que o artigo que viola os artigos 31º e 32º da CRP é o 127º do CPP, o qual não consagra que a livre apreciação da prova e a convicção do tribunal estão limitados pelos princípios constitucionalmente consagrados, devendo o mesmo ser considerado inconstitucional.
36 - Sendo tudo o supra alegado o que resulta das alegações apresentadas com o recurso para o digníssimo Tribunal Constitucional. Deste modo,
37 - Com o devido respeito pela opinião em contrário, deve revogar-se a decisão de rejeição liminar do recurso e admitir-se o mesmo, prosseguindo os autos os demais termos legais.»
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência da mesma por verificação do fundamento da decisão reclamada.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Nos presentes autos foi proferida decisão, em sede de apreciação liminar, que rejeitou o conhecimento do objeto do recurso com fundamento em falta de suscitação prévia e adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Com efeito, para que o Tribunal Constitucional conheça de um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade é necessário que em fase anterior à do requerimento de recurso para este Tribunal, no decurso do processo, o recorrente tenha identificado expressamente a questão de inconstitucionalidade normativa, de forma expressa, direta e clara de modo a criar para o Tribunal a quo o dever de pronúncia sobre a matéria em causa.
6. Na reclamação ora apresentada o recorrente nada alega que permita infirmar o decidido.
Para contrariar o vício invocado que serviu de fundamento à decisão de não conhecimento do recurso, cabia ao reclamante demonstrar que, diferentemente do entendido na decisão reclamada, suscitou perante o tribunal recorrido uma questão de constitucionalidade normativa. Ora, a este propósito, o reclamante limita-se a referir que «no seu entender tanto no recurso para a Relação como nas alegações apresentadas, o recorrente sempre pôs em causa que a decisão do tribunal “a quo” era inconstitucional, uma vez que a mesma violava um dos princípios constitucionais consagrados na Constituição, nomeadamente, no artigo 32.º, n.º 1, da CRP (…)».
Esta alegação comprova que o recorrente não colocou ao tribunal recorrido uma questão de constitucionalidade normativa, antes imputou à própria decisão recorrida a violação da Constituição.
Ao recorrer para o Tribunal da Relação, o recorrente limitou-se, assim, a refutar a conformidade com a Constituição da decisão proferida em 1.ª instância, e não de qualquer norma que a decisão recorrida tivesse aplicado como razão de assim decidir. Desta forma, incumpriu o ónus da suscitação prévia e de forma adequada de uma questão de constitucionalidade, vício que, por configurar falta de pressuposto de conhecimento do recurso, se apresenta como insuscetível de ser suprido, designadamente por via do aperfeiçoamento previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6 da LTC.
Recorde-se que o sistema português de fiscalização de constitucionalidade apenas prevê o exercício pelo Tribunal Constitucional de um controlo estritamente normativo, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida.
Em face do exposto importa confirmar a decisão reclamada.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.