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Processo n.º 645/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão sumária do relator (decisão sumária n.º 551/2013), não se conheceu do recurso interposto nos autos pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão do Tribunal de Trabalho de Leiria que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, que responsabiliza a empresa pelas contraordenações cometidas pelo condutor, exceto se demonstrar que organizou o trabalho de modo a que este pudesse cumprir os regulamentos comunitários nela referenciados. Considerou o relator, para assim decidir, que, apesar dessa decisão de recusa, tinham sido avocadas, em fundamento da decisão final de absolvição da empresa arguida, outras razões de natureza infraconstitucional, que, só por si, suportariam o julgado, independentemente do juízo de inconstitucionalidade formulado, o que tornava inútil o conhecimento do recurso.
O Ministério Publico, não se conformando com tal decisão, dela reclamou para esta conferência, alegando, no essencial, que tais razões acrescidas não são autónomas do juízo de inconstitucionalidade mas decorrência dele, pelo que se justifica o conhecimento do recurso, implicando a sua eventual procedência a condenação da arguida.
A arguida A., Lda., ora recorrida, notificada para o efeito, não apresentou resposta.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Como relatado, está em causa a norma do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, que responsabiliza a empresa por qualquer infração cometida pelo condutor, exceto se demonstrar que organizou o trabalho de modo a que este possa cumprir o disposto nos regulamentos comunitários nela identificados.
O Tribunal recorrido decidiu, a final, recusar a sua aplicação, «por materialmente inconstitucional e violadora dos princípios da culpa e de proibição da inversão do ónus da prova constitucionalmente consagrados no art.º 32.º da CRP», absolvendo, em consequência, a arguida da contraordenação que lhe foi imputada.
Importa, pois, aferir, com base na argumentação antes desenvolvida, se a decisão absolutória proferida nos autos resultou exclusiva ou decisivamente de um tal juízo de inconstitucionalidade, como parece decorrer do dispositivo, ou, ao invés, assenta também noutras razões jurídicas capazes de, só por si, determinarem esse julgamento, caso em que, como o Tribunal Constitucional tem defendido, não se justifica, por inútil, o conhecimento do mérito do recurso.
Lê-se na decisão recorrida, logo de início, o seguinte:
«Se olhássemos apenas que superficialmente para a ‘prova’ produzida nos autos de instrução da autoridade administrativa, unicamente documental, não sustentada por qualquer depoimento (…), configurada no auto de notícia, falta de motivação da decisão que permita imputar objetiva e subjetivamente a infração à recorrente (a não ser por esta ser a entidade empregadora do condutor) verificaríamos que sempre a arguida teria que ser absolvida da prática das infrações uma vez que nem no auto de notícia nem na decisão se encontra materialidade suficiente que lhe permita imputar a contraordenação.
Com efeito, retira-se da matéria dada como provada que à recorrente é imputada a prática da infração porque ‘a entidade empregadora tem o dever de organização e vigilância sobre a atividade dos seus condutores de forma a que estes deem cumprimento aos Regulamentos que regem o transporte rodoviário, devendo para tanto não apenas dar a adequada formação, como fiscalizar o cumprimento das suas obrigações. Refere-se, ainda, que a arguida ‘não comprovou’ que a atuação do seu motorista foi contrária às suas ordens.
Não se encontra na referida decisão, nulidade que poderia ter sido arguida, qual a matéria de facto alegada pela recorrente que resultou não provada, não analisando a prova de forma crítica que permita ao julgador sancionar a motivação que presidiu à condenação da arguida.
Assim, aplicando-se literalmente, como é do entendimento da recorrente, a Lei n.º 27/2010, nomeadamente o seu art.13.º, a empresa sempre seria responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, o que apenas poderia ser excluído se demonstrasse que organizou o trabalho de modo que o condutor possa cumprir os Regs (CEE) 3821/85 e 561/2006, casos em que seria responsável o condutor.
Assim, para que lhe não seja imputada a infração é sobre a empresa transportadora que recai o ónus de demonstrar que organizou o trabalho de modo a que se pudessem cumprir os referidos Regs (CEE).
Ora, entender que a inversão do ónus da prova prevista no Dec Lei 27/2010, que imputa à arguida o ónus de provar que usou de toda a diligência na organização dos tempos de trabalho, nomeadamente aqui entendemos a organização da jornada diária de trabalho, tempos de trabalho e de repouso, e a formação dada aos seus motoristas nomeadamente no que respeita à utilização de tacógrafos, seria legítima, contraria todas as normas processuais penais, contraordenacionais e constitucionais, nomeadamente a violação do princípio da presunção de inocência do arguido (…).
Ora, pese embora a formulação condicional usada, parece certo que não se questiona, desde logo, a bondade interpretativa de um tal entendimento. Com efeito, reconhece-se, mais adiante, que a Lei 27/2010, no ora sindicado normativo legal, efetivamente «veio consagrar (…) uma forma mitigada da responsabilidade objetiva ou presumida, pois que, consagrando a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais».
O que se questiona é a valia constitucional de tal solução legal, em face dos princípios constitucionais da culpa e de proibição da inversão do ónus da prova (artigo 32.º da Constituição), que a decisão recorrida considera aplicáveis no âmbito contraordenacional, visando todo o subsequente discurso demonstrar que «o ordenamento jurídico-constitucional português se não compadece com uma qualquer presunção de culpa». As referências à legislação ordinária que, nesse âmbito, dela constam (artigo 1.º do Regime Geral das Contraordenações e artigo 551.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2009), visam apenas demonstrar que a regra imperante no domínio contraordenacional é o da responsabilidade subjetiva, tal como o impõe a Constituição, assumindo-se, pois, no contexto argumentativo usado, como mera manifestação do correspondente princípio constitucional e não demonstração sistemática de que é também essa a regra a extrair do artigo 13.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 27/2010.
Por isso é que, fazendo diretamente operar tais princípios constitucionais, se apontam deficiências factuais à decisão recorrida, que, «valendo-se da presunção de culpa ‘permitida’ pela Lei», se basta «com o facto de o motorista infrator ser trabalhador da arguida para, e sem mais, aplicar o diploma em questão, considerando esta responsável, não exigindo qualquer comportamento ilícito ou culposo». O reconhecimento de tais deficiências decorre, pois, da direta aplicação dos invocados princípios constitucionais, assumindo-se, pois, também aqui, como consequência direta do juízo de inconstitucionalidade formulado e não razão autónoma que, independentemente dele, implica a absolvição da arguida.
Afigura-se, pois, útil o conhecimento do objeto do recurso, como defende o Ministério Público, pelo que o recurso deve prosseguir os termos legalmente previstos para esse efeito, notificando-se as partes para apresentarem as competentes alegações.
3. Pelo exposto, decide-se deferir a reclamação e, em consequência, ordenar o prosseguimento do recurso, notificando-se o recorrente para apresentar alegações.
Sem custas.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2014. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.