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Proc. n.º 7/97
1ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. Por acórdão, de 14 de Abril de 1993, do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, foram os RR. S... e F..., ora recorrentes, condenados, o primeiro, por cada um dos dois crimes de corrupção passiva, p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presídio militar, e, em cúmulo jurídico destas penas com a pena de 4 (quatro) meses de prisão militar sofrida no processo n.º 88/92 do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de presídio militar, e, o segundo, por cada um dos dois crimes de corrupção passiva, p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presídio militar, e, em cúmulo jurídico, na pena
única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de presídio militar. Ambos os RR. beneficiaram do perdão de um ano de presídio militar que incidiu sobre a pena única que lhes foi aplicada, ao abrigo do disposto nos arts. 14º, n.ºs 1 al. b), 2, 3 e 4º, e 15º da Lei 23/91, de 4 de Julho. Inconformados recorreram, então, os RR. para o Supremo Tribunal Militar, que, por Acórdão de 9 de Junho de 1993, julgando verificada a nulidade essencial prevista na alínea d) do art. 458º do Código de Justiça Militar, ocorrida na audiência de julgamento, decidiu anular o julgamento, ao abrigo do disposto no art. 457º n.º2 do mesmo código, determinando que fosse reformado no mesmo tribunal de instância.
2. Efectuado novo julgamento, por Acórdão de 17 de Julho de 1994, o 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, condenou os RR. S... e F..., ora recorrentes, o primeiro, por cada um dos dois crimes de corrupção passiva, p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 4
(quatro) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presídio militar, e, em cúmulo jurídico destas penas com a pena de 4 (quatro) meses de prisão militar sofrida no Proc. n.º 88/92 do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, na pena
única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de presídio militar, e, o segundo, por cada um dos dois crimes de corrupção passiva, p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presídio militar, e, em cúmulo jurídico, na pena
única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de presídio militar. Sobre a pena única aplicada a cada um dos RR. incidiu o perdão de 2 anos de presídio militar, sendo, o primeiro ano, ao abrigo do disposto nos arts. 14º, n.º1 al. b), n.ºs 2, 3 e 4º, e 15º da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, e, o segundo, nos termos do art. 8º, n.º 1, al. d) e n.º2, da Lei 15/94, de 11 de Maio, sob a condição prevista no seu art. 11º. Deste acórdão interpuseram os RR. recurso para o Supremo Tribunal Militar, invocando, por um lado, a inconstitucionalidade do art. 191º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, por violação do art. 13º da Constituição da República, e, por outro, a falta de um dos elementos do tipo legal do crime por que foram condenados, questionando ainda a medida da pena aplicada.
3. Entretanto, em 15 de Setembro de 1994, através do requerimento que consta de fls. 952 a 955, veio o R. S... requerer a repetição do julgamento, arguindo a nulidade resultante do facto de o Juiz Vogal, Coronel de Infantaria A..., que integrou o Colectivo de Juizes, ter intervindo, na qualidade de Promotor de Justiça, no Processo n.º 88/92, também do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa - no qual o R. foi condenado na pena de 4 (quatro) meses de prisão militar e cuja pena entrou na formação do cúmulo jurídico operado nos presentes autos -, em violação do disposto no art. 216º, n.º1, al. d), do Código de Justiça Militar e 32º da Constituição da República. Sobre este requerimento incidiu o despacho de fls. 998/999, que desatendendo a arguida nulidade, com fundamento na não verificação no caso dos presentes autos de nenhuma das causas de impedimento referidas no art. 216º n.º 3 do Código de Justiça Militar e no art. 39º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal de
1987, indeferiu o requerimento do R.. Deste despacho interpôs recurso R. S..., motivando-o conforme consta de fls.
1010 a 1014.
4. Por sua vez, por requerimento de 5 de Dezembro de 1994, veio o R. António José Calisto Nunes Rocha, também julgado nestes autos e condenado pelo acórdão de 17 de Julho de 1994, supra citado em 2, alegar que só agora se apercebeu que, na sequência do acórdão do Supremo Tribunal Militar de 09/06/93, o julgamento tinha sido repetido no mesmo 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, sob a presidência do mesmo Juiz, Coronel de Infantaria, na reserva, Nuno Vilares Capeda, que integrou o Colectivo de Juizes do 1º julgamento, o que, em seu entendimento, implica a nulidade do julgamento, por violação do disposto no art. 436º do Código de Processo Penal, subsidiariamente aplicável à jurisdição militar (cfr. fls. 1020 a 1022). Por despacho de fls. 1024/1025, foi indeferido o requerimento do R., que interpôs o competente recurso, motivando-o nos termos de fls. 1029 a 1033, ao qual aderiram os ora recorrentes S... e F... (cfr. fls. 1042 e 1043). O Promotor de Justiça junto do Supremo Tribunal Militar, na vista que teve dos autos, pugnou pela improcedência dos recursos e, ao abrigo do disposto no art.
440º, n.º 2, al. b), do Código de Justiça Militar, pediu o agravamento das penas aplicadas a cada um dos RR.. Notificados os RR. responderam arguindo a inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 2 do art. 440º do Código de Justiça Militar por violação dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 13º e 32º da Lei Fundamental (cfr. fls. 1079 a 1084). Por acórdão de 12 de Dezembro de 1996, o Supremo Tribunal Militar negou provimento aos recursos interpostos pelos recorrentes S... e F... e, revogando o acórdão recorrido, condenou-os nas seguintes penas: o «O recorrente S..., pela autoria de dois crimes p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presídio militar, por cada um deles e, em cúmulo jurídico destas penas com a pena de 4 (quatro) meses de prisão militar imposta no processo n.º 88/92 do 1º T.M.T. de Lisboa, na pena única de 4
(quatro) anos e 3 (três) meses de presídio militar; o O recorrente F..., pela autoria de dois crimes, p.p. pelo art. 191º nº1 do Código de Justiça Militar, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, substituídos por igual tempo de presidio militar, por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de presídio militar». A ambos os RR. foram mantidos os perdões de pena anteriormente aplicados.
5. Inconformados vieram estes réus interpor recurso para o Tribunal Constitucional por entenderem que tal decisão, ao fazer aplicação dos arts. 440º nº2, 457º nº2, 214º e 216º, todos do Código de Justiça Militar, na interpretação que faz dos mesmos, viola, entre outros, os princípios constitucionais estabelecidos nos arts. 13º, 18º, 32º, 113º, 205º e segs., em especial os arts.
215º, 217º e 221º. O recorrente Francisco José de Carvalho Russo concluiu a sua motivação de recurso do seguinte modo:
«1ª) Havendo anulação do julgamento pelo Supremo Tribunal Militar, deve fazer-se aplicação da regra do artigo 436º do Código de Processo Penal, que prevê o reenvio do processo para o tribunal de categoria e composição idênticas que se encontrar mais próximo, para novo julgamento, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 4º do Código de Justiça Militar;
2ª) Da decisão de anulação do julgamento resulta, necessariamente a desafectação da jurisdição do tribunal que proferiu a decisão revogada;
3ª) Trata-se de situações paralelas ao impedimento ou suspeição dos meritíssimos juizes que integraram o colectivo que proferiu a dita decisão revogada pelo Supremo Tribunal Militar;
4ª) A figura do reenvio, prevista nos artigos 436º e 431º do Código de Processo Penal, impõe, por observância da garantia de imparcialidade, que o novo julgamento seja feito com, pelo menos, diferentes juizes ainda que no mesmo tribunal;
5ª) Quer se trate da figura jurídica do reenvio ou da reformulação, os arguidos em ambas têm direito a que na composição do tribunal que repete o seu julgamento não intervenha nenhum dos juizes que já participaram em anterior julgamento, anulado e mandado repetir;
6ª) A diferente estrutura dos crimes militares e da composição dos tribunais militares só se justifica nos estritos limites da defesa nacional e não em questões processuais, onde estão em causa as garantias de defesa dos arguidos;
7ª) O Código de Justiça Militar, em vigor desde 10 de Abril de 1977, no seu artigo 440º, veio 'adoptar' em pleno a regra consagrada no artigo 667º do Código de Processo Penal então em vigor, que impunha a 'proibição da reformatio in pejus', salvo nas situações previstas no n.º 2, em tudo idêntico ao n.º 2 do artigo 440º do C.J.M.;
8ª) Tal 'adopção' apenas pode significar que o legislador pretendeu equiparar, pelo menos no que concerne aos direitos e garantias dos arguidos, os direitos dos arguidos em processo militar, com os direitos dos arguidos em sede de processo penal comum, equiparação imposta pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas;
9ª) A reformulação do Código de Processo Penal ocorrida em 1 de Junho de 1987, veio reforçar essas garantias de defesa dos arguidos em processo penal, retirando do texto do art. 409º, que trata da 'proibição da reformatio in pejus', as excepções a essa proibição, anteriormente previstas;
10ª) Essa actualização do Código de Processo Penal com alteração substancial do regime da 'proibição da reformatio in pejus', traduz-se num inquestionável aumento e consolidação dos direitos processuais dos arguidos;
11ª) Tal alteração substancial da lei processual penal, não teve, contudo, até ao momento, paralelo na lei penal militar, que mantém o mesmo texto desde há cerca de 20 (vinte) anos, na esteira de um já ultrapassado Código de Processo Penal.
12ª) Impõe-se a actualização do Código de Justiça Militar face aos direitos, liberdades e garantias consagrados ao nível constitucional, e que respeitam a todos os cidadãos sejam eles civis ou militares;
13ª) Pois, num Estado de Direito Democrático como é o nosso, não podemos consentir na existência de duas JUSTIÇAS PARALELAS: Uma para os CIDADÃOS COMUNS e OUTRA para os CIDADÃOS MILITARES;
14ª) Assim, enquanto essa actualização não se verifica, quiçá por inércia do legislador, há que afastar a aplicação das normas desse diploma que, ultrapassadas, violam flagrantemente os princípios constitucionais, nomeadamente, os princípios consagrados nos arts. 13º, 18º, 29º e 32º;
15ª) O Acórdão em causa, aplicou preceitos ou deles fez interpretação inconstitucional, com violação dos arts. 13º, 18º, 20º, 32º, 207º, 215º, 217º e
221º, todos da Lei Fundamental e como tal devendo ser declarado, com as legais consequências ». O recorrente S..., por sua vez, concluiu assim as suas alegações de recurso:
« 1ª) Não pode intervir no julgamento como Juiz, quem tenha tido intervenção como Promotor de Justiça em processo conexo, ainda que só relativamente a um dos arguidos;
2ª) Não obsta a tal, o facto dessa conexão se estabelecer apenas relativamente ao cúmulo jurídico, uma vez que, a decisão é unitária e insusceptível de qualquer cisão;
3ª) É inquestionável que a Constituição da república Portuguesa, ao autonomizar a carreira da judicatura da do Ministério Público, fê-lo para garantia de defesa dos arguidos;
4ª) Havendo anulação do julgamento pelo Supremo Tribunal Militar, deve fazer-se aplicação da regra do artigo 436º do Código de Processo Penal, que prevê o reenvio do processo para o tribunal de categoria e composição idênticas que se encontrar mais próximo, para novo julgamento, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 4º do Código de Justiça Militar;
5ª) Da decisão de anulação do julgamento resulta, necessariamente a desafectação da jurisdição do tribunal que proferiu a decisão revogada;
6ª) Trata-se de situações paralelas ao impedimento ou suspeição dos meritíssimos juizes que integraram o colectivo que proferiu a dita decisão revogada pelo Supremo Tribunal Militar;
7ª) A figura do reenvio, prevista nos artigos 436º e 431º do Código de Processo Penal, impõe, por observância da garantia de imparcialidade, que o novo julgamento seja feito com, pelo menos, diferentes juizes ainda que no mesmo tribunal;
8ª) Quer se trate da figura jurídica do reenvio ou da reformulação, os arguidos em ambas têm direito a que na composição do tribunal que repete o seu julgamento não intervenha nenhum dos juizes que já participaram em anterior julgamento, anulado e mandado repetir;
9ª) A diferente estrutura dos crimes militares e da composição dos tribunais militares só se justifica nos estritos limites da defesa nacional e não em questões processuais, onde estão em causa as garantias de defesa dos arguidos;
10ª) O Código de Justiça Militar, em vigor desde 10 de Abril de 1977, no seu artigo 440º, veio 'adoptar' em pleno a regra consagrada no artigo 667º do Código de Processo Penal então em vigor, que impunha a 'proibição da reformatio in pejus', salvo nas situações previstas no n.º 2, em tudo idêntico ao n.º 2 do artigo 440º do C.J.M.;
11ª) Tal 'adopção' apenas pode significar que o legislador pretendeu equiparar, pelo menos no que concerne aos direitos e garantias dos arguidos, os direitos dos arguidos em processo militar, com os direitos dos arguidos em sede de processo penal comum, equiparação imposta pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas;
12ª) A reformulação do Código de Processo Penal ocorrida em 1 de Junho de 1987, veio reforçar essas garantias de defesa dos arguidos em processo penal, retirando do texto do art. 409º, que trata da 'proibição da reformatio in pejus', as excepções a essa proibição, anteriormente previstas;
13ª) Essa actualização do Código de Processo Penal com alteração substancial do regime da 'proibição da reformatio in pejus', traduz-se num inquestionável aumento e consolidação dos direitos processuais dos arguidos;
14ª) Tal alteração substancial da lei processual penal, não teve, contudo, até ao momento, paralelo na lei penal militar, que mantém o mesmo texto desde há cerca de 20 (vinte) anos, na esteira de um já ultrapassado Código de Processo Penal.
15ª) Impõe-se a actualização do Código de Justiça Militar face aos direitos, liberdades e garantias consagrados ao nível constitucional, e que respeitam a todos os cidadãos sejam eles civis ou militares;
16ª) Pois, num Estado de Direito Democrático como é o nosso, não podemos consentir na existência de duas JUSTIÇAS PARALELAS: Uma para os CIDADÃOS COMUNS e OUTRA para os CIDADÃOS MILITARES;
17ª) Assim, enquanto essa actualização não se verifica, quiçá por inércia do legislador, há que afastar a aplicação das normas desse diploma que, ultrapassadas, violam flagrantemente os princípios constitucionais, nomeadamente, os princípios consagrados nos arts. 13º, 18º, 29º e 32º;
18ª) O Acórdão em causa, aplicou preceitos ou deles fez interpretação inconstitucional, com violação dos arts. 13º, 18º, 20º, 32º, 207º, 215º, 217º e
221º, todos da Lei Fundamental e como tal devendo ser declarado, com as legais consequências ». O Ministério Público, nas contra-alegações, considerou dever restringir-se o objecto do recurso à norma constante do art. 440º, n.º 2, al. b), do Código de Justiça Militar, e pugnando pela improcedência do recurso, concluiu que:
« Não é inconstitucional, pois não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os invocados pelos recorrentes, a norma constante do artigo 440º, n.º 2, alínea b) do Código de Justiça Militar ».
Cumpre decidir: II
1. - No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, os recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 214º e 216º, 457º n.º2 e 440º n.º2 do Código de Justiça Militar, na interpretação que deles dizem ter sido feita na decisão recorrida e que consideram desconforme com os princípios constitucionais consagrados nos artigos 13º, 18º, 29º, 32º, 113º, 205º e segs., em especial nos artigos 215º,
217º e 221º.
2. Constitui jurisprudência corrente e incontroversa deste Tribunal, face ao que dispõem os artigos 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República, e 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que o recurso de constitucionalidade previsto nessas normas deve congregar, para ser recebido, vários pressupostos, tais como:
a) A questão de inconstitucionalidade da norma que serve de fundamento ao recurso, deve ser suscitada durante o processo, entendendo-se esta locução em sentido funcional, de modo a que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da questão antes de esgotado o respectivo poder jurisdicional;
b) A aplicação pelo tribunal da norma questionada de forma efectiva, em termos de constituir essa norma, na sua totalidade ou em algum dos seus segmentos ou, ainda, numa dada interpretação, uma das rationes decidendi da decisão;
c) A exaustão dos recursos ordinários, incidindo o recurso sobre decisão que não admita recurso ordinário, por a lei o não prever ou por haverem sido esgotados os que no caso cabiam;
d) Que tenha sido o recorrente a parte que suscitou a questão de constitucionalidade, sendo o recurso restrito ao conhecimento da questão suscitada (cfr., por todos o acórdão n.º 192/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992).
Ora, da análise dos autos verifica-se que o acórdão recorrido não fez aplicação das normas constantes dos arts. 214º, 216º e 457º n.º2 do Código de Justiça Militar.
Vejamos:
3. Com o requerimento de 15/09/94, pretendeu o ora recorrente S..., obter a declaração de nulidade do julgamento efectuado nestes autos por nele ter participado como juiz vogal quem, como promotor de justiça, interveio no julgamento de outro processo, onde o recorrente foi condenado em pena que entrou no cúmulo jurídico aqui efectuado.
O 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, por despacho de 21/12/94, considerando que « ... não existia qualquer impedimento na participação no Colectivo por parte do Exmº Juiz Vogal para julgamento da matéria imputada ao réu no Processo Principal n.º 87/92 e Apenso 124/92 » indeferiu a pretensão do ora recorrente.
Na motivação do recurso interposto desta decisão o recorrente concluiu serem inconstitucionais as normas constantes dos arts. 214º e 216º do Código de Justiça Militar, por violarem os arts. 32º e 224º da Constituição da República, se interpretadas em sentido diverso do que propõe, ou seja, se interpretadas no sentido de permitirem a intervenção no julgamento de um processo como Juiz quem tenha tido intervenção em processo conexo como Promotor de Justiça, ainda que a conexão diga respeito apenas à realização do cúmulo jurídico de penas (cfr. conclusões 1ª, 2ª e 8ª).
Sobre esta questão, que constituiu o objecto do primeiro dos recursos apreciados no aresto recorrido, considerou o Supremo Tribunal Militar que:
« É indubitável que o disposto no art. 39º do Código de Processo Penal é aplicável ao processo criminal militar, pelo que 'nenhum juiz pode exercer a sua função em processo penal quando tiver intervindo no processo como representante do Ministério Público'. Esta proibição traduz-se em impedimento do juiz em causa, o qual, nos termos dos arts. 41º, n.ºs 1 e 2 e 42º, n.º 1 do C.P.P. deve ser declarado pelo próprio juiz impedido e pode ser requerido por qualquer das partes, havendo recurso do despacho que não reconheceu o impedimento. »
Assim, decidiu-se neste aresto que:
« ... não tendo o Coronel Simões Gamboa declarado o seu impedimento, nem este sido requerido, é obvio que ele não pode agora ser invocado, considerando-se sanada a eventual irregularidade havida com a intervenção daquele oficial. »
(destaque e sublinhados nossos). Porém, ainda assim, o Supremo Tribunal Militar pronunciou-se sobre a questão suscitada, tendo concluído no sentido da não verificação do impedimento invocado pelos recorrentes, mas decidiu-a com referência à norma do artigo 39º do Código de Processo Penal, que considerou aplicável em processo criminal militar, e não com base nas normas constantes dos arts. 214º e 216º do Código de Justiça Militar.
Do exposto, resulta, inequivocamente, que a decisão recorrida não fez aplicação, como fundamento da decisão, dos preceitos cuja interpretação o recorrente arguiu de inconstitucional.
4. Também resulta manifesto que a decisão recorrida não fez aplicação da norma do art. 457º, n.º2, do Código de Justiça Militar.
Na verdade, conhecendo do segundo recurso interposto pelos recorrentes, o Supremo Tribunal Militar julgou-o improcedente com fundamento em que:
«Quanto ao recurso ... sobre a irregular intervenção do Coronel Mota Cardoso dir-se-á apenas que a repetição do julgamento foi feita no Tribunal a quo em cumprimento do acórdão deste Supremo Tribunal, transitado em julgado, que ordenou, nos termos do art. 457º, n.º2 do C.J.M., que a reforma do julgamento fosse feita no mesmo Tribunal, o que desde logo implica, por um lado o afastamento do disposto no art. 436º do C.P. Penal, e por outro a intervenção dos mesmos juizes se, como foi o caso do Coronel Mota Cardoso, continuarem no exercício dos seus cargos. Qualquer eventual nulidade ou inconstitucionalidade resultante da aplicação do art. 457º, n.º2 do C.J.M. ao novo julgamento não pode ser conhecida pela obediência devida no caso julgado.» (sublinhado e destaque nossos)
Foi, pois, com base no princípio do caso julgado que se não aplicou a norma em referência.
5. Assim, embora tenham sido suscitadas durante o processo questões de inconstitucionalidade relativamente às normas constantes dos artigos
214º, 216º e 457º, n.º2 do Código de Justiça Militar, o certo é que a decisão recorrida não aplicou qualquer dessas normas - ou uma sua dimensão interpretativa - como seu suporte e ratio decidendi. O mesmo é dizer que não se verifica, assim, um dos pressupostos de admissibilidade, nessa parte, do recurso em causa, de indispensável congregação. Deste modo, resta apreciar da constitucionalidade da norma do artigo 440º, n.º2, al. b) do Código de Justiça Militar, que os recorrentes entendem violar os princípios constitucionais consagrados nos artigos 13º, 18º, 29º e 32º. III
1. A proibição da reformatio in pejus no Código de Justiça Militar encontra-se regulada no artigo 440º deste código, que estabelece o seguinte:
« 1. Interposto recurso de uma decisão condenatória somente pelo réu, pelo promotor de justiça no exclusivo interesse da defesa ou pelo réu e pelo promotor nesse exclusivo interesse, o Supremo Tribunal Militar não pode, em prejuízo de qualquer dos réus, ainda que não recorrente: a. Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida; b. Revogar o benefício da substituição da pena por outra menos grave; c. Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
2. A proibição estabelecida neste artigo não se verifica: a. (...) b. Quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de três dias». No caso dos autos, a questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes diz respeito à excepção aberta pela alínea b) do n.º 2 ao princípio da proibição da reformatio in pejus, tal como ela é caracteriza no n.º 1 do preceito supra citado. Entendeu o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar, na vista inicial que teve dos autos, que « ... as penas aplicadas pela primeira instância foram graduadas com benevolência e a global imposta ficou aquém do que seria adequado, dado o grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo, o modo de execução dos crimes e a gravidade das suas consequências para o prestigio da GNR
...» e, em consonância com tal entendimento, promoveu a agravação das penas aplicadas a cada um dos réus, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º2 do artigo 440º do Código de Justiça Militar. Por sua vez, os RR., notificados para se pronunciarem, logo aduziram a inconstitucionalidade da norma em causa, que consideram violar os princípios constitucionais consagrados nos artigos 13º e 32º da lei Fundamental. Este, porém, não foi o entendimento do Supremo Tribunal Militar que, não julgando inconstitucional a norma em causa, agravou as penas aplicadas aos ora recorrentes. A este respeito, considerou o Supremo Tribunal Militar, por um lado, que, em vários do seus arestos, tem o Tribunal Constitucional entendido que não viola as garantias de defesa do arguido constitucionalmente tuteladas, a possibilidade de um Tribunal superior, com base nos factos constantes da acusação e dados por provados, condenar o réu em pena mais grave do que a imposta no tribunal de instância, desde que o acusado tenha a possibilidade de se defender, o que sucede nos recursos interpostos pelo Ministério Público ou pelo Assistente, bem como nos casos em que o pedido de agravação é formulado por aquele, e, por outro, quanto ao facto de o artigo 409º do Código de Processo Penal proibir em absoluto a reformatio in pejus das penas de prisão, esta diferenciação de tratamento em relação ao direito castrense está justificada pela diferença dos dois direitos processuais aplicáveis a cada uma das jurisdições e pela diferente composição dos tribunais comuns e militares e ainda o correspondente Ministério Público.
2. O sentido da reformatio in pejus é o de obstar a que o arguido veja alterada a sentença penal, em seu prejuízo, quando só a defesa recorreu, ou mesmo quando também o Ministério Público recorreu, mas no exclusivo interesse do arguido. Importa, antes de mais, fazer uma breve resenha histórica e verificar o tratamento dado a este instituto na jurisdição penal comum e na militar. O Código de Processo Penal de 1929, na sua versão originária, não se referia expressamente ao âmbito do conhecimento do recurso pelo tribunal superior, mas quer a doutrina quer a jurisprudência inclinaram-se para a possibilidade de agravação da pena ao recorrente, embora em recurso só por ele interposto, vindo esta orientação predominante a obter consagração no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Maio de 1950. Cerca de duas décadas depois, verificou-se um movimento a favor da proibição da reformatio in pejus, ao qual não foram alheias as, então, recentes tomadas de posição nas legislações europeias continentais contra tal instituto, que culminou com a apresentação à Assembleia Nacional de um projecto de lei com vista à alteração do art. 667º do Código de Processo Penal, cuja redacção foi introduzida pela Lei n.º 2139, de 14 de Março de 1969. O Código de Processo Penal de 1987 ampliou, no seu art. 409º (versão original) a proibição da reformatio in pejus, fazendo cessar, designadamente, a possibilidade de o Ministério Público no tribunal superior pedir a agravação da pena, no caso de o recurso ter sido interposto só pelo arguido ou pelo Ministério Público no interesse deste. Por sua vez, a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que procedeu à reforma do Código de Processo Penal de 1987, ainda foi mais radical na proibição, apenas permitindo a agravação da pena de multa, se a situação financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível (cfr. art. 409º n.º1 e 2). Algo diferente foi, porém, a evolução verificada no processo penal militar. O Código de Justiça Militar de 1925 proibia a reformatio in pejus no seu art.
532º, proibição que se manteve sem ressalvas, apesar da orientação consagrada no Assento de 4 de Maio de 1950, para o direito criminal comum, até que o Decreto-Lei n.º 46206, de 27 de Fevereiro de 1965, a estabeleceu também para o processo criminal militar. Mas o Código de Justiça Militar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, consagrou a proibição da reformatio in pejus no seu art. 440º, em termos idênticos aos do citado art. 667º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção da Lei n.º 2139, de 14 de Março de 1969.
3. A questão de constitucionalidade sub judice está em estrita relação com o visto inicial do Ministério Público nos termos do artigo 444º do Código de Justiça Militar, pois foi nesse momento que este magistrado se pronunciou sobre a agravação da pena [cfr. artigo 440º n.º 2, alínea b)]. Esta situação é idêntica à que se colocava no Código de Processo Penal de 1929 com o artigo 664º e 667º, § 1º, n.º 2, que também dava possibilidade ao Ministério Público junto do tribunal superior de se pronunciar no visto inicial do processo pela agravação da pena. O Tribunal Constitucional, no seu labor jurisprudencial, julgou inconstitucional a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, por considerar que esta norma (reproduzida no essencial no artigo 416º do Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro), quando interpretada no sentido de conceder ao Ministério Público, para além de qualquer resposta ou contradita da defesa a faculdade de trazer aos autos uma nova e eventual mais profunda argumentação contra o arguido, por violação do artigo 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição (Acórdão n.º 150/87, de 6 de Maio, publicado no Diário da República, IIª Série, de 18/09/87; BMJ n.º 367, pág. 210; e ATC, Vol.
9º, pág. 709). Ponderou-se, então, neste aresto, a respeito da conformidade deste preceito da lei processual penal com os princípios constitucionais tutelados nos n.ºs 1 e 5 do artigo 3º da Constituição, e com manifesto interesse para o caso em análise, que:
« Em conformidade com o disposto no art. 32º da CRP, o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa (n.º 1), revestindo estrutura acusatória e estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório (n.º 5). Quando aquele preceito se reporta a 'todas as garantias de defesa', considera indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante especificas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode portanto ser fonte autónoma de garantias de defesa. A 'orientação para a defesa' do processo penal revela que este não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos interesses dos arguidos), antes tem neles um limite infrangível ». E, depois de considerar que as várias manifestações típicas que caracterizam o estatuto do arguido são baseadas na existência de um direito de defesa que é pressuposto de todas elas, como se reconhece na norma constitucional do artigo
32º n.º 1, acrescenta-se, no mesmo aresto, que:
« O posicionamento do arguido em processo de tipo acusatório há-de revestir uma situação de reciprocidade dialéctica face à acusação, pelo que, em conformidade, devem ser-lhe atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desequilíbrio em que naturalmente se encontra face àquela ». Tendo como subjacente tais princípios, este Tribunal veio, posteriormente, a considerar conforme à Constituição a referida norma do artigo 664º do Código de Processo Civil de 1929, mas quando interpretada no sentido de que, quando os recursos lhe vão com vista, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto, com um dos seguintes limites: não lhe ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, quando isso aconteça, ser dada aos réus a possibilidade de responderem (Cfr. Acórdãos n.ºs 398/89, 495/89,
496/89, 350/91, 356/91, 150/93 e 374/95, publicados no Diário da República, IIª Série, de 14/09/89, 28/01/91, 01/02/90, 03/12/91, 08/01/92 e com rectificações em 24/04/92, 29/03/93 e 04/11/95 respectivamente, e ainda Acórdãos n.ºs 412/93,
435/93, 374/95, 135/98 e 7/99, estes inéditos). Porém, no caso de o Ministério Público se pronunciar no visto inicial de forma a agravar a posição do réu e de essa tomada de posição consistir no pedido de agravamento da pena anteriormente imposta, quer a lei processual comum, a que nos vimos referindo, quer a lei processual militar, impunham a notificação ao réu do parecer do Ministério Público para que este tivesse oportunidade de lhe responder (cfr. artigos 667º, § 1º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1929, e 440º, n.º 2, alínea b) do Código de Justiça Militar). Como no caso concreto, o parecer do Ministério Público no sentido do agravamento das penas aplicadas foi notificado aos recorrentes, que tiveram oportunidade de lhe responder e manifestarem a sua discordância, como sucedeu, naquela óptica constitucional, no que ao princípio do contraditório se refere, não merece reparo a norma do artigo 440º, n.º2, alínea b) do Código de Justiça Militar.
4. Porém, importa saber se a norma do artigo 440º, n.º2, alínea b) do Código de Justiça Militar, enquanto permite o afastamento da proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º1, quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, apesar de respeitar o contraditório, ofende as demais garantias de defesa do arguido condensadas no artigo 32º n.º1 da Constituição, tendo em conta o sentido e alcance deste ditame da Lei Fundamental.
Sobre o sentido e alcance do n.º1 do artigo 32º da Constituição, defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I Volume, p.p. 214-215) que:
«A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode portanto ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma: a«orientação para a defesa» do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível». Também neste sentido, - ou seja, no sentido de que mais do que uma «expressão condensada» de todas as garantias de defesa incorporadas nas demais normas do artigo 32º, o n.º1 deste artigo é igualmente «fonte autónoma de garantias de defesa» - se tem pronunciado, de forma reiterada, o Tribunal Constitucional
(cfr., entre outros, Acs. n.ºs 55/85, 61/88, publicados no Diário da República, II Série, de 28/05/85 e de 20/08/88). Mas, será o instituto da proibição da reformatio in pejus uma dessas garantias que, de forma não explicitada, há-de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, consagrado no artigo 32º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa? Vejamos: Já nos Acórdãos 499/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 21/10/97) e 498/98 (ainda inédito) o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão, tendo respondido que a proibição, numa certa medida, da reformatio in pejus, era imposta pelo princípio consagrado no n.º1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Estava em causa, nestes arestos, saber se a revogação pelo tribunal de recurso do perdão concedido pelo tribunal de primeira instância, havendo apenas recurso da defesa, afectava razões constitucionais no sentido da proibição da reformatio in pejus. Ponderou-se, então, sobre os fundamentos da proibição da reformatio in pejus e da sua protecção constitucional, que:
«A proibição da reformatio in pejus justifica-se fundamentalmente pela protecção das garantias de defesa (cf. parecer da Câmara Corporativa, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 180º, 1968, pp. 103 e segs., no qual se discutem as várias posições doutrinárias sobre o fundamento jurídico da reformatio in pejus; cf., ainda, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 259; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967-1968, p. 36; e Bettiol, Instituições de Processo Penal, 1974, pp. 304-313). Na realidade a proibição da reformatio in pejus foi referida no pensamento jurídico a fundamentações de natureza diversa, desde as que são baseadas na estrutura do processo penal (princípio dispositivo para uns, estrutura do acusatório para outros) até às que assentam em razões valorativas substanciais
(iniquidade) ou, até, em razões politico-criminais (favor rei). A esse tipo de razões, que pretendiam justificar uma ampla proibição da reformatio, sempre que apenas houvesse recurso da defesa ou no seu interesse, contrapôs Delitala os valores da justiça limitativos da proibição da reformatio in pejus quando não estivesse apenas em causa impedir uma modificação dos critérios do já decidido, mas corrigir erros de aplicação do direito (cf. parecer citado, loc. Cit., e ainda Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, III, 1994, p. 321). Mas a conformação da proibição da reformatio in pejus, numa perspectiva jurídica que pondere globalmente todos os fins do sistema, não deve, na realidade, considerar apenas uma perspectiva de interesse do arguido, devendo, por isso, o
âmbito do proibição ser delimitado na conexão entre as garantias de defesa e a realização da justiça. Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça. Mas tem de ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da recorribilidade (cf. Bettiol, ob. cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não ilimitado de controlo pelos tribunais superiores das decisões proferidas em 1ª instância. Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou de um modo insusceptível a ser contraditada pela defesa, quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito ao recurso. São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema jurídico, que exigem a configuração de uma certa medida de proibição da reformatio in pejus (nesse sentido, Giorgio Spengher, Enciclopedia del Diritto, Vol. XXXIX, 1988, p. 297, sobretudo notas 134 e 135, referindo-se à obtenção de um direito à não reforma da pena baseado em princípios constitucionais)» (cfr. acórdão n.º 499/97). Entretanto, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do artigo 440º, n.º2 do Código de Justiça Militar, tendo concluído pela desconformidade deste preceito com a Lei Fundamental, pelos acórdãos n.ºs 135/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 07/07/99), cuja linha argumentativa se vem seguindo de perto, e 324/99, de 26/05/99 (ainda inédito). Como se escreveu-se naquele aresto, citando o acórdão 498/98:
« ... as razões constitucionais que militam no sentido da proibição da reformatio in pejus - designadamente, a tutela do direito ao recurso constitucionalmente garantida pelo n.º 1 do artigo 32º - valem, com igual força, quer a agravação das sanções resulte da eliminação de uma atenuante ou da revogação de um perdão (como era o caso objecto do processo 498/98), quer decorra de um aumento das penas parcelares ou da pena unitária aplicada (como é o caso dos autos). E tendo apenas sido interposto recurso pelo arguido (como aconteceu nos presentes autos) ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele, as razões constitucionais que depõem então no sentido da proibição da reformatio in pejus valem igualmente para hipótese em que o titular da acusação junto do tribunal superior se tenha pronunciado, no visto inicial do processo, pelo agravamento das penas (e ainda que ao arguido tenha sido dada a possibilidade de responder)», como sucedeu nos presentes autos. Nesse sentido, e a propósito da redacção dada ao artigo 667º § I n.º 2 do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei n.º 2139, de 14 de Março de 1969 – indiscutivelmente, a fonte do artigo 440º, nº2, alínea b) do CJM – ponderava Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 260-262):
«Por injustificável temos também a doutrina do actual 667º § I n.º 2 do CPP, segundo a qual a proibição da reformatio in peius não se verifica «quando o representante do MP junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo o seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias». No projecto de lei previa-se que a proibição não teria lugar «quando a acusação tenha interposto recurso subordinado»; a Câmara Corporativa censurou a solução, acentuando que «não se compreende bem a figura do recurso subordinado em processo penal» e sobretudo – com excelente razão – que a actuação do MP «deve ser sempre objectiva, ditada pela preocupação exacta de aplicação do direito, e não por razões de oportunidade». Propôs porém a solução que obteve consagração legal, invocando ser inegável que à magistratura do MP «falta, de um modo geral, na 1ª instância, justamente no escalão mais baixo e mais amplo, uma experiência e uma preparação profissional inteiramente satisfatórias ! Ora não só a base da argumentação não colhe (se a lei atribui
àqueles magistrados as funções que lhe atribui – algumas de magnitude incomparavelmente superior à da interposição de um recurso – é porque confia na sua experiência e preparação profissional !), como o expediente encontrado é absolutamente insuportável perante os fundamentos da própria proibição da reformatio in peius, acabando deixar entrar pela janela aquilo que se quis impedir que entrasse pela porta. E o mais grave é que, ao recusar-se a ideia do recurso subordinado, acabou afinal por se pôr em dúvida a própria atitude de objectividade do MP na 1ª instância, alegando-se que, face à referida falta de experiência e preparação profissional, «as instâncias superiores ver-se-iam na necessidade de determinar aos agentes do MP que interpusessem recurso subordinado, sempre que o réu recorresse»!. A eficácia da proibição da reformatio in peius entre nós encontra-se, assim, sensivelmente diminuída, dependendo em larga medida da forma parcimoniosa como o MP junto do tribunal superior utilize o poder que lhe outorga o artigo 667º § I n.º 2; e melhor fora, seguramente, que nunca o utilizasse. Claro que haverá boas razões para confiar em tal parcimónia; mas não é por certo boa política legislativa deixar ao critério das pessoas decisões que, em rigor, só à lei deveriam pertencer».
Deste modo, deve julgar-se inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º n.º1 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante da al.b) do n.º1 do artigo 440º do Código de Justiça Militar, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º1, quando o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena.
5. Entendem ainda os recorrentes que, tendo o Código de Justiça Militar de 1977, no seu artigo 440º, 'adoptado' em pleno a regra consagrada no artigo
667º do Código de Processo Penal de 1929, então em vigor, « tal 'adopção' apenas pode significar que o legislador pretendeu equiparar, pelo menos no que concerne aos direitos e garantias dos arguidos, os direitos em processo militar, com os direitos dos arguidos em sede de processo penal comum, equiparação imposta pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas ».
Nesta perspectiva, concluem que, não tendo a reforma do Código de Processo Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que no seu artigo 409º restringiu as excepções à proibição da reformatio in pejus, sido acompanhada por idêntica alteração do Código de Justiça Militar, impõe-se a sua actualização face aos direitos, liberdades e garantias consagrados ao nível constitucional, e que respeitam a todos os cidadãos sejam eles civis ou militares, «pois, num Estado de Direito Democrático como é o nosso, não podemos consentir na existência de duas JUSTIÇAS PARALELAS: Uma para CIDADÃOS COMUNS e OUTRA para CIDADÃOS MILITARES » e «enquanto esta actualização não se verificar, há que afastar a aplicação das normas deste diploma que, por ultrapassadas, violam flagrantemente os princípios constitucionais, nomeadamente, os princípios consagrados nos artigos 13º, 18º, 29º e 32º».
Como se concluiu no Acórdão n.º 1007/96 (publicado no DR, IIª Série, de 12 de Dezembro de 1996), o princípio da igualdade, no entendimento uniforme deste Tribunal « obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal ».
E acrescentou-se: « Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação ».
Fundamentou o Supremo Tribunal Militar a diferença de tratamento da reformatio in pejus no Código de Processo Penal de 1987, que proíbe em absoluto a reformatio in pejus das penas de prisão, e o Código de Justiça Militar, que a permite quando o promotor junto do tribunal superior se pronunciar pelo agravamento da pena, nos termos supra referidos, na diferença dos dois direitos processuais aplicáveis a cada uma das jurisdições e pela composição dos tribunais comuns e militares e ainda o correspondente Ministério Público.
Ora, conforme o entendimento defendido por Figueiredo Dias, no colóquio promovido pela Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, em
1995, o direito militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, ou seja, do conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam
à função militar específica, como a defesa da Pátria, sem cuja tutela «as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam postas em questão» (cfr. Justiça Militar, ed. Assembleia da República - Comissão de Defesa Nacional - Lisboa, 1995, pág. 26).
Como, no caso concreto, não estão em causa deveres militares nem valores como a segurança e a disciplina das forças armadas ou interesses militares de defesa nacional, que, esses sim, poderiam justificar tal diferença, não subsiste justificação material bastante para a diferença de regimes que hoje se verifica entre o Código de Processo Penal vigente, que proíbe a reformatio in pejus, e o Código de Justiça Militar, que a permite quando o promotor junto do tribunal superior se pronunciar pelo agravamento da pena, nos termos supra referidos (cfr. acs. 135/99 e 324/99, já citados).
Nestes termos, por estabelecer, sem justificação material bastante, um regime substancialmente mais desfavorável ao arguido em processo penal militar relativamente ao processo penal comum, a norma impugnada viola também os princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13º e 18º da Constituição.
6.. Invocaram ainda os recorrentes, embora não concretizassem, a violação do artigo 29º da Constituição, certamente querendo fazer apelo ao princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável
(n.º 4).
É certo que este Tribunal julgou inconstitucional, por violação da parte final do n.º4 do artigo 29º da Constituição, a norma do § 1º, n.º 2, do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929. Só que no caso concreto estava em causa a aplicação deste preceito, por força do disposto no n.º1 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 78/87, a processos pendentes à data da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 (cfr. acórdãos nºs. 250/92, publicado no Diário da República, II Série, de 27/2/92 e 451/93, publicado no Diário da República, II Série, de 27/4/94).
Ora, este entendimento sufragado no dito aresto não pode ser extrapolado do processo penal comum para o militar, desde logo porque a alteração legal não ocorreu no domínio da lei processual militar e as normas processuais comuns só são aplicáveis subsidiariamente à jurisdição militar, não se verificando, neste caso, os pressupostos de aplicação de tal regime. IV
Nestes termos, decide-se: a. Não tomar conhecimento do recurso relativamente às normas constantes dos artigos 214º, 216º e 457º, n.º2, do Código de Justiça Militar; b. Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13º n.º1, 18º n.º2 e
32º n.º1, todos da Constituição, a norma constante do artigo 440º, n.º2, al. b), do Código de Justiça Militar, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º1, quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade, assim se concedendo, nessa parte, provimento ao recurso. Lisboa, 28 de Setembro de 1999- Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa