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Processo n.º 1058/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. No requerimento de reclamação, alega, sumariamente, o seguinte (fls. 3257-3267):
«(…)
B – Análise dos fundamentos da douta Decisão Sumária sob reclamação/Da tese da ausência de recorte normativo ao recorte ablativo do direito ao recurso de constitucionalidade
A douta Decisão Sumária, ora reclamada, decidiu pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade, com base em dois fundamentos distintos, a saber: (a) da ausência de normatividade na questão sub judice, e (b) a ausência de invocação prévia da inconstitucionalidade normativa, argumentos com que o ora Recorrente respeitosamente não pode concordar.
(…)
O ora Reclamante concede que, como bem se refere na douta Decisão reclamada, o recorrente tem dificuldades em identificar a norma, rectius, o artigo de onde o Tribunal recorrido extraiu as interpretações normativas que veio a aplicar.
Porém, caberá ao Tribunal Constitucional verificar a quem é, à luz de um processo justo e equilibrado, imputável tal dificuldade, ou seja, se o Recorrente poderia ter feito algo que não fez, ou melhor, algo que devesse ter sido feito à luz daquela que é uma diligente atuação processual da parte com vista a assegurar o efetivo exercício do direito que constitucionalmente lhe está reconhecido no artigo 280.º, da Constituição da República Portuguesa.
Isto é, era exigível ao Recorrente, face à tramitação processual havida e à concreta decisão recorrida, que efetuasse um melhor recorte das normas que pretende ver sindicadas sub specie constitutionis?
Como infelizmente resulta da tramitação processual sumariada na douta Decisão sob reclamação, o presente recurso representa o único recurso ordinário que da Decisão recorrida foi admitido, considerando que todas as instâncias chamadas a decidir sobre a recorribilidade ordinária da Decisão Instrutória, na parte em que decidiu da questão da violação do in dúbio pro reo, se pronunciaram pela irrecorribilidade ordinária de tal decisão.
Da irrecorribilidade ordinária da Decisão Instrutória resulta, objetiva e necessariamente, que o ora Reclamante não pôde – de forma processualmente relevante – melhorar o recorte normativo da invocação da inconstitucionalidade material das normas que vieram a ser aplicadas num recurso ordinário da Decisão Instrutória, como de resto seria o normal, atento o princípio da recorribilidade expresso no artigo 399.º, do CPP.
Por outro lado, a invocação da inconstitucionalidade feita pelo Arguido no seu RAI não foi precedida de qualquer decisão judicial onde se aplicasse um qualquer preceito legal, mas apenas e só uma fugaz (mas sintomática) referência do Ministério Público à alegada não violação do princípio ne bis in idem expressa no despacho de acusação, sem referência a qualquer normal concretamente aplicada.
(…)
Ou seja, o Arguido, acautelando a possibilidade de vir a ser sujeito a julgamento pelos mesmos factos, desde logo arguiu a inconstitucionalidade material de qualquer interpretação normativa que o viesse permitir, sem que no momento em que o fez soubesse qual o concreto preceito legal de onde o Tribunal viria a extrair a interpretação normativa que veio a sufragar.
(…)
Assim, verifica-se que:
a) o recorte normativo da invocação da inconstitucionalidade efetuada no RAI foi o possível dada a ausência de qualquer decisão judicial anterior ao mesmo que permitisse ao Arguido, ora Reclamante, basear-se numa qualquer aplicação normativa concreta; e
b) esse mesmo recorte normativo não pôde ser posteriormente melhorado pelo Arguido, ora Reclamante, por ausência de meio processual adequado ao efeito como seria o recurso ordinário, que esse Tribunal Constitucional entendeu poder ser denegado, na presente fase processual, pese embora a evidência de que a vertente processual do princípio ne bis in idem fica sem qualquer tutela recursória uma vez que a decisão de submeter o arguido a um potencial segundo julgamento pelos mesmos factos não será nunca apagada, nem se tutelará tal vertente daquele princípio em caso de absolvição – como resulta claro do douto Ac. do TEDH junto ais presentes autos em Francês e com tradução para Português).
(…)
Sucede, porém, que o Tribunal recorrido não o fez, nem tão-pouco fundamentou a sua decisão de direito, leia-se, com expressa referência às normas aplicadas de onde extraiu a possibilidade legal de submissão do Arguido a julgamento pelos factos que julgou indiciados.
(…)
Dito isto, verificamos que a douta Decisão Sumária proferida aplicou os artigos 70.º, n.º 1, al. b), 75.º-A, n.ºs 1 e 2, e 78.º-A, n.º 1, da LTC, em sentido materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 280.º da CRP, por desnecessária restrição do direito ao recurso de constitucionalidade.
(…)
Ora, face às contingências processuais decorrentes da inexistência de decisão judicial anterior à invocação (por antecipação) de qualquer inconstitucionalidade normativa, e da ausência de qualquer recurso ordinário posterior à mesma (onde a alegação por antecipação pudesse ser aperfeiçoada) a interpretação normativa aplicada na douta Decisão Sumária consubstancia uma desnecessária denegação do direito ao recurso (entendido como meio processual adequado a assegurar a efetividade dos direitos constitucionalmente consagrados ao Arguido) e não, in casu, uma solução normativa necessária ou adequada à tutela de qualquer bem jurídico constitucionalmente relevantes.
(…)
Dito isto, salvo o devido respeito, cabe ao Tribunal Constitucional, como entidade pública destinatária da obrigação expressa no artigo 18.º, n.º 1, da CRP, compatibilizar o interesse constitucional inerente à tutela efetiva do direito ao recurso de constitucionalidade (artigos 32.º, n.º 1, e 280.º, n.º 1, da CRP), com o do respeito pela competência específica do Tribunal Constitucional (artigos 210.º e 221.º da CRP), no sentido de se admitir o recurso de constitucionalidade em casos em que se cumulem as seguintes circunstâncias processuais:
a) o Recorrente seja confrontado com a necessidade de invocar, por antecipação, a inconstitucionalidade material de uma norma que ainda não foi sequer aplicada por inexistência da decisão judicial anterior;
b) não haja recurso ordinário posterior à mesma (onde a alegação efetuada por antecipação pudesse ser aperfeiçoada).
(…)
Se assim não se entendesse, em todos os casos em que um Tribunal proferisse uma decisão, que fosse irrecorrível por via de recurso ordinário, sem que apreciasse a questão invocada da (in)constitucionalidade normativa, ou fazendo-o de forma vaga ou meramente implícita, sem invocar quaisquer preceitos em que baseasse a sua decisão, estaríamos perante um recurso de inconstitucionalidade inadmissível por falta de “recorte normativo”, e obstacular-se-ia a possibilidade de exercício efetivo pelo Tribunal Constitucional da competência específica que a Constituição lhe atribui.
(…)
C- Da violação da Jurisprudência contida no douto Ac. do TC n.º 303/2005, onde se assume a competência do TC para efetuar indagações complementares para determinação do que é, por imperativo constitucional, “o mesmo crime”
Por outro lado, não se diga que a questão colocada no recurso passa, necessariamente, pelo escrutínio do Tribunal Constitucional quanto à questão de se saber se estamos, ou não, perante o mesmo crime/factos já sujeitos a julgamento, e que é aí que, no fundo, radica a dita falta de normatividade, por o ora Recorrente pretender fazer resindicar o juízo de não identidade dos factos crime/ ínsito à decisão recorrida.
Tal alegação esquece que o princípio ne bis in idem, expresso no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, tem direta aplicabilidade atento o artigo 18.º, n.º 1 da CRP, e que o Tribunal a quo (como todos os demais) está obrigado a recusar oficiosamente a aplicação de normas que violem tal princípio constitucional (artigo 204.º da CRP).
(…)
Assim, a fiscalização da constitucionalidade de quaisquer normas face ao âmbito de proteção do artigo 29.º, n.º 5, da CRP, exige a indagação daqueles se deverão, por imposição constitucional, considerados os mesmos factos, ou na feliz expressão do douto Ac. do TC n.º 303/2005) não podem deixar de passar por uma dialética judicativa que passa pela análise do caso concreto e pela verificação da conformidade constitucional da concreta interpretação normativa aplicada para, finalmente se regressar ao caso concreto definindo aquela que será a interpretação conforme à Constituição para o dirimir.
(…)
Ou seja, nos termos da citada jurisprudência (onde apenas estava em causa a violação da vertente material determinada pela punição em cúmulo real, num único processo, da contraordenação e do crime), poder-se-á, em abstrato, verificar desde logo (se se concluir pela “identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas”) que uma dupla condenação por ambos no mesmo processo viole o princípio ne bis in idem na sua vertente material, tornando-se, salvo melhor opinião, evidente que a submissão sucessiva a julgamento por dois crimes violará frontalmente a vertente processual sempre que os factos que lhes subjazem sejam indissociáveis entre si, e assim, a proibição da dupla sujeição a julgamento pelos mesmos factos, realidade que o TC já reconheceu merecedora das referidas “indagações complementares para determinação do que é “o mesmo crime” (designadamente, com recurso aos institutos relativos ao objeto do processo)”.
(…)
O mesmo é dizer que as normas a sindicar se inserem na competência do tribunal Constitucional, apresentando recorte normativo cuja constitucionalidade deverá, por isso, ser sindicada.
(…)
D – Da assunção de uma total ausência de tutela jurisdicional efetiva para o princípio ne bis in idem na sua vertente processual:
A tutela efetiva e em tempo útil – a que se refere o artigo 20.º, n.º 5 da CRP – relativamente à vertente processual do princípio do ne bis in idem jamais poderá ser alcançada através de um único grau de jurisdição, de nenhum grau de recurso ordinário, e com a interpretação desnecessariamente exigente e restritiva quanto às possibilidades práticas de exercício efetivo do direito ao recurso de constitucionalidade!
(…)
Assim recortado, o conjunto das diversas normas que compõem o sistema recursório português, se alheadas a uma interpretação demasiado formal e injusta dos preceitos que regulam a admissibilidade do recurso para fiscalização de constitucionalidade, é ainda mais manifestamente insuficiente por proporcionar uma tutela efetiva e em tempo útil da vertente processual do princípio do ne bis in idem.
(…)
Neste campo, a responsabilidade do Estado Português não deixará de ser agravada se, além da ausência de previsão legal de tutela recursória ordinária para o direito a não ser julgado duas vezes pelos mesmos factos/crime, se restringir de forma inadmissível o exercício do derradeiro meio de reação para tutela de tal direito, o recurso de constitucionalidade.
Neste cenário, restringir-se-iam de forma desnecessária as garantias de defesa do Arguido (artigo 32.º da CRP, 6.º e 13.º da CEDH) em detrimento do “direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas”, e negar-se-ia uma tutela jurisdicional efetiva e em tempo útil – só alcançável por via da tutela recursória – à garantia consagrada no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, e no artigo 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, ao invés de a tornar concreta e efetiva como exigido pela Constituição e Convenção, justamente numa situação em que o cidadão se considera confrontado com uma multiplicidade de ações punitivas sobre os mesmos factos, todas impulsionadas pelo Estado, que reputa violadoras daqueles preceitos, o que desde já se invoca para efeitos de decisão que sobre esta matéria seja tomada possa ser sindicável junto do TEDH.
(…)»
3. Notificados, quer o reclamado, quer o Ministério Público pugnaram pelo indeferimento da reclamação deduzida.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem a seguinte redação:
«(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão instrutória proferida em 30 de novembro de 2012, pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, em requerimento com o seguinte teor:
«(…)
A - Nota prévia
Conforme consta dos autos, o Arguido, ora Requerente, interpôs recurso ordinário para o TRL da douta Decisão Instrutória e, simultaneamente, por mera cautela de patrocínio, recurso de constitucionalidade para o TC.
Notificado o Arguido do douto Despacho desse TCIC, datado de 16.01.2013, que não admitiu o Recurso ordinário interposto pelo ora Requerente, e lhe solicitou que informasse se mantém o referido recurso direto para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, veio o Arguido dizer e requerer o seguinte:
“3.º
Conforme decorre do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional supra referido, o mesmo consubstancia um recurso direto para o TC da decisão instrutória, e não um recurso de constitucionalidade sobre um hipotético despacho que recuse admitir o recurso ordinário interposto.
4.º
Como também resulta daquele requerimento de interposição, o recurso de constitucionalidade foi interposto por mera cautela de patrocínio e para o caso de as instâncias (leia-se, o TRL e eventualmente o TC) virem a decidir pela aplicabilidade/constitucionalidade material do artigo 310.º, n.º 1, do CPP.
5.º
Porém, o recurso de constitucionalidade assim interposto, não preenche, no momento, o requisito de admissibilidade previsto na Lei do Tribunal Constitucional – artigo 70.º, n.º 2 e 75.º, n.º 2, ambos da LTC.
(…)
7.º
Salvo melhor opinião, o termo inicial da contagem do prazo de 10 dias para a interposição do recurso de constitucionalidade precedido de recurso ordinário cuja admissibilidade legal seja recusada e discutida, só se verifica no momento em que a decisão que o julgue ordinariamente irrecorrível se torna definitiva.
8.º
Uma vez que o Arguido apresentou recurso ordinário da douta decisão instrutória, pugnando pela aplicabilidade de interpretação conforme à Constituição do artigo 310.º do CPP, por forma a garantir a recorribilidade da mesma em casos como o dos autos, e considerando que o douto despacho que não admitiu tal recurso será objeto de Reclamação para Exmo. Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, do Despacho não há ainda uma decisão definitiva quanto àquela questão da recorribilidade da decisão instrutória (inconstitucionalidade material do artigo 310.º, n.º 1, do CPP), nem do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nem eventualmente do próprio Tribunal Constitucional.
9.º
Assim, salvo melhor opinião, dever-se-á aguardar o trânsito em julgado do douto despacho que decidiu pela irrecorribilidade da douta decisão instrutória, e só após isso ser proferido despacho sobre a admissibilidade daquele recurso direto de Constitucionalidade, o qual incide sobre a douta decisão instrutória e, não, repete-se, sobre o despacho que viesse, como veio, a recusar a admissão do recurso ordinário sobre a mesma.
10.º
Não obstante o que acima fica dito quanto ao requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto, o Arguido desde já declara que mantém interesse no mesmo, para que seja oportunamente admitido e apreciado, se não resultar prejudicado face à tramitação futura dos autos.
(…)
Considerando que o douto despacho desse TCIC, que não admitiu o recurso ordinário interposto pelo ora Requerente relativamente à decisão instrutória, confirmado que foi pela douta Decisão Singular do Exmo. Senhor Vice-Presidente do TRL, e subsequentemente pelo douto Acórdão do TC, datado de 15.07.2013, apenas transitou em julgado em 11 de setembro de 2013, o prazo de 10 dias para a interposição do recurso de constitucionalidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LTC, apenas começou a contar noa dia 12 de setembro de 2013, terminando (sem multa) em 23 de setembro (vide artigo 75.º, n.º 2,da LTC).
Tendo o recurso de constitucionalidade sido anteriormente interposto por mera cautela de patrocínio, cumpre agora ao arguido, uma vez que se passou a verificar o requisito para a respetiva admissão, reiterar a respetiva interposição, e o seu interesse na apreciação da constitucionalidade das normas aplicadas, para que sejam sindicadas as normas aplicadas na douta decisão instrutória relativamente à questão do ne bis in idem.
(…)
C – Identificação das normas concretamente aplicadas na decisão instrutória cuja constitucionalidade se pretende fazer sindicar pelo Tribunal Constitucional no interposto recurso:
A douta decisão instrutória, a propósito da apreciação da questão prévia do ne bis in idem, aplicou as seguintes normas:
1.ª- Norma, formulada interpretativamente sem alusão a qualquer artigo ou conjunto de artigos (que o Arguido admite ter sido extraída do artigo 30.º, n.º 1 e 2 do C. Penal), que permite sujeitar um arguido a um segundo julgamento, com base numa “nova” acusação/pronúncia, pela prática de um segundo crime, em casos em que a “nova” imputação se reconduza essencialmente à repetição da conduta já anteriormente imputada ao Arguido, à luz da mesma intenção e quadro de atuação, limitando-se a nova acusação/pronúncia a densificar/detalhar o modus operandi da prática do crime, e a concretizar mais circunstâncias em que o mesmo terá sido implementado.
Tal interpretação normativa é materialmente inconstitucional por violação do princípio do ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da CRP) e, concretamente, da expressão do texto constitucional o “mesmo crime”.
2.ª – A mesma norma (enunciada no ponto anterior) concretamente aplicada a casos em que os factos objeto de uma segunda acusação/pronúncia eram do inteiro conhecimento das instâncias judiciais.
Tal interpretação normativa é materialmente inconstitucional por violação do princípio ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da CRP) e, concretamente, da expressão do texto constitucional o “mesmo crime”, e ainda do princípio da necessidade constitucionalmente previsto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
3.ª – Norma, formulada interpretativamente sem alusão a qualquer artigo ou conjunto de artigos, que permite imputar ao mesmo Arguido, em dois processos penais sucessivos, factos com o conteúdo idêntico, a pretexto de os mesmos serem, no segundo processo/acusação/pronúncia, de mero enquadramento, e de que nenhuma conclusão jurídico-penal ser extraível da sua narração no segundo julgamento.
Tal interpretação normativa, na medida em que se repete a imputação dos mesmos factos ao Arguido num processo sancionatório subsequente a um primeiro julgamento, viola a proibição do ne bis in idem – artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
Por outro lado, na medida em que afirma que nenhuma censura jurídica poderá ser assacada aos factos que confessadamente repete na segunda acusação/pronúncia, restringe/viola a plenitude dos poderes cognitivos do juiz do julgamento, valor e princípio constitucional ínsito, entre outros, nos artigos 32.º, n.º 5, e 202.º e 203.º, todos da CRP.
O ora recorrente suscitou a inconstitucionalidade material das três interpretações normativas acima identificadas no seu requerimento de abertura de instrução, no segmento do mesmo votado à violação do princípio do ne bis in idem.
(…)»
2. O recorrente veio, após notificação da acusação contra ele deduzida, requerer a abertura da instrução. Com relevo para o presente caso, pode ler-se em tal requerimento o seguinte:
«(…)
21.º
Assim, a acusação proferida nos presentes autos é uma mera densificação da pronúncia do processo n.º 4910/08.9TDLSB, sendo os factos imputados ao Arguido em, ambos os processos absolutamente contemporâneos.
22.º
Face a esta materialidade, os factos inclusos na acusação proferida nos presentes autos formam com aqueles que foram levados à pronúncia no processo n.º 4910/08.9TDLSB, que corre atualmente termos pela 4.ª Vara Criminal de Lisboa, uma unidade jurídica e um pedaço de vida que aí será apreciado, verificando-se de forma nítida a existência de uma “parte comum entre o facto histórico julgado (leia-se, em julgamento no processo n.º 4910/08.9TDLSB) e o facto histórico a julgar” e que ambas as imputações têm “como objeto o mesmo bem jurídico ou formem como ação que se integrem na outra, um todo do ponto de vista jurídico.”
(…)
36.º
É materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.º 5, da CRP, qualquer interpretação normativa que permitia acusar ou pronunciar o Arguido, e assim sujeitá-lo a julgamento, por factos que sejam já parcialmente objeto de um processo anterior que se encontre em fase de julgamento, no sentido de lhe imputar o mesmo crime de falsificação pelo qual ali responda.
37.º
E, concretizando, será materialmente inconstitucional, qualquer norma que permitia sujeitar o Arguido a um julgamento com base numa nova acusação pela prática de um crime de falsificação, em casos em que os factos vertidos no novo processo sejam contemporâneos com os do processo mais antigo, e em que os factos, em ambos os processos, se reconduzam a uma alegada atuação do Arguido em execução de um alegado plano inicial, que sempre teria sido cumprido ao longo do tempo, e sempre com a mesma intenção, limitando-se a nova acusação a densificar a forma como o esquema para produção formal da documentação alegadamente falsificada ao longo do período temporal comum aos dois processos foi implementado, e a concretizar mais documentos em que tal terá sucedido.
(…)
38.º
Tal interpretação torna-se ainda mais evidentemente inconstitucional, por violação do princípio da necessidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), em casos em que os factos que sejam objeto de uma segunda acusação eram, ou podiam ser, do inteiro conhecimento das instâncias judiciárias, desde logo porque denunciados mais de 6 meses antes considerando a data da primeira acusação.
(…)»
Sobre a questão do ne bis in idem, concluiu o Tribunal Central de Instrução Criminal que:
«(…)
Lê-se no artigo 530º do despacho de pronúncia proferido no âmbito do processo 4910/08.9TDLSB:
“Como os arguidos não pretendiam liquidar os montantes que viessem a sacar, não foram definidas quaisquer garantias particulares para os financiamentos concedidos, para além de um esquema de produção formal de uma “put option”, destinada a fazer crer perante as entidades de supervisão do Banco insular que o próprio F. garantia a aquisição do crédito sobre os clientes, caso não fosse liquidado o financiamento.”
Ora, a pergunta que se impõe é antes do mais: de que financiamentos concedidos se está a falar no artigo 530º do despacho de pronúncia a que temos vindo a fazer referência? Existe coincidência entre os financiamentos aí mencionados e os financiamentos a que se alude nos números 66, 74 e 86 do despacho de acusação proferido no âmbito dos presentes autos?
É certo que no artigo 530º da pronúncia se encontra descrito um (único) facto semelhante aos aqui narrados, mas não corresponde à realidade que os factos pelos quais os arguidos se encontram acusados nos presentes autos estejam explícita e indesmentivelmente incluídos no objeto do processo n.º 4910/08.9TDLSB.
Os arguidos esquecem que tal facto deve ser lido dentro de um contexto.
Com efeito, de uma leitura atenta do despacho de pronúncia proferido no âmbito do processo 4910/08.9TDLSB verifica-se que tal facto se reporta única e exclusivamente a uma operação, a saber, as operações de financiamento da B. com o objetivo de aquisição de ações da C. IMOBILIÁRIA e da D. SGPS. Dito de outra forma, para obviar ao descoberto originado por tais operações na conta da entidade E., junto do F., os arguidos G., H., I., J., K. e L. formularam o plano de conceder crédito a entidades off-shore os quais se destinavam a regularizar o descoberto criado sobre a conta da E. e é neste específico contexto que aparece no artigo 530º do despacho de pronúncia a referência à “produção formal de uma put option”.
O que nos conduz então à resposta às interrogações que acima deixámos enunciadas: os financiamentos concedidos a que se refere o artigo 530º do despacho de pronúncia proferido no processo 4910/08.9TDLSB são aqueles que se encontram descritos no artigo 527º desse mesmo despacho de pronúncia.
Tudo escrutinado basta uma leitura superficial de ambos os despachos para se chegar à conclusão de que tais financiamentos não se encontram descritos nos números 66, 74 e 86 do despacho de acusação proferido no âmbito dos presentes autos.
Assim, como facilmente se depreende, e aliás resultou das diligências realizadas em sede de instrução, as put options a que se refere o artigo 530º do despacho de pronúncia são textualmente diversas daquelas a que se referem os presentes autos, reportando-se a créditos e entidades que não se encontram abrangidas pelo despacho de acusação proferido no âmbito dos presentes autos.
(…)
Consequentemente entende o JIC que os factos narrados na acusação dos presentes autos são factos totalmente diversos e autonomizáveis daqueles que são descritos no despacho de pronúncia proferido no âmbito do processo 4910/08.9TDLSB.
(...)»
Desta decisão instrutória interpôs o arguido recurso, o qual, porém, não foi admitido pelo tribunal recorrido, com fundamento nos artigos 310.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal. Simultaneamente, e por mera cautela de patrocínio, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional incidente sobre a própria decisão instrutória, em requerimento de fls. 2731, cujo teor é idêntico ao supratranscrito.
Na sequência do despacho que não admitiu o recurso, o arguido apresentou reclamação para o Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 405.º do CPP (fls. 3072), cujo indeferimento motivaria novo recurso, desta feita para o Tribunal Constitucional, incidente sobre o artigo 310.º, n.º 1, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
Atento o trânsito em julgado do Acórdão n.º 437/2013, de 15 de julho de 2013 (fls. 3148), vem agora o recorrente manifestar interesse em que seja apreciado o recurso de constitucionalidade relativo à decisão instrutória propriamente dita (fls. 2731).
3. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido (fls. 3149). Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
4. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Não é isso que sucede in casu, por vários motivos.
Desde logo, a questão de constitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada não assume caráter normativo, não integrando, destarte, o objeto de controlo ínsito ao nosso modelo de justiça constitucional. Com efeito, é patente que o presente recurso se centra, não numa determinada norma ou interpretação normativa dela extraída – a qual, aliás, o recorrente tem dificuldades em identificar – mas antes no concreto ato jurisdicional de apreciação dos pressupostos do caso julgado. Talqualmente resulta do requerimento de recurso, a controvérsia que se enseja ver apreciada por este Tribunal tem pois por objeto a questão da “imputação dos mesmos factos ao Arguido num processo sancionatório subsequente a um primeiro julgamento”, questão que – reitera-se – não apresenta recorte normativo.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre caberia sublinhar que a questão de constitucionalidade em causa não foi objeto de uma suscitação processualmente adequada, isto é, não foi arguida em termos que permitissem o apuramento, de forma clara e inteligível, dos preceitos infraconstitucionais cuja conformidade com a Constituição se ambicionava controverter. De facto, é incontestável a ausência, no requerimento de abertura de instrução apresentado – leia-se, em momento processualmente tempestivo - de qualquer referência à norma e/ou segmento normativo violador do princípio do ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, circunstância que naturalmente inviabilizou a pronúncia do tribunal recorrido sobre tal questão, quando perspetivada no seu recorte normativo.
Há que concluir, portanto, no sentido de que não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
5. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)»
5. A reclamação apresentada pela reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
A argumentação do reclamante assenta em três pontos essenciais:
(1) As deficiências detetadas na suscitação e enunciação da questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada não lhe são imputáveis. Isto porque, por um lado, inexistindo decisão judicial anterior ao requerimento de abertura de instrução, não seria exigível que o reclamante antecipasse a interpretação normativa que viria a ser adotada; por outro, o tribunal recorrido não indica o concreto preceito legal de onde extraiu a interpretação normativa em que assentou a decisão instrutória, circunstância que obstou a que, na atividade processual subsequente, o reclamante pudesse colmatar o deficit de inteligibilidade presente naquela suscitação;
(2) A questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de recurso reveste natureza normativa, integrando, por conseguinte, o objeto de controlo dos processos de fiscalização da constitucionalidade;
(3) Qualquer outra interpretação dos preceitos que enformam o sistema recursório português padecerá de excessivo formalismo, sendo manifestamente insuficiente para proporcionar uma tutela jurisdicional efetiva, algo suscetível de constituir uma violação do artigo 32.º da CRP, e dos artigos 6.º e 13.º da CEDH;
Contudo, não tem razão o reclamante, pelas razões de que seguidamente se dá conta.
Cumpre esclarecer, em primeiro lugar, que o eixo central da decisão recorrida consistiu na falta de recorte normativo da questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, ausência essa denotada não só no requerimento de abertura de instrução, como em toda a intervenção processual subsequente. É patente, com efeito, que aquilo que o reclamante (então recorrente) expõe como sendo uma questão incidente sobre um dado produto normativo tem por objeto, afinal, a mera apreciação dos factos pelo tribunal a quo. Este considera, na verdade, que os factos narrados na acusação dos presentes autos são factos totalmente diversos e autonomizáveis daqueles que são descritos no despacho de pronúncia referente a outro processo em que o reclamante é arguido, não sendo esta, como se depreende, uma questão que integre o objeto de controlo do nosso modelo de justiça constitucional.
Porém, a decisão sumária fundou-se igualmente na falta de clareza e inteligibilidade que perpassa a enunciação da questão de constitucionalidade levada a cabo pelo reclamante no requerimento de abertura de instrução e no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional. Improcedem, quanto a este ponto, as justificações avançadas pelo reclamante no sentido de não lhe ser exigível outra conduta processual, porquanto este dispunha, à data da apresentação daquele requerimento, de todos os elementos que lhe permitiriam confrontar adequadamente o Tribunal Central de Instrução Criminal com a questão de constitucionalidade visada. O mesmo é dizer que a situação do reclamante não é reconduzível a nenhuma das aliás escassas hipóteses em que a jurisprudência e a doutrina constitucionais admitem a derrogação da regra da suscitação prévia, nada obstando, por isso, a que aquele tivesse delineado, nos seus traços essenciais e com a clareza e percetibilidade necessárias, a questão de constitucionalidade em causa.
Assim sendo, cumpre reiterar o juízo de não conhecimento do objeto do recurso constante da decisão sumária reclamada.
III. Decisão
6. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.