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Proc. nº 70/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena de Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o arguido M... foi condenado, por sentença de 6 de Maio de 1996, como autor material de um crime de usura, previsto e punível pelo artigo 226º, nº 1, do Código Penal (versão de
1995), na pena de 150 dias de multa á taxa diária de 1.000$00, a que, em alternativa, correspondem 100 dias de prisão. Todavia, ao abrigo do disposto no artigo 14º, nº 1, alínea c), da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, foi declarada perdoada metade da pena de multa aplicada ao arguido – 75 dias – e a alternativa de prisão correspondente – 50 dias; nos termos do disposto no artigo 8º, nº 1, alínea c), e nº 3, da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, foi declarada integralmente perdoada a pena de multa remanescente – 75 dias – e a prisão alternativa – 50 dias – sob condição resolutiva de o arguido não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da referida lei.
M... interpôs recurso de apelação. Invocou, entre outros fundamentos, a circunstância de, com a entrada em vigor do Código Penal de 1995, o crime de usura ter deixado de ser público para passar a ser semi-público, passando o procedimento criminal, assim, a depender de queixa, nos termos do nº
3 do artigo 226º do mesmo Código. Como o ofendido só apresentou queixa em 1991, decorridos dois anos após a prática dos factos puníveis – que ocorreram em 1989
–, e dado que o artigo 112º do Código Penal de 1982 exigia que a queixa fosse apresentada no prazo máximo de seis meses, o procedimento criminal deveria considerar-se extinto, por aplicação do regime mais favorável ao arguido, ditado pelos artigos 2º, nº 4, do Código Penal e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
2. O Tribunal da Relação de Coimbra, depois de analisar as várias posições que se perfilam na doutrina penalista sobre a questão da natureza dos pressupostos positivos da punição, tais como a queixa e a prescrição, concluiu que, estando a sua génese directamente relacionada com a tutela dos direitos dos cidadãos, deveria aplicar-se o regime mais favorável ao arguido, por força do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa. O tribunal não admitiu, porém, a tese do recorrente quanto à extinção do direito de queixa, formulando as seguintes considerações:
'Na verdade, se o crime é de natureza semipública e por força do artigo 115 do C.P., o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar do conhecimento do facto ou dos seus autores. Considerando assim o tempus delicti como critério definidor da existência de um conflito de leis temos que à primitiva natureza pública sucedeu a semi-pública à qual se encontra ligado o regime do impedimento processual consubstanciado na extinção do direito de queixa. Aqui, nos sobreditos termos aplicar-se-á a lei mais favorável ou seja, a lei nova.
[...] Se concordamos com a definição em termos de aplicação da lei mais favorável não podemos deixar de discordar da regra definida em termos de contagem do prazo a quo para exercer o direito de queixa. Na verdade, sendo certo que o arguido tem uma expectativa constitucional de que a sua situação seja protegida pela aplicação da lei mais favorável, não pode o mesmo pretender, ou o legislador contemplar a pretensão, equacionar tal pretensão em termos altamente iníquos para o ofendido. A exigência de queixa tem subjacente uma consideração pela posição do próprio ofendido que, num Estado de Direito, tem razões para pretender que as expectativas legítimas de tutela dos seus direitos não sejam violadas. Daqui que se repute de correcto o entendimento de que o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável tenha de ser equacionado com a posição do ofendido, e de forma a que este não seja colocado numa posição de denegação de justiça. Assim, parece-nos ser inteiramente de sufragar o entendimento de que o termo a quo da contagem do prazo iniciar-se-á no momento em que entrou em vigor a lei nova.'
Com base nesta argumentação, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
3. Inconformado, M... interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. Invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada aos artigos 115º, nº 1, e
226º, nº 3, do Código Penal (versão de 1995) feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por alegada violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. Nas suas alegações, sustentou a tese da extinção do direito de queixa por força da entrada em vigor do novo Código Penal de 1995, nomeadamente do seu artigo
226º, nº 3, que converteu o crime de usura de público em semi-público. Não tendo o ofendido apresentado queixa no prazo estabelecido pelo artigo 112º do Código Penal de 1982 – seis meses –, o procedimento criminal deveria considerar-se extinto, nos termos da nova legislação penal, que impõe a queixa como pressuposto positivo da punição:
'7. O nº 4 do Art. 2º do Código Penal, em cumprimento do que determina a parte final do nº 4 do Art. 29º da Constituição, determina que sejam aplicadas retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
8. Nos Arts. 320º do C.P. de 1982, conjugado com o nº 3 do Art. 226º do C.P. de
1995, na interpretação dada que não permitiu a aplicação do nº 4 do Art. 2º do C.P., e Art. 112º do C.P. de 82 e Art. 115º do C.P. de 95, não pode deixar de violar o nº 4, parte final do Art. 29º da C.R.P., e por tal, torna inconstitucionais os mesmos, na medida em que não se opõem aquela aplicação do nº 3 do Art. 226º e Art. 115º, ambos do Código Penal vigente.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso. Cumpre decidir.
II
4. As normas objecto do presente recurso de constitucionalidade são o nº
1 do artigo 115º e o nº 3 do artigo 226º, ambos do Código Penal, na versão de
1995, na interpretação conjugada que deles foi feita na decisão recorrida:
Artigo 115º, nº 1
'O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.'
Artigo 226º, nº 3
'O procedimento criminal depende de queixa.'
5. Afirma o recorrente que a aplicação deste normativo ao caso sub judice é inconstitucional, por colidir com o princípio da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. O raciocínio do recorrente pode assim resumir-se: uma vez que os factos puníveis
– integrantes do tipo de usura criminosa, crime público, previsto e punível pelo artigo 320º, nº 1, do Código Penal de 1982 – ocorreram em 1989 e, tendo o ofendido apresentado queixa apenas em 1991, foi ultrapassado em muito o prazo de seis meses exigido pelo artigo 112º do Código Penal de 1982; tendo o arguido sido condenado em 1996 pela prática do crime de usura, ao abrigo do artigo 226º, nº 3, do Código Penal de 1995, que configura uma moldura penal mais favorável, também o novo regime de crime semi-público deveria ser-lhe aplicado, o que conduziria, no caso, à extinção do procedimento criminal.
6. O fundamento substancial do princípio consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa resulta de um princípio da necessidade das penas ou da máxima restrição das penas, conforme se retira da análise da doutrina e da jurisprudência (vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 240/97, Diário da República, II, nº112, de 15 de Maio de 1997, p. 5641 ss, e nº 677/98, Diário da República, II, nº 53, de 4 de Março de 1999, p. 3243 ss, e a doutrina aí citada). Afirmou-se no acórdão nº 677/98,
'Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que «qualquer criminalização e respectiva punição» (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no nº 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 do artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.'
A aplicação retroactiva de uma disposição de direito penal não é automática nem incondicional. Não é automática, pois há que ter em atenção, a par do interesse do arguido, outros valores objecto de protecção constitucional, que podem impedir ou limitar a sua aplicação. Não é incondicional, precisamente porque a existência de outros valores constitucionalmente tutelados pode obrigar o órgão de aplicação do direito a proceder a uma ponderação, a fim de atingir uma solução materialmente justa e constitucionalmente adequada (cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa).
7. A transformação de um crime público em semi-público tem relevância ao nível das condições de procedibilidade do crime. A alteração legislativa reflecte a intenção do legislador de, sem querer descriminalizar a conduta, condicionar o direito de punir do Estado à manifestação de vontade do ofendido, por entender que os interesses em jogo são de cariz fundamentalmente privado
(sejam eles pessoais ou patrimoniais). Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5 de Março de 1996
(in CJ, 1996, II, p. 134 ss),
'O Estado, sem prescindir em absoluto do interesse público da realização do direito, dá prevalência aos interesses especiais do ofendido, quer de ordem material, moral, afectiva ou social, para o exercício da acção penal. Ora, se a
«ratio» dos crimes semi-públicos é fazer intervir o direito penal, através da necessidade de o procedimento criminal depender da queixa do ofendido, não pode pretender-se, sob pena de contradição, que o legislador ao instituir esse tipo de crimes, queira retirar ao ofendido tal direito de queixa, por via da descriminalização do facto. Seria um absurdo. E daí que o legislador não tenha criado direito transitório, para regular a situação, cuja resolução está na interpretação da lei.'
Não estando em causa, na 'transformação' de um crime público em semi-público, a descriminalização da conduta, mas tão só uma 'desvalorização' do bem jurídico – no sentido de abdicar do exercício público da acção penal –, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução que permita equilibrar o interesse do arguido em ver-lhe aplicada a lei mais favorável (artigo 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), e o interesse do ofendido em ver-lhe reconhecido o direito de desencadear o procedimento criminal, que encontra apoio no princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático
(artigo 2º da Constituição). A solução parece ser a de, aceitando a aplicação retroactiva do regime do crime que de público passa a semi-público, possibilitar ao ofendido, que no regime anterior não manifestou a sua vontade de perseguir criminalmente o agente – porque tal não era exigido –, cumprir esse ónus, no prazo indicado na lei antiga, mas contado a partir do início de vigência da lei nova (neste sentido, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2ª edição, Coimbra, 1997, p. 245).
É esta, aliás, a via proposta pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, quando afirma que esta tese lhe parece
'razoável e adequada, em termos de operar um justo equilíbrio entre os princípios constitucionais da aplicação retroactiva da lei mais favorável ao arguido – por este invocado - e da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, proclamado pelo artigo 2º da Lei Fundamental (e que não pode deixar de ser considerado ao valorar a situação ou posição do ofendido, «surpreendido» no decurso do processo criminal pela alteração legislativa que modificou a natureza do crime cometido).'
Em síntese, o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição, deve ficar salvaguardado, a fim de proteger o interesse do arguido, mas essa aplicação deve ser sujeita a uma ponderação cuidada dos vários interesses em jogo, o que justificaria a concessão de um prazo para que o ofendido manifestasse, se assim o desejasse, a sua intenção no sentido de desencadear o procedimento criminal.
8. Porém, no caso dos autos, houve apresentação de queixa, apesar da natureza (então) pública do crime de que o arguido foi acusado. Essa queixa surgiu dois anos depois da prática dos factos, é certo, mas o facto de o crime ser então público afasta a caracterização da sua extemporaneidade, porque, justamente, não havia então qualquer prazo para que o ofendido manifestasse a sua intenção de ver o arguido penalmente perseguido pela infracção cometida, no caso de crimes de natureza pública. O prazo indicado no então artigo 112º do Código Penal de 1982 era aplicável aos crimes semi-públicos e particulares; não aos crimes públicos.
Retomando uma vez mais a argumentação do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
'os pressupostos da oportunidade ou tempestividade e da regularidade formal de quaisquer actos jurídicos não podem deixar de ser aferidos pela lei vigente à data em que o seu autor os praticou – sob pena de este, ao acatar estritamente as previsões legais, acabar por ser insolitamente surpreendido com a aplicação retroactiva de leis ulteriormente editadas, que estabelecem prazos ou formas diversas para a expressão ou manifestação da vontade de quem actua no mundo jurídico.'
Seria absurdo, além de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no tempo e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para crimes de outra natureza, a fim de impedir a extinção do procedimento criminal. O ofendido não contava, nem tinha razoavelmente motivos para contar, com a alteração legislativa. Logo, não estava sujeito a qualquer prazo para desencadear o exercício da acção penal. Fê-lo, na altura, sem que tal fosse exigido, assim se comprovando o seu interesse em ver o agente penalmente perseguido pelo comportamento adoptado.
9. Não merece, portanto, censura, a decisão recorrida. Não foi feita uma interpretação inconstitucional dos artigos 115º, nº 1, e 226º, nº 3, do Código Penal de 1995, pois a justa ponderação entre o interesse do arguido e o interesse do ofendido conduzem à conclusão de que sempre teria que se proporcionar ao ofendido uma oportunidade para manifestar a sua intenção de proceder criminalmente, ou seja, de apresentar queixa. Uma vez que a queixa tinha sido apresentada antes da entrada em vigor da nova lei, não há razão para considerar extinto o procedimento criminal.
III
10. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a interpretação dada no acórdão recorrido
às normas dos artigos 115º, nº 1, e 226º, nº 3, do Código Penal de 1995, por considerar que não existe violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa; b. Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no que se refere à matéria de constitucionalidade. Lisboa, 28 de Setembro de 1999 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa