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Proc. nº 299/97
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs, no Tribunal de Círculo de Lisboa, recurso contencioso das deliberações de 18 de Janeiro de 1984, de 26 de Setembro de 1984 e de 15 de Novembro de 1989, da Câmara Municipal de Sintra, com fundamento em duplo vício de violação de lei, por preterição do disposto nos artigos 2º, nº 1 e 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho – in casu, por preterição do parecer homologado pela DGPU, por um lado, e por outro, devido
à não precedência da indispensável autorização do Ministro da Qualidade de Vida.
Citadas para o efeito, vieram a CÂMARA MUNICIPAL DE SINTRA e J..., LDA apresentar contestações. Esta última, além do mais, defendendo-se por excepção e por impugnação, suscitou a questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2º, nº 1 e 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73, de
6 de Junho, por violação do princípio da autonomia do poder local, consagrado nos artigos 6º, 237º e 243º da Constituição da República Portuguesa.
Nas suas alegações continuou a sustentar tal questão de inconstitucionalidade, que concluiu nos termos seguintes:
Os citados artigos 2º e 14º do DL 289/73 são inconstitucionais, pois:
- violam o art. 243º/1 da Constituição, que só permite a tutela de legalidade a posteriori exercida através de inspecções, inquéritos e sindicâncias (cfr. art. 3º da Lei nº 87/89), enquanto os citados arts. 2º e 14º do DL 289/73 consagram uma tutela integrativa de mérito através da exigência de pareceres prévios vinculativos;
- violam o princípio da autonomia das autarquias locais consagrado nos artigos 6º, 237º e segts. da CRP;
- violam no caso concreto os princípios da justiça, da proporcionalidade e da boa fé, consignados no art. 266º da Constituição, ao decretarem a nulidade do loteamento como sanção para a falta de um parecer
[...].
Sustentou ainda a inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 7º do Decreto-Lei nº 292/81, - na medida em que sujeita o pedido de loteamento a autorização ministerial prévia, considerada esta como incluída no elenco das previstas pelo artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73 - por violação do disposto no artigo 167º, alíneas c) e g), da Constituição (versão originária), e por violação do artigo 62º, nº 1 da CRP, ao impor daquela forma restrições ao direito de propriedade.
Por acórdão de 30 de Dezembro de 1993, o Tribunal Administrativo de Círculo negou provimento ao recurso.
2. O Ministério Público interpôs então recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo.
A recorrida J... contra-alegou, mantendo, nas respectivas conclusões, as anteriormente suscitadas questões de inconstitucionalidade.
Por acórdão de 23 de Fevereiro de 1995, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento parcial ao recurso, no tocante à deliberação de 15 de Novembro de 1989, que julgou nula, com fundamento em vício de violação de lei.
No tocante às questões de inconstitucionalidade suscitadas, afirmou-se naquele aresto:
Com efeito, no artº 6º nº 1 da CRP consagra-se o princípio da autonomia das autarquias locais, as quais visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas estando apenas sujeitas a uma tutela que se limita à finalidade de 'verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos (artºs 237º nº 2 e 243º nº 1 da CRP).
Porém, tal como se escreveu no Acórdão de 14/4/94, 'importa não esquecer que, por um lado, a autonomia local não é um valor absoluto, devendo ser compatibilizado com os princípios da unidade e eficácia da Administração Pública e, por outro lado, as atribuições das autarquias locais estão limitadas
à prossecução de interesses próprios das populações respectivas e que em diversas matérias – de que é paradigmático o caso do urbanismo e do ordenamento do território, em que estão em causa interesses que ultrapassam os limites da autarquia envolvida e da respectiva população – constata-se uma concorrência de atribuições e competências da administração central (ou regional) e da administração local. Nestas situações, a intervenção da administração central não representa qualquer tutela, pois não visa controlar a legalidade ou o mérito da actuação das autarquias locais no âmbito das suas específicas atribuições, mas antes o exercício de competências próprias visando a prossecução de interesses gerais postos a cargo dessa administração central'.
Assim, a obrigatoriedade de audiência da DGPU para o licenciamento das operações de loteamento, estabelecida nos artºs 2º e 14º do Dec. Lei nº
289/73, não consagra uma tutela governamental de mérito visando antes acautelar interesses gerais a cargo do Estado. Trata-se de casos de concorrência de atribuições e competências da administração local e da administração central.
[...]
Também não ocorre a invocada violação dos princípios da justiça, da proporcionalidade e da boa fé.
Com efeito, o artº 14º nº 1 do Dec. Lei nº 289/73, ao sancionar com a nulidade os actos das câmaras municipais respeitantes a loteamento não precedidos da audiência da DGPU, não viola os referidos princípios nem o disposto no artº 266º da Constituição da República pois tais princípios reportam-se à actuação da Administração na sua actividade administrativa e, no caso concreto tal sanção resulta do próprio diploma legal. De qualquer forma, estando em causa valores de interesse nacional, ligados ao ordenamento do território e ao ambiente que cumpre ao Estado acautelar, tem de se considerar como justa, equilibrada e proporcionada a nulidade, perante a grave ilegalidade do licenciamento de uma operação de loteamento em que se impunha que fosse e não foi ouvida a DGPU.
3. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2º e 14º do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, por violação dos artigos 6º, nº 1, 237º,
241º, 243º e 266º da Constituição.
Já neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1ª Os artigos 2º e 14º./1 do D.L. nº 289/73, de 6 de Jun., enfermam de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art. 243º/1 da CRP, já que estabelecem uma forma de tutela que transcende a mera averiguação da legalidade dos actos do município, possibilitando à Administração Central impedir a concessão de licenças de loteamento por razões de conveniência ou oportunidade.
2ª Os artigos 2º e 14º./1 do D. L. nº 289/73, de 6 de Jun., ao pressuporem o exercício de poderes de tutela integrativa a priori, enfermam de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art. 243º/1 da CRP, que apenas autoriza intervenções tutelares a posteriori (cfr. Acs Supremo Tribunal Administrativo, de 13.11.90 – Proc. 26.340; de 28.11.89 – Proc. 21.741; de 24.01.89 – Proc. 21.180; de 14.01.88, in Acs. Dout. 324/1514 e BMJ 373/356).
3ª Os artigos 2º e 14º./1 do D.L. nº 289/73, de 6 de Jun., ao instituírem a intervenção da Administração Central como condição de validade de um acto cuja competência está atribuída por lei aos municípios, enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa consagrados nos arts. 6º e 237º da CRP (cfr. Freitas do Amaral, Direito do Urbanismo (Sumários) 1993, e v. Osvaldo Gomes, ob. cit., pág. 401). Por sua vez, o Ministério Público, nas suas contra-alegações, enunciou as seguintes conclusões:
1º - O cometimento à Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização de competência para aprovar as operações de loteamento, a realizar no âmbito de certo município, que alterem, em termos inovatórios, o plano de urbanização legalmente aprovado e em vigor, não representa o exercício de uma 'tutela substitutiva de mérito' a uma pretensa competência exclusiva dos órgãos autárquicos, em sede de planeamento e urbanização, mas o exercício de uma competência própria do Estado, concorrente com a das autarquias e perfeitamente respeitadora da autonomia local, constitucionalmente consagrada.
2ª - A cominação de nulidade para os actos das autarquias que aprovem loteamentos com preterição do parecer atrás referido não representa sanção desproporcionada ou inadequada à gravidade da infracção cometida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – FUNDAMENTOS
4. Tal como resulta das alegações da recorrente, a questão colocada
à apreciação deste Tribunal é a da violação do princípio da autonomia das autarquias locais, consagrado nos artigos 6º, nº 1, 237º e 243º da Constituição, pelas normas constantes dos artigos 2º, nº 1 e 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº
289/73, de 6 de Junho, ao prescreverem a intervenção da Administração Central num acto de competência municipal, na medida em que assim instituem uma forma de tutela integrativa a priori.
Com efeito, foi esta a única questão indicada pela recorrente no requerimento de interposição do recurso, bem como o único fundamento enunciado nas respectivas alegações, tendo assim abandonado outras questões e fundamentos
, que suscitara anteriormente.
As normas em causa dispõem o seguinte: Artigo 2º
1. A câmara municipal pronunciar-se-á depois de ouvido o seu serviço de obras e urbanização quando chefiado por engenheiro, arquitecto ou agente técnico de engenharia, ou, na sua falta, o gabinete técnico da junta distrital, a respectiva comissão de arte e arqueologia e a Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, nos termos a fixar em despacho do Ministro das Obras Públicas, bem como as entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações condicionem a localização ou o licenciamento das obras a realizar.
[...] Artigo 14º
1. Os actos das câmaras municipais respeitantes a operações loteamento quando não sejam precedidos da audiência da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização ou das entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, nos casos em que é devida, ou quando não sejam conformes com o seu parecer ou decisão do Ministro respectivo são nulos e de nenhum efeito.
[...]
Antes de prosseguir, esclareça-se que, apesar de este Decreto-Lei nº
289/73 ter sido revogado pelo Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, ressalvou-se expressamente, todavia, que aos «pedidos de loteamento formulados anteriormente à entrada em vigor do [...] diploma» se continuariam a aplicar as disposições daquele Decreto-Lei nº 289/73 (cfr. artigo 84º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 400/84).
Actualmente, o regime jurídico do licenciamento das operações de loteamento e das obras de urbanização consta do Decreto-Lei nº 334/95, de 28 de Dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/96, de 1 de Agosto; por sua vez, a matéria de bases da política de ordenamento do território e do urbanismo consta, hoje, da Lei nº 48/98, de 11 de Agosto. Tal não obsta, porém, ao conhecimento do recurso, já que foram as normas impugnadas aquelas que foram aplicadas pela decisão recorrida.
5. Este Tribunal já se pronunciou diversas vezes sobre a autonomia das autarquias locais e o instituto da tutela administrativa, enquanto correlacionados com a intervenção concorrencial da Administração Central e da Administração Local no domínio do licenciamento das operações de loteamento e das obras de urbanização e de construção, salientando-se, entre outros, os Acórdãos nº 433/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., págs. 55 e segs.), nº 674/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 609 e segs.), nº 379/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 595 e segs.) e nº 329/99 (inédito).
A propósito desta jurisprudência, afirmou o Conselheiro Artur Maurício (O poder local na jurisprudência do Tribunal Constitucional, conferência proferida no Seminário hispano-português sobre a Administração e o governo local, Barcelona, Maio de 1999, no prelo):
Vem, a propósito, salientar que, sendo as questões relacionadas com o urbanismo e o ordenamento do território aquelas que mais frequentemente se situam em zonas de intersecção dos poderes local e central - e assim, potencialmente, geradoras de litigiosidade, a nível de constitucionalidade, entre os dois poderes – só em tempos relativamente recentes elas começaram a ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional, devido, em especial, a um mais apurado sentido do poder central em relação ao ordenamento do território e ao direito do ambiente, no quadro de uma política de desenvolvimento equilibrado e ecologicamente são, que conduziu a intervenções mais estreitas no âmbito do muito e desordenado que ao longo dos anos se havia consolidado a nível do poder local, fazendo funcionar mecanismos legais ou até aí pouco utilizados ou só então aprovados, susceptíveis de afectar o princípio da autonomia local.
[...]
Uma vez mais o Tribunal Constitucional, citando em largos trechos o seu acórdão de 1993, e depois de deixar claro que, remetida para a lei as atribuições e a organização das autarquias locais e a competência dos seus
órgãos, não pode o legislador 'pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local', tendo antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios privativos 'e que, a matéria relativa ao urbanismo 'se inscreve na esfera autárquica', sustenta que esta 'assume também natureza nacional', não sendo privativa das autarquias.
Salienta, depois, que entre as autarquias e o Estado existe 'uma pura relação de supra-ordenação/infra-ordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia/subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse – o interesse nacional – que assim se sobrepusesse aos interesses locais' o que justifica, tal como se consagra na Constituição, uma tutela de legalidade e não uma tutela de mérito entre o Estado e as autarquias.
Ora, no caso, nem mesmo haveria uma situação de hetero-tutela.
Na verdade, o poder exercido pela JAE é um poder 'essencial para que a JAE possa defender eficazmente os interesses de carácter geral (nacional) que, no domínio do urbanismo, se entrecruzam com interesses de cariz tipicamente local'; a harmonização dos interesses em causa reclamaria 'que o poder de decisão, em vez de se entregar por inteiro às autarquias locais, atribuindo-se ao Estado um mero poder de controlo de legalidade, seja compartilhado pelo ente público que é a JAE, a quem cabe realizar os fins do Estado na matéria'.
Não se verificava, assim, nenhuma tutela substitutiva ou de qualquer outro tipo vedado pela Constituição e, consequentemente, nenhuma violação do princípio da autonomia local.
Já em 1997, o Tribunal Constitucional, através do seu Ac. nº. 548/97 de 1 de Outubro [publicado in 'Diário da República', II Série, de 3 de Dezembro de 1997, p. 14834 ], qualificou de igual modo o poder conferido pelo artigo 1º do DL nº. 349/87 de 5 de Novembro, a um outro instituto público – o então denominado Instituto Português do Património Cultural (IPPC) – de embargar administrativamente 'quaisquer obras ou trabalhos, licenciados ou efectuados, em desconformidade com legislação relativa ao património cultural, nomeadamente nas zonas de protecção dos monumentos nacionais, dos imóveis de interesse público, das zonas especiais de protecção dos imóveis de interesse arqueológico, bem como noutras áreas expressamente designadas na lei' (artigo 1º do citado DL).
Também ali se entendeu que o embargo não consubstanciava nenhuma medida de carácter tutelar, escrevendo-se:
'O objectivo e sentido último da norma sob apreciação não se traduz em qualquer tutela indevida sobre a competência das câmaras municipais nos específicos domínios que a esta pertencem, visando uma outra realidade, com elas confinante, é certo, mas de natureza e matriz diferenciada, qual seja a de o Governo, por força das disposições cogentes do texto constitucional, actuar a sua competência no sentido da promoção e protecção do património cultural, nomeadamente no que toca à sua preservação, defesa e valorização.'
Por último, o Ac. nº. 674/95 de 23 de Novembro [publicado in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 32º vol., p. 609], a respeito da norma
[cfr. art. 65º nº. 1 do DL nº. 400/84, de 31 de Dezembro] que fulmina com nulidade os actos das câmaras municipais respeitantes a operações de loteamento ou a obras de urbanização (a) quando não sejam precedidas da audiência das entidades que devam ser consultadas, (b) quando não sejam conformes com qualquer dos respectivos pareceres vinculativos ou resoluções ou (c) quando não tenham sido submetidos a ratificação ou a contrariem, conforme os casos – e algumas daquelas entidades são órgãos do Poder Central – decidiu pela conformidade constitucional desta norma.
A norma deveria ser lida no sentido da harmonização do espaço comum de actuação das autarquias e do Estado/administração no domínio do urbanismo aberto à intervenção concorrente do poder local e do poder central.
A norma trataria 'de estabelecer, em termos claramente respeitadores da autonomia local, que o procedimento conducente à decisão do licenciamento seja apto a habilitar a autoridade autárquica, a quem cabe o poder de licenciar,
à ponderação de toda a multiplicidade de interesses, sejam eles públicos e particulares, locais e gerais, envolvidos por uma decisão daquela natureza.
Sendo certo que, se o entendimento contrário poderia tornar o procedimento nesta matéria apto à defesa de interesses locais específicos, torná-lo-ia, porém, imune aos interesses gerais postos a cargo da administração central'.
E, recentemente, o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº
329/99, afirmou o seguinte:
O Estado - prescreve o artigo 6º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - é unitário, mas, na sua organização e funcionamento, respeita os princípios da subsidariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública.
As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de
órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (cf. artigo 235º, n.º 1). Embora compita ao legislador definir as atribuições das autarquias locais e as competências dos seus órgãos
(cf. artigo 237º, n.º 1), ao fazê-lo, não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem, antes, que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e que reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer aqueles interesses - os interesses próprios ou privativos das respectivas comunidades.
As autarquias locais constituem, assim, verdadeira administração autónoma.
Uma das matérias que se inscreve na esfera autárquica é, como se viu, a relativa ao urbanismo e, em certos termos, a atinente ao ordenamento do território.
De facto, cumpre-lhes elaborar e aprovar planos municipais de ordenamento do território e, bem assim, regulamentos municipais sobre urbanizações e construções; e, além disso, compete-lhes a gestão urbanística, ou seja, o licenciamento das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras de construção civil (cf. supra, 3).
Acontece, porém que a matéria do ordenamento do território e do urbanismo assume também natureza nacional, pois, nalguns dos seus aspectos, diz respeito à comunidade nacional no seu todo. Mais especificamente: constitui mesmo uma das tarefas fundamentais do Estado 'defender a natureza e o ambiente [
...] e assegurar um correcto ordenamento do território' [ cf. artigo 9º, alínea e), da Constituição] . Por isso é que o artigo 65º, n. 4, da Constituição dispõe que 'o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística'; e que o artigo 66º, n.º 2, prescreve que incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios, 'ordenar e promover o ordenamento do território' [ alínea b)] e 'em colaboração com as autarquias locais', promover 'a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas' [ alínea e)] .
É, assim, uma matéria que - nos dizeres de FERNANDO ALVES CORREIA
(Problemas Actuais cit., página 14) - 'convoca, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais - cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado [ cf. os artigos 9º, alínea e), 65º, n.º 2, alínea a), e n.º 4, e 66º, n.º 2, alínea b)] -, interesses específicos das regiões autónomas [ cf. os artigos 6º, n.º 2, 225º, n.º 2, e 228º, alínea g)] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa, condensados nos artigos 6º, n.º 1, 235º e 237º da Constituição, sendo, por isso, um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autónomas) e municipal'.
E o mesmo autor acrescenta:
Esta ideia de que a problemática do urbanismo - e também, de certo modo, a do ‘ordenamento do território’ [ ...] - é um espaço aberto à intervenção concorrente - e também concertada - entre os entes públicos territoriais acima referidos resulta claramente, no que respeita à planificação urbanística e às expropriações urbanísticas, do n.º 4 do artigo 65º da Constituição, na redacção da Revisão Constitucional de 1997 [ ...] .
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 432/93 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Agosto de 1993), sublinhou esta mesma ideia, que, depois, repetiu no acórdão n.º 379/96 (publicado no Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1996).
No primeiro dos arestos indicados, o Tribunal - depois de acentuar que 'o espaço incomprimível' da autonomia local é o dos 'assuntos próprios do círculo local', os quais se identificam com 'aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratadas de modo autónomo e com responsabilidade própria' - precisou que 'isso não significa que as autarquias locais não possam ou não devam ser chamadas a uma actuação concorrente com a do Estado na realização [ de] tarefas' relativas à matéria de urbanismo. E acrescentou:
A determinação contida no artigo 6º, n.º 4, demonstra precisamente a legitimidade dessa actuação concorrente das autarquias locais na realização das tarefas constitucionais.
Mas aqui já não está presente aquela ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia.
Nesse aresto, acrescentou-se que as matérias de ordenamento do território e do planeamento urbanístico, 'porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em estado' (e, portanto, 'transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais'), não são privativas das autarquias locais. E precisou-se:
Para mais, este domínio da promoção habitacional, urbanismo e gestão do ambiente é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado.
[ Cf. ainda, no mesmo sentido, o acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Março de 1996) e FERNANDO ALVES CORREIA
(O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, página 165)] .
Nas matérias de ordenamento do território e de urbanismo existe, assim, um 'condomínio de atribuições' (a expressão é de FERNANDO ALVES CORREIA), no qual está constitucionalmente reservado ao Estado a competência para a produção das normas gerais sobre a ocupação, uso e transformação do solo, ou seja, para a aprovação das 'bases do ordenamento do território e do urbanismo' [ artigo 165º, n.º 1, alínea z), da Constituição) e, bem assim, dos respectivos decretos-leis de desenvolvimento e demais legislação complementar - maxime, a elaboração e aprovação dos planos regionais e especiais de ordenamento do território [ cf. artigos 198º, n.º 1, alínea c), 199º, alíneas a) e c)] .
Mais: como as matérias do ordenamento do território e do urbanismo não são assuntos do interesse exclusivo das autarquias locais, pois que interessam também à comunidade nacional no seu conjunto, os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa não podem constituir obstáculo a que o Estado reserve para si, entre outras, a competência para ratificar os planos municipais (cf. artigos 3º, nºs 3, e 4, e 16º do Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março) e para fiscalizar, em certos termos, a observância pelas câmaras municipais e pelos particulares das disposições dos planos (assim, FERNANDO ALVES CORREIA, Problemas Actuais cit., página 15).
[...]
É certo que, entre as autarquias locais e o Estado, existe apenas uma relação de supra-ordenação-infra-ordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses do nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse: o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais [ cf. J. BAPTISTA MACHADO (Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade da Constituição de 1976, Coimbra, 1976, página 17); J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 897); e JOSÉ CASALTA NABAIS ('A Autonomia Local', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1993, páginas 171)] . E, por isso, ao Estado cabe apenas exercer, relativamente às autarquias locais, uma função de controlo da legalidade das respectivas decisões administrativas - ou seja, uma pura função de tutela da legalidade: 'a tutela administrativa sobre as autarquias locais - prescreve o artigo 242º, n.º 1, da Constituição - consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'. O objecto dessa tutela (uma tutela de legalidade, que não de mérito) não é o valor da decisão administrativa, a sua utilidade, o seu merecimento, avaliados em vista do fim que a Administração se propôs atingir [ cf. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra,
1955, página 207 e seguintes)] . A sua finalidade é verificar o cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos; não controlar a conveniência ou inconveniência da decisão administrativa, a sua oportunidade ou inoportunidade, a sua correcção ou incorrecção [ cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1986, páginas 692 e 695)] . É uma tutela que - nos dizeres de JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 17) - há-de ser 'apenas uma faculté d’empecher, un frein, admissível para obstar a que as decisões das autarquias extravasem das suas atribuições e invadam as atribuições de outras autarquias ou administrações autónomas'. A autoridade tutelar tem, por isso, de
'cingir-se a reconhecer ou não, dentro de certos limites estabelecidos na lei, as decisões dos entes dotados de autonomia'(ibidem). Esta tutela de legalidade
é, além disso, 'de tipo meramente verificativo', diz DIOGO FREITAS DO AMARAL
(Direito do Urbanismo. Sumários, Lisboa, 1993, página 61). Não comporta, por consequência, qualquer forma de tutela substitutiva, correctiva, homologatória ou orientadora [ cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Anotada cit., página 897. Cf. ainda ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA ('Poderes de intervenção do Estado em matéria de urbanismo. Autonomia local. Tutela', in Scientia Iuridica, tomo XLI, 1992, página 171 e seguintes)] .
Simplesmente, contrariamente ao que sustenta a recorrente, as normas sub iudicio não instituem uma tutela revogatória de legalidade e mérito ou outra qualquer modalidade de tutela proibida pelo artigo 242º, n.º 1, da Constituição.
Tal como se concluiu no citado acórdão n.º 379/96, a propósito da norma constante do n.º 6 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 219/72, de 27 de Junho, que atribui à Junta Autónoma de Estradas (JAE) o poder de embargar obras proibidas nas zonas non aedificandi das estradas nacionais, também agora se conclui que aquelas normas se limitam a regular o exercício de uma competência do próprio Estado.
De facto, os poderes do Estado neste domínio (o domínio do ordenamento do território e do urbanismo) não podem ficar-se por poderes de simples controlo da legalidade das decisões administrativas das autarquias locais, como é próprio dos poderes de tutela. Como, a par de interesses próprios das comunidades locais, confluem aí interesses que são de toda a comunidade nacional, é indispensável 'proceder a uma justa ponderação de todos eles, a fim de conseguir a sua harmonização - o que reclama que o poder de decisão, em vez de se entregar por inteiro às autarquias locais, atribuindo-se ao Estado um mero poder de controlo da legalidade, seja compartilhado' por ele próprio (apud acórdão n.º 379/96).
6. A situação dos presentes autos é, em boa verdade, idêntica à verificada no citado Acórdão nº 674/95, que se debruçou sobre a norma constante do artigo 65º, nº 1, do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, - afirmando-se a sua conformidade à Constituição – e cujo teor é semelhante ao do artigo 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73, aqui em apreço.
Assente assim que as matérias atinentes à política geral de urbanismo e ordenamento do território são matérias de interesse nacional e constituem tarefas do Estado, conclui-se que a intervenção estadual, a par da intervenção própria das autarquias, não traduz qualquer violação da autonomia local, mantendo-se intocado o núcleo essencial desta autonomia. E, de resto, porque se trata de uma competência própria da Administração Central, o respectivo exercício não configura, in casu, qualquer situação de tutela integrativa ou substitutiva: estamos, antes, perante uma competência estadual própria e concorrente com a das autarquias locais, e não perante aquelas outras situações de exercício de meros poderes de controlo da legalidade, característicos do instituto da tutela.
III – DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 2º, nº 1, e 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso. Lisboa, 19 de Outubro de 1999 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa