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Proc. nº 515/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 1999, foi negada a revista interposta pelos ora recorrentes da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Junho de 1998, que, por sua vez, havia negado provimento à apelação que tinha sido interposta da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Almada que havia julgado parcialmente procedente a acção que os ora recorrente haviam proposto contra o Município de Almada, em que alegavam, em síntese, serem proprietários de um terreno e da casa nele construída, que identificaram, direito que segundo os recorrentes adquiriram por usucapião e por acessão industrial, mas que, por deliberação do Município de Almada de 5 de Fevereiro de 1988, foram ordenados a despejo sumário da casa bem como à sua demolição, e em que concluíam pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre os referidos terreno e casa e a condenação do réu a não poder vender o espaço terraplanado.
2. Inconformados com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que negou provimento à revista os ora recorrentes, em 6 de Maio de 1999, apresentaram dois requerimentos autónomos em que, por um lado, arguiam a nulidade do referido aresto e, por outro lado, recorriam do mesmo para o Tribunal Constitucional. No que se refere a este último requerimento, era o seguinte o seu teor:
'O recurso é interposto com base nas alíneas a), b), c), f) e g) do nº 1 do art.
70º da LTC. Pretende-se que o TC aprecie a ilegalidade/inconstitucionalidade das seguintes normas:
- a interpretação dada ao art. 1340º do Cód. Civil vigente e aos art.s 2304 a
2308 e 510 a 518º do Cód. Civil de Seabra, ao arrepio da teorização feita no Ac. do STJ Lx de 13.3.97/2ª Secção/Proc. 955/96.
- a aplicação da Lei nº 54 de 16.7.1913, não obstante a sua revogação pelo art.
3º do DL 47344 de 25.11.1966.
- a interpretação inconstitucional da lei nº 54 de 16.7.1913 – normas relativas ao decurso do prazo para usucapião – por ofender o princípio da igualdade de armas ou de meios consagrado no art. 6º/nº 1 da CEDH – lei com valor reforçado/art. 112º/3 da CRP, e art. 8º da CRO e o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13º da CRP).
- As inconstitucionalidade/ilegalidades foram suscitadas e ajuizadas, para já, nas seguintes peças: a. alegações para o TR Lx de 2.4.97 de fls ; b. acórdão do STJ Lx de 3.3.98 de fls ; c. acórdão do TR Lx de 25.6.98 de fls ; d. interposição de recurso para o STJ Lx de 9.7.98, de fls ; e. alegações para o STJ Lx de 3.11.98 de fls ; f. acórdão do STJ Lx de 22.4.99, de fls.'
3. Indeferida a reclamação por nulidades os ora recorrentes apresentaram novo requerimento, desta vez com o seguinte teor:
'J. R. e R. R., recorrentes nos autos supra referenciados, tendo sido notificados, por carta registada de 18.6.99 do acórdão proferido em 17.6.99, vêm dizer que mantém o recurso interposto, em 6.5.99, para o Tribunal Constitucional, e procedem ainda à sua ampliação/extenção ao acórdão proferido em 17.6.99'.
4. Já neste Tribunal foi proferido despacho/convite aos recorrentes para que dessem cabal cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC.
5. Em resposta à solicitação do Relator os recorrentes apresentaram novo requerimento, desta vez com o seguinte teor:
'1. A inconstitucionalidade/ilegalidade da interpretação do art. 1340º do C.Civil vigente e arts. 2304º a 2308º e 510º a 518º do Código civil de Seabra foi suscitada durante o processo e ajuizada pelo Acórdão do TR Lx. De 25.6.98 e pelos Acórdãos do STJ Lx. De 22.4.99 e 17.6.99, verificando-se, assim, os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Efectivamente, a construção da habitação dos autos foi feita com autorização do Exmo. Sr. Presidente da Câmara e, nessa medida, a boa fé edificativa implica a aquisição do terreno em que está implantada. Por isso, a interpretação contrária dada pelos acórdãos em crise aos normativos citados ofende o princípio da igualdade consagrado no art. 6º/1 da CEDH e os artigos 8º e 13º da CRP.
2. Também a inconsitucionalidade/ilegalidade da interpretação dada ao art.
204º/2 do Código Civil, foi suscitada durante o processo e ajuizada pelo Acórdão do TR Lx de 25.6.98 e pelos acórdãos do STJ Lx de 22.4.99 e 17.6.99, verificando-se, deste modo, os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Na verdade, a noção de prédio urbano abrange sempre o solo, não existindo construção sem solo, sendo ilegal a separação dos conceitos de habitação e solo, pois estes dois elementos são integrantes formando uma unidade incindível. Tendo no ano de 1958, após o verão, o autor J. iniciado a construção de uma obra que, após vários melhoramentos, viria a corresponder à vivenda em causa, o qual foi reconhecido pelo Presidente da CM Almada como proprietário, é evidente que operou a boa fé e aquela posse conduziu à transferência de domínio sobre o solo, por acessão industrial imobiliária. Defender uma tese interpretativa contrária consubstancia flagrante ilegalidade.
3. Mas a inconstitucionalidade/ilegalidade na aplicação e interpretação dada à Lei 54 de 16.7.1913, quer por ter sido revogada pelo art. 3º do DL 47344 de
25.11.1966, quer por alargar arbitrariamente o decurso do prazo para usucapião foi continuamente suscitada durante o processo e ajuizada pelos referidos acórdãos do TR Lx e STJ Lx, verificando-se os pressupostos do recurso da alínea f) do nº 1 do art. 70º da LTC. As autarquias ou o Estado, no domínio privado, estão sujeitas ao regime geral do Código Civil quanto a prazos e não podem beneficiar de normas revogadas. Neste caso, o princípio da igualdade está violado (art. 6º/1 da CEDH e art. 8º e
13º da CRP).
4. Está, deste modo, dado cabal cumprimento ao disposto no art. 75º-A da LTC.'
6. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso (fls. 944 a 952). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'Os recorrentes começam, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que apresentam em 6 de Maio de 1999 (fls. 912 a 915 dos autos), para o qual remete depois o requerimento de fls. 932, por indicar as alíneas a), b), c), f) e g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, como fundamento do recurso. Porém, em resposta à solicitação do Relator para que dessem cabal cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC, os recorrentes já referem apenas as alíneas b)
(quanto às questões de constitucionalidade/legalidade suscitadas nos pontos 1. e
2.) e f) (no que se refere às questões de constitucionalidade/legalidade suscitadas no ponto 3.) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 como fundamento do recurso. Deixam cair, dessa forma, a indicação das alíneas a), c), e g) daquele nº 1 como fundamento do recurso interposto. Importa, por isso, verificar se em relação às questões de
'incontitucionalidade/ilegalidade' (para utilizarmos a expressão dos recorrentes) suscitadas nos pontos 1. e 2. da resposta ao despacho de aperfeiçoamento se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e se em relação à questão de 'inconstitucionalidade/ilegalidade' suscitada no ponto 3. da mesma peça processual se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea f) daquele nº 1. Vejamos então.
6.1. A indicação da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC como fundamento do recurso. Em resposta à solicitação do Relator para que dessem cabal cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da LTC, os recorrentes delimitaram da seguinte forma o objecto do recurso, na parte em que ele teria por fundamento a alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional:
«1. A inconstitucionalidade/ilegalidade da interpretação do art. 1340º do C. Civil vigente e arts. 2304º a 2308º e 510º a 518º do Código Civil de Seabra foi suscitada durante o processo e ajuizada pelo Acórdão do TR Lx. de 25.6.98 e pelos Acórdãos do STJ Lx. De 22.4.99 e 17.6.99, verificando-se, assim, os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Efectivamente, a construção da habitação dos autos foi feita com autorização do Exmo. Sr. Presidente da Câmara e, nessa medida, a boa fé edificativa implica a aquisição do terreno em que está implantada. Por isso, a interpretação contrária dada pelos acórdãos em crise aos normativos citados ofende o princípio da igualdade consagrado no art. 6º/1 da CEDH e os artigos 8º e 13º da CRP.
2. Também a inconsitucionalidade/ilegalidade da interpretação dada ao art.
204º/2 do Código Civil, foi suscitada durante o processo e ajuizada pelo Acórdão do TR Lx de 25.6.98 e pelos acórdãos do STJ Lx de 22.4.99 e 17.6.99, verificando-se, deste modo, os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Na verdade, a noção de prédio urbano abrange sempre o solo, não existindo construção sem solo, sendo ilegal a separação dos conceitos de habitação e solo, pois estes dois elementos são integrantes formando uma unidade incindível. Tendo no ano de 1958, após o verão, o autor J. iniciado a construção de uma obra que, após vários melhoramentos, viria a corresponder à vivenda em causa, o qual foi reconhecido pelo Presidente da CM Almada como proprietário, é evidente que operou a boa fé e aquela posse conduziu à transferência de domínio sobre o solo, por acessão industrial imobiliária. Defender uma tese interpretativa contrária consubstancia flagrante ilegalidade». Em face do teor do requerimento que antecede é manifesto que não pode, como vai ver-se, conhecer-se do objecto do recurso.
6.1.1 Desde logo não pode conhecer-se do objecto do recurso na parte em que os recorrentes solicitam, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, a apreciação da ilegalidade 'da interpretação dada aos artigos 204º, nº 2 e 1340º do C. Civil vigente e 2304º a 2308º e 510º a 518º do Código Civil de Seabra'. É que, como resulta evidente da simples leitura daquela alínea b), o recurso interposto ao seu abrigo tem por objecto exclusivo a apreciação da constitucionalidade - e não da legalidade - de normas que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado. Assim, fora do objecto possível do recurso fica desde já: i) no que se refere ao ponto 1. da resposta dos recorrentes à solicitação do Relator para que dessem cabal cumprimento ao disposto no art. 75º-A da LTC, a parte em que se pretende ver apreciada a ilegalidade 'da interpretação do art.
1340º do C. Civil vigente e arts. 2304º a 2308º e 510º a 518º do Código civil de Seabra': ii) todo o ponto 2. daquela peça processual. É que, no que se refere a esta parte, os recorrentes apenas questionam a ilegalidade - e não a inconstitucionalidade – do artigo 204º, nº 2 do Código Civil, como se pode perceber pela pequena alegação que desenvolvem. Aliás, os recorrentes não identificaram sequer, nesta parte, como exige o artigo 75º-A, nº 2 da LTC e para tal foram convidados pelo Relator, a norma ou princípio constitucional que consideram violado, o que só por si sempre obstaria ao conhecimento do objecto do recurso.
6.1.2 Em face do que antecede o objecto possível do recurso - no que se refere à parte deste em que se invoca como seu fundamento a alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC – estaria assim limitado à apreciação da constitucionalidade 'da interpretação do art. 1340º do C. Civil vigente e arts. 2304º a 2308º e 510º a
518º do Código civil de Seabra'. Porém, como vai ver-se, também nesta parte não é possível conhecer do recurso, por não estarem preenchidos os respectivos pressupostos de admissibilidade.
É que, como este Tribunal tem também afirmado repetidamente, quando o recorrente pretenda questionar apenas uma certa dimensão normativa de um (ou vários) preceito(s) – como, aparentemente, era o caso – tem ele o ónus de precisar o sentido da norma que reputa de inconstitucional, de modo a que, vindo ela a ser considerada inconstitucional com esse sentido, o Tribunal o possa enunciar na decisão, e de forma a que o tribunal recorrido possa, ao reformar a decisão, saber qual o sentido da norma que não pode ser utilizado por ser incompatível com a Lei Fundamental (nesse sentido, entre outros, o acórdão nº 366/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º Vol., pp. 525 e ss.). Ora, manifestamente, nada disto foi feito pelos Recorrentes, que se limitaram a dizer nas alegações que apresentaram junto do Tribunal da Relação de Lisboa
(fls. 668 dos autos): «Assim a 1ª Instância interpretou erradamente o art. 1340º do Cód. Civil vigente e os artºs 2304º a 2308º e 510º a 518º do Cód. de Seabra, encrostando a essas normas, relativamente ao caso dos autos, um sentido ilegal e inconstitucional', frase que mais tarde se limitaram a repetir, desta vez nas alegações que apresentaram perante o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 744 dos autos)». Não colocou, pois, o recorrente, durante o processo, da forma clara e perceptível que vem sendo exigida pelo Tribunal Constitucional, uma questão de constitucionalidade normativa, uma vez que nem concretiza a dimensão normativa desses preceitos que considera inconstitucional nem justifica minimamente a pertinência da inconstitucionalidade que alega – aliás, os recorrentes não indicam ali, sequer, as normas ou princípios constitucionais que consideram violados. Pelo exposto, não pode, também nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso.
6.2. A indicação da alínea f) do nº 1 do artigo 70º da LTC como fundamento do recurso. Nos termos da alínea f) do nº 1 do artigo 70º da LTC - norma ao abrigo da qual o recurso foi interposto no que se refere às questões suscitadas em 3. da peça processual a que vimos fazendo referência (fls. 941) - cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) daquele nº 1. Pressupostos de admissibilidade do recurso que os recorrentes, nesta parte, pretenderam interpor são, pois: a) que os recorrentes tenham suscitado, durante o processo:
- a ilegalidade de norma constante de acto legislativo com fundamento na violação de lei de valor reforçado, ou;
- a ilegalidade de norma constante de diploma regional com fundamento na violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da república, ou;
- a ilegalidade de norma emanada de um órgão de soberania com fundamento na violação do estatuto de região autónoma; b) que, não obstante, a decisão recorrida tenha aplicado a norma cuja ilegalidade, com um daqueles fundamentos, foi suscitada. Verifica-se, porém, que manifestamente não estão reunidos aqueles pressupostos de admissibilidade do recurso. De facto, nos termos da resposta dos recorrentes à solicitação do Relator para que dessem cabal cumprimento ao disposto no art. 75º-A da LTC, os recorrentes pretendem ver apreciada, ao abrigo daquela alínea f) 'a inconstitucionalidade/ilegalidade na aplicação e interpretação dada à Lei 54 de
16.7.1913, quer por ter sido revogada pelo art. 3º do DL 47344 de 25.11.1966, quer por alargar arbitrariamente o decurso do prazo para usucapião (...)'. Ora, como é evidente, e não carece, por isso, de uma mais aprofundada demonstração, manifestamente não se suscita ali qualquer questão de legalidade normativa nos termos já enunciados e pressupostos por aquela alínea f), pelo que efectivamente não pode, também nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso'.
7. Inconformados com esta decisão os recorrentes apresentaram, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência.
8. O recorrido, notificado para responder, querendo, à reclamação apresentada, veio aos autos para sustentar, em suma, o indeferimento da reclamação e a consequente manutenção da decisão sumária impugnada.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
9. Além de um acervo de invectivas contra o Palácio Ratton em geral e o Relator em particular, os ora recorrentes nada acrescentam de novo que possa por em causa o teor da decisão reclamada, em cuja fundamentação se encontram já as respostas para as - absolutamente infundadas - questões suscitadas pelos reclamantes. Assim, pelas razões constantes da decisão reclamada que em nada são abaladas pela reclamação apresentada, e sem necessidade de maiores considerações, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que os recorrentes pretenderam interpor.
III - Decisão Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta Lisboa, 22 de Fevereiro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida