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Processo nº 503/97
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1.1. - M... e outros, identificados nos autos, instauraram acção declarativa de condenação, com processo ordinário, no Tribunal Judicial da Comarca de Mafra, pedindo a condenação solidária de J... e mulher, K..., a pagar-lhes a quantia de Esc: 7.920.000$00, acrescida de juros de mora vincendos à taxa máxima aplicável
às operações bancárias, sobre o capital em dívida, desde 30/06/91 até integral pagamento. Os RR. contestaram, pugnando pela improcedência da acção, e pediram a condenação dos AA. como litigantes de má-fé. Feito o saneamento do processo e elaborada a especificação e questionário, os autos prosseguiram os seus ulteriores termos com vista à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que, em 3 de Março de 1995, foi proferida sentença, condenando solidariamente os RR. a pagarem aos AA. a quantia de Esc:
7.000.000$00, a que acresce ainda o montante de Esc: 120.000$00, o que perfaz o total de Esc: 7.120.000$00, acrescida de juros vincendos à taxa legal desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento. Desta sentença apelaram tempestivamente os RR, concluindo as respectivas alegações pedindo que a sentença recorrida seja em parte revogada - mantendo-se apenas no que respeita à sua condenação no pagamento da quantia de Esc:
120.000$00 -, e absolvendo-se os RR. do demais pedido. Os apelados contra-alegaram, pugnando pela manutenção do julgado. Por acórdão de 21 de Março de 1996, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou integralmente a sentença recorrida.
1.2. - Inconformados os RR. interpuseram recurso de revista, concluindo as suas alegações com a afirmação de que o acórdão recorrido violou os artigos
342º, 798º, 879º e 885º do Código Civil, e os artigos 659º, n.º3, 660º, 684º, n.º3 e 690º, n.º1 do Código de Processo Civil, pelo que, em seu entender, deveria o mesmo ser revogado em parte, mantendo-se apenas a decisão quanto à condenação de pagamento aos AA. da quantia de Esc: 120.000$00, acrescida de juros vincendos. Os recorridos alegaram no sentido da improcedência do recurso. Conhecendo do recurso, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 18 de Março de 1997, julgou, em parte, procedentes as conclusões dos recorrentes e, em consequência, concedeu a revista.
1.3. - Do assim decidido, vieram os recorridos, ao abrigo do disposto nos artigos 668º, n.º1, al. d), 2ª parte, 716º e 732º, todos do Código de Processo Civil, arguir a nulidade do acórdão, sob o entendimento de que o Supremo Tribunal de Justiça, em violação do disposto no artigo 729º n.º3 do Código de Processo Civil, alterou as conclusões de facto tiradas pela Relação, tomando conhecimento de questão que lhe estava vedada, em vez de mandar baixar o processo. No mesmo requerimento, arguiram a inconstitucionalidade da norma
ínsita no artigo 729º n.º3 do CPC, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, por violação dos princípios consagrados nos artigos 2º e 20º n.º1 da Constituição.
Sobre aquela questão pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 5 de Junho de 1997, julgou improcedente a reclamação, considerando não ter ocorrido a nulidade invocada. Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que, «a admitir-se que razão assistia aos reclamantes, o que não se concede, a sua insatisfação dirige-se antes a uma situação de erro de julgamento, que não tem a ver com aquela invocação», e o
«Supremo Tribunal ao conhecer da questão fê-lo segundo uma determinada vertente, de que os reclamantes discordam, mas isto não significa que se tenha infringido o estatuído na citada al. d), do n.º1, do art. 668º do C.Proc. Civil».
1.4. - Em de 8 de Julho de 1997, os então recorridos juntaram o requerimento de fls. 272, no qual declaram que «vêm, nos termos do artigo 70º, n.ºs 1, alínea b), e 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, interpor recurso do acórdão proferido neste recurso, bem como do acórdão proferido sobre o requerimento de arguição de nulidades apresentado pelos ora recorrentes, porquanto neste último requerimento foi suscitada a inconstitucionalidade da interpretação que se fez do artigo
729º, n.º3, do Código de Processo Civil».
O recurso, assim interposto, foi admitido por despacho de fls. 274v.
Neste Tribunal foram os recorrentes notificados, nos termos e para os efeitos do artigo 75º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para suprirem as faltas do seu requerimento, indicando, com precisão a norma ou princípio constitucional que entendem ter sido violados e a interpretação normativa que pretendem ver apreciada, tendo os mesmos, em resposta, feito junção do requerimento de fls. 281 a 284 (cfr. infra, II-1.1.).
Os recorrentes apresentaram as alegações que constam de fls. 286 a 303, as quais completaram, após despacho-convite do relator, com as seguintes conclusões:
1. «A presente acção foi julgada procedente nas duas instâncias, com base nos factos ali (nas duas instâncias) dados como provados.
2. Interposto recurso, de revista, do acórdão da Relação, para o Supremo Tribunal de Justiça, este concedeu a revista.
3. Ao fazê-lo, pronunciou-se (o S.T.J.) sobre matéria de facto, para o que alterou a que fora definitivamente assente pelas instâncias.
4. E fê-lo contra legem.
5. Porque o Supremo Tribunal de Justiça não é um tribunal de instância.
6. Pelo que conhece unicamente de questões de direito.
7. Acórdão recorrido ofendeu, assim, os princípios constitucionais de o Supremo Tribunal de Justiça não ser um tribunal de instância e da protecção da confiança e da segurança jurídica, considerados como elementos essenciais do princípio do Estado de direito, que se traduz na previsibilidade, ou seja, 'na certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos', designadamente os que dizem respeito 80 modo de funcionamento dos tribunais, consagrados nos artigos 2º, 207º e 212º da Constituição.
8. Disposições legais violadas: artigos 729º, n.º2 e 722º n.º2 do Código de Processo Civil e 212º, n.ºs 3 e 4, a contrario (versão de 1989), 210º, n.ºs 3, 4 e 5 (versão de 1997), 2º e 207º da Constituição». Nas contra-alegações os recorridos suscitaram a questão prévia do não conhecimento do recurso, invocando que a questão de constitucionalidade só foi levantada pelos recorrentes no requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Os recorrentes responderam, argumentando, em síntese, que «o Tribunal Constitucional tem admitido o recurso apesar de a questão ter sido suscitada depois de proferida a decisão final, nos casos em que se verifique uma situação excepcional ou anómala capaz de justificar o levantamento da questão após a decisão final», sendo que «um desses casos é o de o recorrente não ter disposto de 'oportunidade processual' para levantar a questão antes da decisão final e ser 'confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e inesperada', para além da previsibilidade normal», como sucedeu nos presentes autos (cfr. artigos 4º a 6º do requerimento de fls. 318 a
318).
II
1. - Delimitação do objecto do recurso
1.1. - De acordo com o requerimento de fls. 281 a 284 é perceptível que, com o presente recurso, interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º1, al. b), da Lei do Tribunal Constitucional, se pretende a apreciação da constitucionalidade das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual é permitido
àquele Alto Tribunal alterar a decisão de facto da 2ª instância sem mandar baixar o processo à Relação a fim de a decisão de facto ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, normas estas que os recorrentes afirmam terem sido aplicadas na decisão recorrida com aquela interpretação. Entendem os recorrentes que as referidas normas, na interpretação que delas fez o Supremo Tribunal de Justiça, ofendem os princípios consagrados nos artigos 2º,
207º e 212º da Constituição.
1.2. - Neste enquadramento, importará aludir às normas objecto do recurso, nas interpretações que os recorrentes afirmam terem sido dadas na decisão recorrida e por eles tidas como constitucionalmente censuráveis, consignando-se que os textos se reportam à redacção anterior à reforma da lei adjectiva operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12. O artigo 729º do Código de Processo Civil, inserido na subsecção respeitante ao julgamento do recurso de revista, dispõe, na parte impugnada, o seguinte:
1. «(...)
2. A decisão da 2ª instância quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722º.
3. O processo só volta à 2ª instância quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.»
2. - Do não conhecimento do objecto do recurso
2.1. - Constitui jurisprudência reiterada, impressiva e uniforme do Tribunal Constitucional que os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da sua Lei Orgânica, como é o caso dos presentes autos, só são admissíveis se congregarem necessariamente alguns pressupostos, um dos quais consiste na suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo e o que subentende a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Deste logo, o recurso de constitucionalidade não visa a apreciação de constitucionalidade de uma decisão judicial qua tale, reportando-se o sistema de fiscalização a normas jurídicas, como é pacífico: não se discute a constitucionalidade da decisão, uma vez que só interessa para o julgamento da causa o juízo que na decisão se contenha sobre a constitucionalidade da norma. Por outro lado, conforme também vem sendo reafirmado por este Tribunal, o requerimento de interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º n.º2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º1 do artigo
75º-A desta Lei), sem prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, n.º3). O que o recorrente não pode fazer é nas alegações (recte, nas suas conclusões) ampliar o objecto do recurso antes definido. (Neste sentido, cfr. acórdãos n.ºs 71/92,
323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na IIª Série do Diário da República de, 18/08/92, 22/10/92, 22/03/95, 02/05/96, 15/07/96 e 01/03/97, respectivamente). Compulsados os autos, verifica-se que, embora os recorrentes tenham indicado, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, depois do despacho-convite do relator, qual a interpretação normativa que pretendiam ver apreciada - a do artigo 729º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça - (cfr. requerimento de fls.
281 a 284), certo é que, nas conclusões das alegações, que só apresentaram também após despacho nesse sentido, abandonaram a questão de constitucionalidade normativa que anteriormente suscitaram, passando a imputar à decisão recorrida a violação dos princípios constitucionais invocados e das normas da lei adjectiva civil, como claramente resulta das conclusões 7ª e 8ª: « O acórdão recorrido ofendeu, assim, os princípios constitucionais (...), consagrados nos artigos 2º,
207º e 212º da Constituição »; e « Disposições legais violadas: artigo 729º, n.º2 e 722º n.º2, do Código de Processo Civil e 212º, n.ºs 3 e 4. a contrario
(versão de 1989), 210º, n.ºs 3. 4 e 5 (versão de 1997), 2º e 207º de Constituição ». Ou seja, nas conclusões da motivação de recurso os recorrentes imputam o vício de constitucionalidade à própria decisão e não a qualquer norma, no todo ou em parte, ou numa dada dimensão interpretativa. Ora, como se disse, o recurso de constitucionalidade não visa a apreciação da constitucionalidade de uma decisão, uma vez que só interessa para o julgamento da causa o juízo que na decisão se contenha sobre a constitucionalidade da norma. Por outras palavras, no exercício do controlo normativo escapa à competência cognoscitiva do Tribunal Constitucional - de acordo com o nosso ordenamento jurídico - qualquer forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida à decisão judicial, em si mesma considerada. Assim, competindo aos recorrentes o ónus de suscitação da questão concreta de constitucionalidade, deverão estes cumpri-lo, referenciando-a normativamente, pondo desse modo em causa, por alegada violação de preceito constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada, sendo que o cumprimento desta imposição terá que ser mantido nas conclusões da respectiva motivação, atenta a finalidade destas. E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, como é o caso, os recorrentes, além de suscitar atempadamente a questão, deverão fazê-lo de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta. Assim, seja porque se entenda que os recorrentes abandonaram a questão de constitucionalidade normativa, seja porque se considere que não a equacionaram adequadamente, não se deve tomar conhecimento do recurso.
2.2. - Porém, mesmo admitindo uma leitura mais flexível, que considere terem os requerentes equacionado adequadamente a questão de constitucionalidade, ou que o fizeram de forma perceptível, ainda assim, não deve conhecer-se do objecto do recurso, pois tal questão não foi suscitada em tempo, como referem os recorridos. Na verdade, a questão de constitucionalidade deve ser levantada durante o processo, entendendo-se esta locução em sentido funcional, de modo a que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado o respectivo poder jurisdicional, o que, em regra, acontece com a prolação da sentença. No caso dos autos, os recorrentes só invocaram a inconstitucionalidade das normas em apreço no requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 1997. Em sua defesa fazem os recorrentes apelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional que tem admitido o recurso de constitucionalidade apesar de a questão ter sido suscitada depois de proferida a decisão final, naqueles casos em que se verifica uma situação excepcional ou anómala capaz de justificar o levantamento da questão após aquela decisão, como seja o de os recorrentes não terem disposto de 'oportunidade processual' para levantar a questão antes da decisão final e serem 'confrontados com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e inesperada', para além da previsibilidade normal, como, no dizer dos recorrentes, sucedeu no caso dos autos. Sustentam os recorrentes, em síntese, que tendo em conta o disposto no artigo
729º, n.º2, do Código de Processo Civil, que dispõe que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional do n.º2 do artigo 722º do mesmo código, era certo e seguro que o Supremo Tribunal não podia alterar a decisão da Relação, pelo que, tendo-o feito, foram 'totalmente surpreendidos pela decisão do Supremo Tribunal'. Vejamos: Com a acção declarativa que instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de Mafra visavam os AA., ora recorrentes, obter o pagamento pelos RR. da parte do preço devido pela venda do imóvel, que identificam na petição inicial, e de despesas relativas ao pagamento da sisa e com a realização da escritura. Para tanto, alegaram os AA., na parte que ora nos interessa, que, apesar de terem declarado na escritura já terem recebido integralmente o preço da venda - Esc: 10.000.000$00 -, na verdade, «do preço acordado somente foi pago pelo R.-marido ao 1º A. a quantia de 3.000.000$00, a título de sinal» (artigo 8º da p.i.), não tendo os RR. pago o remanescente. Esta alegação esteve na origem do quesito 1º, com o seguinte teor: «Do preço referido em B), os Réus só pagaram a quantia de três milhões de escudos?»,
(sendo que a alínea B) da especificação se reporta ao teor da escritura de compra e venda na qual se declara que o preço foi de dez milhões de escudos). A este quesito o Tribunal Colectivo deu a seguinte resposta: «Provado que do preço referido em B) - dez milhões de escudos - os RR. entregaram a quantia de três milhões de escudos dos quais um milhão e quinhentos mil escudos eram para pagamento do referido preço» (cfr. acórdão de fls. 152). Na sentença de fls. 156 a 160, que condenou os RR., além do mais, no pagamento da quantia de Esc: 7.000.000$00, referente à parte do preço em falta, teve-se como fundamento que ficou provado que os RR. apenas procederam ao pagamento da quantia de Esc: 1.500.000$00 dos Esc: 10.000.000$00 acordados como preço. No recurso que oportunamente interpuseram para a Relação, os RR. fundamentaram as suas razões de discordância com a sentença, precisamente, no facto de não ter ficado provado que os RR. só entregaram aqueles três milhões de escudos e que eram os AA. que tinham o ónus da prova desse facto, como claramente resulta das conclusões 10ª a 14ª da respectiva motivação. Do mesmo modo, no recurso que interpuseram do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa , que confirmou a decisão da 1ª instância, os RR. mantiveram a sua pretensão, sustentando que dos factos provados não se podia concluir que o preço não estivesse integralmente pago e que o ónus da prova de tal facto competia aos AA. (cfr. conclusões 9ª a 14ª, entre outras, das alegações de fls. 220 a 231). O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 18 de Março de 1997, considerou, em síntese, que, face à resposta dada ao quesito 1º e às regras do ónus da prova não se podia dar como provado que os RR. só tivessem pago a quantia de
3.000.000$00 do preço global da venda, declarado na escritura, acolhendo a tese propugnada pelos RR., então recorrentes. Assim, não podem os AA., aqui recorrentes, invocar que foram surpreendidos pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça e que com ela não contavam, porque, o Supremo Tribunal de Justiça apenas optou por uma das teses em confronto, e não constitui objecto do recurso de constitucionalidade a sindicância da bondade da decisão. Deste modo, os ora recorrentes, se entendiam que ao Supremo Tribunal de Justiça estava legalmente vedado alterar as conclusões que as instâncias retiraram da matéria de facto dada como provada, como os ora recorridos defenderam nas conclusões das alegações dos recursos de apelação e de revista, logo deveriam ter arguido a inconstitucionalidade da interpretação normativa que assim permitisse concluir. Como não o fizeram, e apenas colocaram a questão de constitucionalidade aquando do requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 1997, tal arguição é extemporânea.
2.3. - Acresce que, contrariamente ao que os recorrentes afirmam, o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou as normas objecto do recurso - as constantes dos n.ºs 2 e 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil - com a interpretação que os recorrentes lhes imputam. O aresto recorrido, no essencial fundamentou-se no seguinte: o « A questão fulcral, que cumpre solucionar, respeita ao pagamento do preço da venda, no montante de 10.000.000$00. o Na escritura consignou-se que a vendedora recebeu esse preço, sendo conferida nesse acto, a correspondente quitação. o Não obstante, os AA., sucessores da vendedora, vieram alegar no artigo
8º da p.i. que 'Do preço acordado somente foi pago pelo R. marido ao 1º A. a quantia de 3.000.000$00, a título de sinal', tendo sido este factualismo vertido no Q. 1º ao qual foi dada a seguinte redacção: 'Do preço referido em B), os RR. só pagaram a quantia de 3.000.000$00?'. o A resposta do Tribunal Colectivo foi 'Provado que do preço referido em B) - dez milhões de escudos - os RR. entregaram a quantia de três milhões de escudos dos quais um milhão e quinhentos mil escudos eram para pagamento do referido preço'. o Eliminou-se, como se vê, o 'somente', optando-se por uma resposta que não é clara, dado o contexto do quesito, que é deficiente, senão mesmo obscura, pois fica-se sem saber se, com a eliminação daquele vocábulo, o Tribunal Colectivo quis expressar as sua dúvidas sobre se o preço integral da venda
(10.000.000$00) tinha sido efectivamente pago ou se admitiu este pagamento por outros meios».
Face a este circunstancialismo, considerou o Supremo que a Relação, no uso dos poderes de cognição em matéria de facto (n.º 2 do artigo 721º do CPC) poderia e deveria ter anulado a resposta do Colectivo a este quesito, mas, como não o fez, não competia ao Supremo Tribunal sindicar, agora, esse não uso (v.ac. do STJ, no rec. 430/96/2ª- referido no aresto), sendo que o conhecimento de resposta deficiente a um quesito não constitui matéria de direito.
No entanto, acrescentou-se no mesmo aresto que: o « Não obstante aquela resposta, a Relação, ao arrepio do que estatui o n.º1 do artigo 712º, que estipula que as respostas do Tribunal Colectivo não podem ser alteradas pela Relação, salvas as excepções das als. a), b) e c), que não ocorreu na circunstância (v. R. Bastos, Notas ao CPC, III - 333 e segs), como igualmente fizera o Sr. Juiz da 1ª Instância, esquecendo também que não podia concluir de forma diferente, a apelação, dizemos, tirou a conclusão indevida 'de que os RR., agora apelantes, apenas entregaram 3.000.000$00, pelo que devem aos AA. a restante parte do preço, na quantia de 7.000.000$00. o Na verdade, embora as instâncias possam tirar, dos factos provados, conclusões que sejam o desenvolvimento lógico e racional desses mesmos factos, não podem alterar a sua substância intrínseca, têm-se de manter dentro do seu espírito, não podem, assim, concluir de uma forma que signifique, afinal, a alteração do sentido das respostas que lhe haviam sido dados. o Deste modo, infringiu-se, sem dúvida, o disposto no n.º1 do artigo
712º, daqui se retirando as devidas consequências que são a censura do desenvolvimento que as instâncias deram à resposta dada pelo Tribunal Colectivo ao Q. 1º e a reposição integral desta mesma resposta. o Constitui-se, assim, uma situação de 'non liquet', de dúvida, sobre a certeza do facto (do artigo 8º da p.i.) que é crucial para a pretensão dos apelados, a quem competia (artigo 342º, n.º1 do CC) o respectivo ónus probatório, e que deve ser resolvida contra estes, dando-se como não provado o facto, ou seja, dando-se como não provado que 'do preço acordado somente foi pago pelo R. marido a quantia de 3.000.000$00, a título de sinal'». Como se vê, não consta do texto do acórdão de 18 de Março de 1987, nem resulta do acórdão que decidiu a nulidade invocada pelos recorrentes, que o Supremo Tribunal de Justiça haja feito aplicação da alegada interpretação das normas objecto do recurso de constitucionalidade. E se dúvidas houvesse bastaria observar que o Supremo, em relação à resposta dada ao quesito 1º, afirma que a
2ª instância podia e devia ter anulado a resposta do Colectivo e, como não o fez, considerou que não competia ao Supremo Tribunal sindicar tal facto. Aliás, a conclusão a que o Supremo chegou vem na sequência do raciocínio lógico-jurídico da argumentação expendida no aresto recorrido, que na resolução da questão colocada optou por uma vertente jurídica de que os recorrentes discordam. Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça, quando afirma que se deve dar como não provado que «do preço acordado somente foi pago pelo R.-marido a quantia de Esc:
3.000.000$00, a título de sinal», não está a alterar a resposta dada ao quesito
1º, como propugnam os recorrentes, está, antes, a afirmar que, tendo em conta essa mesma resposta dada pelo Colectivo na 1ª instância àquele quesito e fazendo funcionar a regra do ónus da prova constante do artigo 342º, n.º1, do Código Civil, deve extrair-se aquela conclusão, o que é diferente.
Na verdade, a insatisfação dos recorrentes dirige-se, antes, a uma situação de eventual erro de julgamento, que não tem a ver com a questão de constitucionalidade suscitada, pois o Supremo Tribunal ao conhecer do recurso fê-lo segundo uma determinada vertente, de que os reclamantes discordam, não tendo feito aplicação das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil com a interpretação que os recorrentes lhe imputam.
2.4. - Em face do exposto, por falta de pressupostos, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
III
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, com taxa e justiça que se fixa em 6 (seis) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Setembro de 1999- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida