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Processo n.º 566/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão daquele Tribunal de 9 de maio de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 379/12 decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (i). Tratando-se de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade indispensável é ainda que a norma cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida (ii).
(i) 2.1. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição da República Portuguesa não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional».
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos cuja desconformidade constitucional se suscita.
2.2. No caso sob apreciação o recorrente formula do seguinte modo a pretensão que apresentou ao recurso:
«O arguido pretende que o Tribunal Constitucional declare a norma do artigo 25.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01 inconstitucional quando interpretada no sentido de que não fere o direito pleno de defesa e da presunção da inocência inscritos no artigo 32.º n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa o preenchimento do crime de tráfico de menor gravidade sem conhecer pericialmente o estado psíquico e neurológico do arguido e o modo e grau do seu contudo de heroína, bastando-se com os elementos circunstanciais que o impedem de saber se a finalidade exclusiva do arguido era ou não a de conseguir o dinheiro necessário ao seu consumo diário».
Como fundamento da inconstitucionalidade, o recorrente indica a violação do «direito pleno de defesa e da presunção da inocência inscritos no artigo 32.º n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa».
Como objeto do pedido, identifica a interpretação do artigo 25.º n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01 no sentido de permitir «o preenchimento do crime de tráfico de menor gravidade sem conhecer pericialmente o estado psíquico e neurológico do arguido e o modo e grau do seu contudo [leia-se consumo] de heroína, bastando-se com os elementos circunstanciais que o impedem de saber se a finalidade exclusiva do arguido era ou não a de conseguir o dinheiro necessário ao seu consumo diário».
A pretensão assim formulada não apresenta no seu objeto as características de «normatividade» indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade
Se numa primeira aproximação ainda é possível surpreender um ensaio de abstração na interpretação da norma identificada, o desenvolvimento da formulação adotada não resiste, porém, à particularização do caso concreto. Ao recortar a interpretação do julgador como «bastando-se com os elementos circunstanciais que o impedem de saber se a finalidade exclusiva do arguido era ou não a de conseguir o dinheiro necessário ao seu consumo diário», o recorrente faz inelutável apelo a um momento da decisão que concretizou a mera aplicação da norma às circunstâncias do caso concreto, desta forma eliminando o vislumbre de critério genérico inicialmente ensaiado.
2.3. Para além da exigência de objeto normativo, o Tribunal Constitucional tem entendido serem ainda requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, a suscitação prévia da questão da constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC).
Além da identificação no recurso de constitucionalidade da interpretação normativa cuja constitucionalidade questiona, é necessário que já anteriormente, no decurso do processo, a parte tenha identificado expressamente a referida interpretação, em termos de o Tribunal estar obrigado a dela conhecer. Impõe-se o levantamento da questão de inconstitucionalidade junto do tribunal a quo de forma expressa, direta e clara de modo a criar para este tribunal um dever de pronúncia sobre a matéria. Como tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94).
No recurso que apresentou ao Tribunal da Relação o recorrente condensou a sustentação da «inconstitucionalidade do acórdão por violação das garantias de defesa», na seguinte alegação: «no caso presente, o tribunal de modo não explicitado, aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 porque, sem conhecer pericialmente o estado psíquico e neurológico do arguido e o modo e grau do seu consumo de heroína, decidiu que o mesmo cometeu o crime de tráfico de menor gravidade não aludindo à possibilidade de ter o mesmo cometido ao invés, o crime de tráfico consumo tipificado no artigo 26.º do mesmo diploma, ferindo desse modo as garantias da defesa e da presunção da inocência».
Uma tal enunciação não autonomiza nenhum critério normativo suscetível de ser apreciado e, enquanto tal, acolhido ou afastado, na decisão a proferir pelo Tribunal de recurso, antes proclama a inconstitucionalidade da decisão recorrida enquanto tal, refletindo manifesta discordância relativamente à aplicação do direito àquele caso concreto que qualifica de contrária à Constituição, designadamente às garantias constitucionais de defesa do arguido e sua presunção de inocência.
Conclui-se, assim, que, diante do Tribunal de recurso, o recorrente se limitou a questionar a conformidade constitucional do resultado decisório alcançado sem, todavia, lograr autonomizá-lo do processo interpretativo seguido na decisão impugnada.
Termos em que, na falta de adequada definição de uma questão de inconstitucionalidade normativa, não é possível conhecer do recurso.
(ii) Acresce uma última e definitiva razão a impedir o conhecimento do presente recurso: a não aplicação na decisão proferida pelo Tribunal a quo da interpretação identificada pelo recorrente como padecendo de inconstitucionalidade.
Lido o acórdão recorrido, logo se verifica, com efeito, que as razões que sustentaram a subsunção da conduta apurada ao arguido no tipo incriminador previsto no artigo 25.º do DL 15/93, de 22 de janeiro em detrimento do ilícito criminal tipificado no artigo 26.º do mesmo diploma legal resultaram da direta consideração dos factos provados. Como clara e expressamente se afirma no aludido acórdão, designadamente em sede de apreciação da questão de inconstitucionalidade levantada (no acórdão identificada como «quarta questão»), «a aplicação do disposto no artigo 26.º depende da prova de que o arguido, através da venda de heroína tinha por finalidade exclusiva conseguir plantas para uso pessoal» o que, no caso não se confirmou. O que os factos apurados demonstraram foi, pelo contrário, que o arguido, sendo embora toxicodependente há anos, nos últimos tempos se dedicava à revenda de produto estupefaciente (heroína) a outros consumidores para obter dinheiro e fazer face a parte das suas despesas, levando a que o Tribunal concluísse que o mesmo «não destinava a heroína que comprava exclusivamente para o seu consumo pois também a vendia a terceiros e destinava os proventos a fazer face às despesas».
É certo que o Tribunal de recurso não confirmou a necessidade ou sequer a oportunidade de realização de prova pericial reclamada pelo recorrente para apuramento do estado psíquico e neurológico do arguido, designadamente no que respeita ao modo e grau da sua dependência do consumo de heroína. Esta questão, que foi igualmente objeto de apreciação e decisão no acórdão recorrido («terceira questão»: invocação de nulidade do acórdão de primeira instância por não ter sido realizada a perícia médico-legal prevista no artigo 52.º do DL 15/93, de 22 de janeiro, que o Tribunal recorrido julgou improcedente), não constituiu, porém, elemento determinante ou sequer relevante no enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
Como decorre da sua leitura, neste aspeto particular da subsunção jurídica realizada, a decisão recorrida longe de derivar da desconsideração ou ignorância do grau de dependência do consumo de estupefacientes ou estado psíquico do agente, assentou, isso sim, no facto concretamente apurado de este se dedicar à revenda do produto para fazer face às suas despesas. Não descurando a sua condição de toxicodependente, o Tribunal não ignorou, tão-pouco, os demais factos apurados e estes inviabilizaram o enquadramento jurídico da conduta criminosa no crime p. e p. no artigo 26.º do DL 15/93, de 22 de janeiro, ditando a subsunção no tipo previsto no artigo 25.º do mesmo diploma legal. Ratio do decidido, neste ponto, foi, portanto, a consideração de que independentemente do grau do consumo diário atingido pelo arguido, inegável é que, de acordo com os factos provados, ele se dedicava à revenda de produto estupefaciente, com o que fazia face às suas despesas, não exercendo qualquer outra atividade remunerada.
Não se confirma a aplicação do critério enunciado pelo recorrente, como ratio decidendi, no acórdão recorrido. Assim sendo, a apreciação do presente recurso de constitucionalidade deixaria sempre intocado o sentido da decisão recorrida, o que, atendendo á natureza instrumental deste tipo de recursos – traduzida na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir na solução jurídica do caso – torna inadmissível o seu conhecimento.”
3. Vem agora o recorrente requerer a aclaração daquela decisão, «ao abrigo do disposto nos artigos 4.º, 380.º n.º 1, al. b) a contrario sensu do CPP e 158.º e 669.º do CPC conjugados» com os seguintes fundamentos:
“ 1. O arguido recorreu para este TC nos termos em que o fez (motivações e conclusões) aqui se dando como integralmente reproduzidos por motivo de brevidade, sem prejuízo da reprodução de excertos para a boa compreensão dos fundamentos desta aclaração requerida.
2. Os pontos de que requer aclaração na forma e nos fundamentos são os seguintes:
3. A fls. 5 do acórdão vem escrito:
‘A pretensão assim formulada não apresenta no seu objeto as características de «normatividade» indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade
Se numa primeira aproximação ainda é possível surpreender um ensaio de abstração na interpretação da norma identificada, o desenvolvimento da formulação adotada não resiste, porém, à particularização do caso concreto. Ao recortar a interpretação do julgador como «bastando-se com os elementos circunstanciais que o impedem de saber se a finalidade exclusiva do arguido era ou não a de conseguir o dinheiro necessário ao seu consumo diário», o recorrente faz inelutável apelo a um momento da decisão que concretizou a mera aplicação da norma às circunstâncias do caso concreto, desta forma eliminando o vislumbre de critério genérico inicialmente ensaiado.’
4. Face ao teor dos dois parágrafos reproduzidos, que se nos permita relembrar no essencial o teor da motivação a propósito:
‘A questão que se coloca é … simples de expor: aquando da sua detenção o MP … não cumpriu a norma legalmente obrigatória e urgente inscrita no artigo 52° do DL n° 15/93 de 22.01.
Esse instrumento pericial era essencial, como aliás o próprio texto refere para … avaliar a ilicitude dos seus atos ou … se determinar de acordo com a avaliação feita.
Como é sabido, a determinação do estado de toxico dependência no momento da detenção … é fundamental para a determinação da imputabilidade e, por via disso da própria capacidade de avaliação da ilicitude do ato o que, concretamente se traduz na possibilidade de saber e ponderar em qual norma incriminadora esses atos se encaixam… (…)
É … fundamental avaliar … o grau ou a intensidade dos transtornos psicossomáticos provocados pela toxicodependência do arguido…
O que conduz inevitavelmente à necessidade de saber … qual o grau de consumo diário e de que tipo de droga. (…)
Sem esse instrumento de ordem e natureza técnico científico, o tribunal está impossibilitado de decidir normalmente, dado que nos termos do artigo 163° do CPP: ‘1. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2. Sempre que a convicção do julgador diferir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.’
Estas questões … reconduzem-nos … ao cerne da questão…: o enquadramento jurídico - penal do tráfico de estupefacientes estende-se e autonomiza-se em vários ilícitos penais tipo autónomos. (…) a recondução a um ou outro tipo depende de … avaliação global das circunstâncias … de entre as quais há um elemento crucial sem o qual é impossível decidir senão por aquele tipo que mais beneficia o arguido: o do tráfico consumo do artigo 26° em consequência do desconhecimento do grau de consumo diário do produto estupefaciente de que o mesmo dependia fisiologicamente à altura da detenção e dos factos. (…)
Posto isto, o que fez o tribunal foi interpretar o artigo 25° do DL n° 15/93 de 22.01 de uma tal forma que para o seu preenchimento se bastasse com todas as circunstâncias provadas, menos aquela fundamental: o conhecimento do consumo médio diário.
Prejudicando … o arguido, dado que, sem esse elemento fundamental não é possível avaliar se o seu consumo diário correspondia exatamente ou até não exigiria mais do que as vendas que o tribunal deu como provadas e que o arguido aliás confessou em audiência. (…)
E é nesse sentido preciso que a defesa mantém que o tribunal aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional da norma inscrita no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 a saber, que não é necessário conhecer o grau de consumo para determinar a que ponto a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída e se essa diminuição corresponde ao não ao limiar da finalidade exclusiva inscrita no artigo 26.º do mesmo diploma, ferindo desse modo e por via dessa interpretação o princípio das garantias da defesa e da presunção da inocência.’
5. Perante o teor dos textos reproduzidos, a questão a aclarar é a seguinte:
Se o recorrente, na motivação e nas conclusões ofereceu o elemento de caráter abstrato e geral tendente a identificar a interpretação inconstitucional da norma efetivamente aplicada, a saber, o tribunal aplicou a norma do artigo 25.º do DL n.º 15/93 de 22/01 abdicando do conhecimento de uma questão essencial que só poderia obter através do cumprimento de um ato pericial legalmente obrigatório, como é possível este tribunal ter escrito que ‘A pretensão ... não apresenta no seu objeto as carateristicas de normatividade indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade’?
6. Na verdade não se trata de mera discordância mas sim, de incompreensão de que se requer esclarecimento cabal nos fundamentos, pois se o arguído especificou as carateristicas gerais da norma do artigo 25.º indevidamente interpretada, afirmando, para além do mais que o tribunal se bastou com as circunstâncias que provou, menos aquela essencial - o conhecimento do consumo diário - prejudicando o arguido: ‘dado que, sem esse elemento fundamental não é possível avaliar se o seu consumo diário correspondia exatamente ou até não exigiria mais do que as vendas que o tribunal deu como provadas e que o arguido aliás confessou em audiência. (...)’
7. Pois desse esclarecimento pode ou não resultar que, doravante, os tribunais (na fase de inquérito) possam omitir o cumprimento do ato legalmente obrigatório que é a perícia medico legal inscrita no artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 15/93 e continuar a interpretar e a aplicar a norma do artigo 25° do mesmo diploma sem o apoio desse instrumento pericial obrigatório e fundamental.
Sem prescindir.
8. A fls. 6 do acórdão vem escrito:
‘Além da identificação no recurso de constitucionalidade da interpretação normativa cuja constitucionalidade questiona, é necessário que já anteriormente, no decurso do processo, a parte tenha identificado expressamente a referida interpretação, em termos de o Tribunal estar obrigado a dela conhecer. Impõe-se o levantamento da questão de inconstitucionalidade junto do tribunal a quo de forma expressa, direta e clara de modo a criar para este tribunal um dever de pronúncia sobre a matéria.’
9. Ora, perante esta afirmação, a defesa requer o seguinte esclarecimento: se o arguido estava acusado do cometimento de um crime de tráfico agravado p.p. pelo artigo 24.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, como seria possível antever durante a audiência de julgamento que o tribunal iria convolar o todo para o artigo 25.º; e, sobretudo como seria possível antever, antes da prolação da sentença a interpretação que foi produzida aquando da sua leitura?
10. Recordando que, foi após o conhecimento da sentença proferida pelo tribunal a quo que o arguido, em sede de recurso, logo suscitou essa questão, do seguinte modo na motivação:
b) Inconstitucionalidade do acórdão por interpretação, que fere as garantias da defesa. Nulidade por omissão de pronúncia.
1. Esta é também uma questão essencial que deriva diretamente da explicitação atrás produzida.
2. E que se resume a uma simples questão em jeito de pergunta: por que razão, sem o apoio pericial legalmente obrigatório, que não foi realizado e ao mesmo tempo, dando como provado que o arguido é toxicodependente de heroína desde os 18 anos; dando também como provado que parte do dinheiro fruto da revenda do estupefaciente era consagrado a despesas pessoais; dando como não provado que a parte que restava desse dinheiro após a compra do estupefaciente o dedicava ao uso pessoal; o tribunal concluiu que o arguido cometeu um crime de tráfico de menor gravidade e nem uma palavra proferiu sobre a possibilidade de ter o mesmo cometido tão só e em permanência um crime de tráfico consumo do art. 26° do DL n°15/93 de 22.01?
3. Não fixa qualquer sentido. Porque, justamente a determinação do tipo e grau de consumo, do modo e do meio utilizado, é fundamental para determinar que tipo de ilícito foi cometido.
4. Basta saber que há casos conhecidos de consumo de 4 gramas e meia de heroína injetada diária o que, é uma situação de muito alta dependência que, presume cientificamente um estado de carência que, no período de abstinência condiciona a necessidade irreprimível de conseguir através da venda em grandes quantidades, dinheiro suficiente para esse alto consumo. E esse quadro não deixa de poder configurar o crime do artigo 26.º embora através de grandes quantidades.
5. Quantidades que é imprescindível apurar e aferir ao grau diário médio de consumo, por sua vez aferido ao estado de necessidade psicossomático e toxicológico que o organismo do paciente exige.
5. No fundo é o mesmo que na linguagem comum se aduz perante o valor do dinheiro: para quem é muito rico, 1000 euros não é nada; para o pobre é uma fortuna!
6. Ora, no caso presente, o tribunal de modo não explicitado, aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional do artigo do DL 15/93 de 22.01 porque, sem conhecer pericialmente o estado psíquico e neurológico do arguido e o modo e grau do seu consumo de heroína, decidiu que o mesmo cometeu o crime de tráfico de menor grau idade não aludindo à possibilidade de ter o mesmo cometido ao invés, o crime de tráfico consumo tipificado no artigo 26.º do mesmo diploma ferindo desse modo as garantias da defesa e da presunção da inocência.
7. Decidindo um grau de culpa e de ilicitude e condenando arguido por um crime que, por ventura não cometeu, questão que só poderia ser conhecida, através da provo dos demais pressupostos processuais e extra processuais que poderiam ter sido conhecidos e não o foram.
9. Desse modo prejudicando as garantias da defesa e atingindo o direito à presunção da inocência, na medida precisa em que, o tribunal nua conhecendo de questões periciais que poderia conhecer, ao mesma tempo e concomitantemente, conheceu do grau de ilicitude e de culpa que não poderia decidir sem o auxílio desses mesmos instrumentos médico legais.
11. E também nas conclusões ‘O’ ‘P’ e ‘Q’ dizendo o seguinte:
‘O. E também está ferido de vício insanável porque o tribunal aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional do conceito legal de tráfico de menor gravidade sem conhecer pericialmente o estado psíquico e de necessidade do arguido e o modo e grau do seu consumo de heroína, decidindo que o mesmo cometeu o crime no tipo legal acolhido não aludindo à possibilidade de ter o mesmo cometido ao invés, o tipo de crime de tráfico consumo, ferindo desse modo as garantias da defesa e da presunção da inocência.
P. Decidindo sem assento legal suficiente, um grau de culpa e de ilicitude e condenando arguido por um crime que, por ventura não cometeu, questão que só poderia ser conhecida, através da prova dos demais pressupostos processuais e extra processuais que poderiam ter sido conhecidos e não o foram.
Q. Desse modo prejudicando as garantias da defesa e atingindo o direito à presunção da Inocência, na medida precisa em que, o tribunal não conhecendo de questões periciais que poderia conhecer, ao mesmo tempo e concomitantemente, conheceu do grau de ilicitude e de culpa que não poderia decidir sem o auxílio desses mesmos instrumentos médico legais.’
12. Motivos aduzidos e amplamente explicitados que levam o arguido a declarar o seu interesse na aclaração destas questões a partir do texto da decisão sumária nos termos legais aduzidos.”
4. Notificado, o Ministério Público vem dizer que o requerente só aparentemente apresenta um pedido de aclaração, devendo antes o requerimento ser entendido como uma reclamação, e pronunciando-se pelo seu indeferimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O recorrente requer «a aclaração da decisão sumária, ao abrigo do disposto nos arts. 4.º, 380.º, n.º 1b) a contrario sensu do CPP e 158.º e 669.º do CPC.
Contudo, não especifica qualquer excerto da decisão que comporte obscuridade (impedindo a inteligibilidade) ou ambiguidade (admitindo mais do que um sentido). Bem pelo contrário, quando, no ponto 5) do seu requerimento (acima transcrito), identifica a questão a aclarar, torna evidente a sua discordância relativamente ao decidido que, nessa medida, não pode deixou de compreender.
Na verdade, do requerimento em apreciação decorre, isso sim, que o recorrente discorda do já decidido quanto ao conhecimento do objeto do recuso interposto, o que configura uma reclamação e como tal deve ser tratado – artigo 78º-A, nº 3, da LTC (cfr., entre outros os Acórdãos n.ºs 219/10 e 390/10 deste Tribunal Constitucional).
5.1. Discorda, em primeiro lugar, do não conhecimento do recurso com fundamento na falta de adequada definição de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Contrariando o decidido, o reclamante reitera que «o tribunal aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional da norma inscrita no artigo 25.º do DL 15/93 de 22.01 a saber, que não é necessário conhecer o grau de consumo para determinar a que ponto a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída e se essa diminuição corresponde ou não ao limiar da finalidade exclusiva inscrita no artigo 26.º do mesmo diploma, ferindo desse modo e por via dessa interpretação o princípio das garantias da defesa e da presunção de inocência».
Certo é que o recurso interposto não tem dimensão normativa, na aceção exigida pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional.
Como logo explicitado na decisão sumária, ao ensaiar um sentido normativo para a questão de constitucionalidade que formula, o recorrente não consegue evitar a dependência das circunstâncias do caso concreto na respetiva formulação. Recortando a interpretação do julgador como «bastando-se com os elementos circunstanciais que o impedem de saber se a finalidade exclusiva do arguido era ou não a de conseguir o dinheiro necessário ao seu consumo diário» ou, na formulação agora adotada, afirmando «que o tribunal se bastou com as circunstâncias que provou, menos aquela essencial – o conhecimento do consumo diário (…), dado que, sem esse elemento fundamental não é possível avaliar se o seu consumo diário correspondia exatamente ou até não exigiria mais do que as vendas que o tribunal deu como provadas e que o arguido aliás confessou em audiência (…)», o recorrente faz inevitável apelo às circunstâncias do caso concreto. E, desta forma, denuncia o verdadeiro objetivo do seu recurso: colocar em causa a decisão de facto, qualificação jurídica e determinação da pena assumidas nas instâncias comuns. Estas são, porém, matérias insuscetíveis de sindicância pelo Tribunal Constitucional, não lhe cabendo a apreciar o mérito das decisões preferidas pelos demais tribunais, mas apenas a conformidade constitucional de normas ou critérios normativos caracterizados pela abstração de regras enunciáveis com vocação de aplicação geral.
5.2. Discorda ainda o recorrente da exigência da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade junto do tribunal a quo, como condição de conhecimento deste recurso. Para tanto, em estilo de pergunta, afasta a possibilidade da exigência que lhe é feita, apelando ao efeito surpresa do decidido: «se o arguido estava acusado do cometimento de um crime de tráfico agravado p. p. pelo artigo 24.º n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22.01, como seria possível antever durante a audiência de julgamento que o tribunal iria convolar o todo para o artigo 25.º; e sobretudo como seria possível antever, antes da prolação da sentença a interpretação que foi produzida aquando da sua leitura?».
Ao colocar esta questão, o reclamante confunde, todavia, o tribunal a quo aludido na decisão sumária com o tribunal de 1ª instância, onde se procedeu ao julgamento do arguido. A decisão objeto de recurso para o Tribunal Constitucional é o acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto, sendo este, e não o tribunal de 1ª instância, o tribunal a considerar quando se alude à exigência de «levantamento da questão de inconstitucionalidade junto do tribunal a quo de forma expressa, direta e clara de modo a criar para este tribunal um dever de pronúncia sobre a matéria». E assim sendo, manifesto é que a argumentação do reclamante não tem qualquer razão de ser. Inquestionável é que foi já na sequência de convolação do crime de tráfico por que fora acusado para o crime tipificado no artigo 25.º do mesmo diploma legal, operada na sentença de primeira instância que o ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pelo que, quando recorreu da condenação proferida, não podia ignorar a respetiva fundamentação.
Não estamos, assim, diante de uma decisão-surpresa a dispensar o ónus de suscitação ao longo do processo da questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal Constitucional.
5.3. Por fim, insiste o recorrente em classificar a omissão da realização de exame pericial ao estado psíquico e neurológico do arguido como implicando «inconstitucionalidade do acórdão por interpretação que fere as garantias da defesa [e] nulidade por omissão de pronúncia». A este respeito, limitando-se o requerimento em análise a repetir os argumentos já anteriormente apresentados nos autos, cumpre reiterar a não aplicação na decisão proferida pelo Tribunal a quo da interpretação identificada pelo recorrente como padecendo de inconstitucionalidade pelos fundamentos logo desenvolvidamente adiantados na decisão sumária que rejeitou o conhecimento do recurso. Não tendo constituído a ratio decidendi da decisão proferida, irrelevante se revelaria, para o desfecho dos autos, o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional, o que afronta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Termos em que se impõe confirmar a decisão de não conhecimento do objeto do recurso.
III. Decisão
6. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 28 de agosto de 2012.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria José Rangel de Mesquita – Rui Manuel Moura Ramos.