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Processo n.º 306/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Lda., inconformada com a decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e Publicidade, do Ministério da Economia da Inovação e do Desenvolvimento, que a condenou no pagamento de uma coima no montante de €5.000,00 pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 3.º, n.º 1, alínea c), e 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, e punível nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo diploma legal, interpôs recurso de impugnação da mesma, nos termos do artigo 59.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro, e 244/94, de 14 de setembro.
O 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu apreciando esta impugnação, por decisão proferida em 9 de janeiro de 2012, condenou a arguida na coima de €500,00, pela prática da contraordenação prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, e na coima de €3.500,00, pela prática da contraordenação prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, e, em cúmulo jurídico, na coima única de €3.700,00.
A arguida interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, não tendo o mesmo sido admitido por despacho do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por ter sido considerado extemporâneo.
Inconformada, a arguida reclamou deste despacho para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por decisão de 21 de março de 2012, indeferiu a reclamação.
A arguida recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“1. Dos termos do recurso
Tendo sido proferida sentença, nos presentes autos, na 1ª Instância, a recorrente, não se tendo conformado com a mesma, apresentou o respetivo recurso.
Sucede que, aquele recurso não foi admitido com fundamento na extemporaneidade.
Do despacho de não admissão do mesmo, a ora recorrente apresentou reclamação, de acordo com o disposto no artigo 405º do CPP, aplicável por remissão do artigo 74º n.º 4 do DL n.º 433/82.
No âmbito dessa reclamação, a ora recorrente suscitou diversas inconstitucionalidades na aplicação do disposto no artigo 74º n.º 1 do DL n.º 433/82.
Contudo, as mesmas não mereceram acolhimento, pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
O Tribunal anteriormente referenciado considerou inexistir qualquer inconstitucionalidade na norma anteriormente invocada.
Assim sendo, deve o presente recurso proceder totalmente, com as demais consequências legais.
…
ii) Indicação da alínea do n.º 1 do artigo 70º, ao abrigo da qual o recurso é interposto;
O presente recurso é interposto ao abrigo de duas alíneas do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Assim, o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional que dispõe: “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Por outro lado, o presente recurso, também, é interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 da Lei em referência: “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
iii) Indicação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie
O artigo cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende ver apreciada reconduz-se ao disposto no artigo 74º n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações que estatui:
“O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste.”
iv) Sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, deve constar a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado;
Nos presentes autos, a arguida, ora recorrente, não esteve presente na leitura da decisão e a mesma não lhe foi notificada.
Ora, entende a recorrente que, a arguida deveria ter sido notificada da decisão proferida, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 46º e artigo 47º, ambos do RGCO.
Contudo, se porventura aquelas disposições podem oferecer algumas dúvidas, essas dúvidas esvanecem-se quando se atenta ao teor do artigo 113º, n.º 9 do CPP, aplicável ex vi art. 41º n.º do DL 433/82, de 27 de fevereiro.
O duplo grau de jurisdição consubstancia uma necessidade e uma garantia de defesa, “necessidade e garantia objetivas em razão da natural falibilidade do atuar humano e dos possíveis abusos” (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal III, 2ª Edição).
Nesta medida, a douta decisão viola o disposto no n.º 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que dispõe: “Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
Isto porque, o prazo para recorrer começou a correr a partir do dia da leitura da decisão, quando deveria ter sido a partir da notificação daquela à arguida, ora recorrente, uma vez que esta não esteve presente na leitura da decisão, nem tampouco tinha sido regularmente notificada para o estar.
Assim, o douto despacho violou ou deu errada interpretação ao disposto no artigo 74º n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, no artigo 9º do Código Civil e ao estatuído no artigo 32º n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, não só a diferenciação na contagem do prazo para interpor o recurso, de acordo com o supra exposto, como também a diferenciação de prazos para interpor recurso e para oferecer a respetiva resposta (artigo 413º, n.º 1 do CPP, aplicável por força do n.º 4 do artigo 74º do RGCO) violam o princípio de igualdade de armas e o princípio do processo equitativo, consagrado nos artigos 13º e 20º, n.º 4 da Lei Fundamental.
Assim, e com todo o respeito que é devido, o artigo 74º n.º 1 do RGCO é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13º, 20º n.º 4 e 32º da Constituição da República Portuguesa.
E, o douto despacho proferido violou ou deu errada interpretação ao disposto nos artigos 43º, 74º n.ºs 1 e 4 do RGCO, artigos 13º, 20º n.º 4 e 32º da Constituição da República Portuguesa, artigo 413º n.º 1 do CPP e artigos 8º n.º 2 e 9º n.ºs 2 e 3 do Código Civil.
…
vii) Sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea g) e h) do n.º 1 do artigo 70º, deve constar a identificação da decisão do Tribunal Constitucional ou da Comissão Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional ou ilegal a norma aplicada pela decisão recorrida.
A norma do art. 74º, nºs 1 e 4 do RGCO, que fixa o prazo para interposição do recurso, já foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 27/2006, publicado no DR, 1ª Série de 3.03.2006.
Assim, o TC, no acórdão 27/2006 de 10.01.2006, publicado no DR, nº 45, 1ª Série de 3.03.2006, decidiu “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 74º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo contraordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação do princípio da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20. º Constituição”.
3. Em suma
Há uma clara ofensa do princípio da igualdade de armas, do princípio do processo equitativo e do princípio do duplo grau de jurisdição, consagrados, respetivamente, nos artigos 13º, 20º, n.º 4 e 32º n.º 10 da Lei Fundamental.
A tal acresce que, a norma do art. 74º, nºs 1 e 4 do RGCO já foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 27/2006, publicado no DR, 1ª Série de 3.03.2006.
Assim, estamos perante uma norma violadora da constitucionalidade e da legalidade.
E, com todo o respeito que é devido, encontram-se preenchidos os pressupostos legais para que este recurso seja admitido.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, requer-se a admissão do presente recurso.»
A Recorrente apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. A ora recorrente suscitou diversas inconstitucionalidades na aplicação do disposto no artigo 74º n.º 1 do DL n.º 433/82.
2. O n.º 1 deste artigo estatui: “O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste.”
3. A verdade é que, nos presentes autos, a recorrente não esteve presente na leitura da decisão, nem tampouco foi notificada para estar e, também, a sentença não lhe foi notificada.
4. Ora, entende a recorrente que, na qualidade de arguida, deveria ter sido notificada da decisão proferida, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 46º e artigo 47º, ambos do RGCO, e porque tal resulta do próprio teor da norma em referência – 74º n.º 1 - “caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”.
5. O argumento de que, apenas, releva, para efeitos do disposto no artigo em análise – 74º n.º 1 -, o desconhecimento da realização da audiência e do momento da decisão final e já não, a ausência da arguida, quando esta advenha de um ato de vontade da própria, ou o argumento de que a presença da arguida e/ou seu defensor não é obrigatória, não passam de falsos argumentos que não têm qualquer cabimento na letra da lei.
6. De facto, a última parte do n.º 1 do artigo 74º não faz qualquer menção ao facto da decisão ter acontecido mediante despacho ou da audiência se ter realizado sem a notificação regular da arguida, faz, sim, menção à ausência desta.
7. Em conformidade com o estatuído nos artigos 8º e 9º do Código Civil, o julgador/intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados,
8. Contudo, se porventura aquelas disposições podem oferecer algumas dúvidas, essas dúvidas esvanecem-se quando se atenta ao teor do artigo 113º, n.º 9 do CPP, aplicável ex vi art. 41º n.º do DL 433/82, de 27 de fevereiro, que, independentemente da notificação de uma sentença ao respetivo mandatário, impõe que a mesma seja notificada, também, à arguida.
9. Nesta medida, a douta decisão viola o disposto no n.º 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que dispõe: “Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
10. Isto porque, o prazo para recorrer começou a correr a partir do dia da leitura da decisão, quando deveria ter sido a partir da notificação daquela à arguida, ora recorrente, uma vez que esta não esteve presente na leitura da decisão, nem tampouco tinha sido regularmente notificada para o estar.
11. Assim, o douto despacho violou ou deu errada interpretação ao disposto nos artigos 74º n.º 1, 46º e 47º do Regime Geral das Contraordenações, nos artigos 8º e 9º do Código Civil e ao estatuído no artigo 32º n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
12. Por outro lado, a diferenciação na contagem do prazo para interpor o recurso, de acordo com o supra exposto, como também a diferenciação de prazos para interpor recurso e para oferecer a respetiva resposta (artigo 413º, n.º 1 do CPP, aplicável por força do n.º 4 do artigo 74º do RGCO) violam o princípio de igualdade de armas e o princípio do processo equitativo, consagrados nos artigos 13º e 20º, n.º 4 da Lei Fundamental.
13. A «interpretação sistemática» no sentido de que o prazo de resposta ao recurso em processo contraordenacional deverá ser de 10 dias afigura-se inadmissível, porquanto não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
14. É o próprio artigo 74.º, n.º 4, do RGCO que determina que as lacunas na regulamentação da tramitação do recurso em processo contraordenacional deverão ser preenchidas através da aplicação subsidiária do regime previsto para o processo penal.
15. Assim, não será legítimo «adaptar» de 20 para 10 dias o prazo estipulado no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, de resposta ao recurso, para o qual remete expressamente o regime das contraordenações, porquanto tal consubstanciaria, na realidade, a criação de uma norma pelo intérprete, em violação do princípio da legalidade do processo contraordenacional, consagrado no artigo 43.º do RGCO.
16. Os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica, corolários do princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP), afastam uma interpretação de tal ordem.
17. É certo que, entretanto, surgiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2009 que fixou a seguinte jurisprudência: «Em processo de contraordenação, é de 10 dias quer o prazo de interposição de recurso para a Relação quer o de apresentação da respetiva resposta, nos termos dos artigos 74º, n. ºs 1 e 4 e 41.º do Regime Geral de Contraordenações (RGCO). »
18. No entanto, a jurisprudência uniformizada já não tem força obrigatória geral, desde que ocorreu a revogação e inconstitucionalização parcial do art. 2º do Código Civil,
19. Não sendo esta obrigatória para os outros tribunais, nem impedindo, tampouco, o surgimento de alterações à jurisprudência uniformizada, nomeadamente quando começa a haver decisões de tribunais inferiores a afastar-se daquela, em decisões fundamentadas que ponham, convincentemente em causa a doutrina fixada, o que advém desde logo do disposto no n.º 3 do artigo 445º do CPP.
20. Assim, o douto despacho proferido violou ou deu errada interpretação ao disposto nos artigos 43º, 74º n.ºs 1 e 4 do RGCO, artigos 13º, 20º n.º 4 e 32º da Constituição da República Portuguesa, artigo 413º n.º 1 do CPP e artigos 8º n.º 2 e 9º n.ºs 2 e 3 do Código Civil.
21. Por outro lado, a norma do art. 74º, nºs 1 e 4 do RGCO, que fixa o prazo para interposição do recurso, já foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 27/2006, publicado no DR, 1ª Série de 3.03.2006.
22. Isto porque, a norma, cuja inconstitucionalidade foi requerida, atribui ao recorrente o prazo de 10 dias para motivar o recurso que pretende interpor e 20 dias para apresentar resposta a esse recurso.
23. Assim, tal norma ofende o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, na sua dimensão de princípio de igualdade de armas, na medida em que, face ao disposto naquela norma, resultam prazos distintos para motivar e para responder em processo de contraordenação.
24. Também, no âmbito do acórdão n.º 462/2003 (Diário da República, II série, de 24 de novembro de 2003), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto no artigo 74º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82 com o disposto no artigo 411º do Código de Processo Penal “quando deles decorre (…) um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso”.
25. A posição tomada neste Acórdão fundou-se no Acórdão n.º 1229/96 (Diário da República, II série, de 14 de fevereiro de 1997).
26. No mesmo sentido decidiu o Acórdão n.º 462/2003, proferido pelo Tribunal Constitucional, a decisão sumária n.º 284/2004 e a decisão sumária n.º 318/2005.
27. Face ao exposto, não podemos deixar de concluir que esta norma já foi por diversas vezes julgada inconstitucional, pelo que deverá a mesma ser revogada.
28. Conforme refere J.J. Gomes Canotilho in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição: “Todos os tribunais estão vinculados pelas decisões de declaração de inconstitucionalidade do TC. Isso implica, por ex., a obrigatoriedade de resolverem os processos neles pendentes, «desaplicando» a norma considerada inconstitucional”.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a V.ª Ex.ª se digne julgar procedente por provado o presente recurso e, em consequência, declarar a inconstitucionalidade do disposto no artigo 74º n.º 1 do RGCO, com as demais consequências legais.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
« 1.º Não há coincidência entre a dimensão normativa aplicada na decisão recorrida e a julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 27/2006, pelo que, não se verificam os pressupostos do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n 1 do artigo 70.º da LTC, que, assim, não deve ser admitido.
2.º A norma do artigo 74.º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro (RGCO), interpretada no sentido de que o recurso para o Tribunal da Relação deve ser interposto no prazo de 10 dias a contar da data em que se realizou a audiência de discussão e julgamento onde foi proferida a sentença, e onde esteve presente o Mandatário da arguida, cuja presença não foi considerada necessária pelo Juiz, não afronta a Constituição, designadamente, os alegados artigos 13.º, 20.º, nº 4 e 32.º, nº 3 (cfr. Acs. nºs 77/2005 e 81/2012).
3.º Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC.»
Fundamentação
1. O objeto do recurso constitucional é definido em primeiro lugar pelos termos do requerimento de interposição de recurso.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza (vide, Lopes do Rego, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 207, da ed. de 2010, da Almedina)
Confrontando o teor das conclusões das alegações com o do requerimento de interposição de recurso, constata-se que a Recorrente ampliou os termos em que havia delimitado o objeto do recurso neste requerimento, invocando a inconstitucionalidade de novas dimensões normativas.
A Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, limitou-se a invocar a inconstitucionalidade do disposto no artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações.
Nas alegações agora apresentadas, a Recorrente, além de invocar que a decisão recorrida desrespeitou o disposto naquele e noutros preceitos infraconstitucionais, revela que a acusação de inconstitucionalidade se dirige ao modo como aquele artigo foi aplicado e às interpretações normativas subjacentes a essa aplicação.
Apesar de reportadas ao referido artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, cuja inconstitucionalidade havia sido arguida no requerimento de interposição de recurso, estamos perante novos conteúdos normativos de origem interpretativa, imputados à decisão recorrida, que se diferenciam do sentido do próprio preceito legal, pelo que não é possível considerá-los compreendidos na definição do objeto de recurso efetuada de forma definitiva no requerimento que o interpôs.
Por estes motivos, na apreciação do mérito do presente recurso apenas se efetuará a fiscalização da constitucionalidade das normas imediatamente extraíveis do enunciado literal do artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, estando excluído do seu objeto qualquer uma das agora invocadas interpretações normativas desse preceito.
2. O artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações dispõe o seguinte, relativamente ao recurso para o Tribunal da Relação da decisão que aplique ao arguido uma coima em processo de impugnação judicial da respetiva decisão administrativa:
“O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”.
A Recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo das alíneas b) e g), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
No que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea g), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, a Recorrente invoca que a norma do n.º 1.º do artigo 74.º do Regime Geral das Contraordenações, já foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 27/2006, deste Tribunal Constitucional, no qual se decidiu “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 74º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, conjugada com o artigo 411º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo contraordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação do princípio da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20º da Constituição”.
O recurso para o Tribunal Constitucional previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pressupõe que a norma impugnada já tenha sido anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional, exigindo-se que exista uma estrita coincidência entre a norma ou a interpretação normativa já precedentemente julgada inconstitucional e a norma ou interpretação normativa objeto do atual recurso.
No caso dos autos, a dimensão normativa declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 27/2006, do Tribunal Constitucional, correspondeu a uma determinada interpretação extraída da leitura conjugada do disposto no artigo 74.º do Regime Geral das Contraordenações e do artigo 411.º, do Código de Processo Penal, a qual não se encontra no conteúdo literal do primeiro destes preceitos. Aí apenas se diz que o recurso deve ser interposto num prazo de 10 dias, não sendo possível retirar desse simples enunciado que tal prazo é inferior ao prazo que os recorridos dispõem para contra-alegar.
Assim, não existindo identidade entre a norma constante do preceito legal cuja inconstitucionalidade foi invocada no requerimento de interposição de recurso e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 27/2006, não se verifica um dos requisitos de admissibilidade do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro.
Mas a Recorrente também fundou o recurso na alínea b) do n.º 1 artigo 70.º da LTC.
Sendo objeto do presente recurso apenas a norma constante do teor literal do artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não se lhe aplica nenhuma das razões invocadas pela Recorrente para fundamentar o seu pedido de inconstitucionalidade, uma vez que as mesmas não se dirigem ao disposto nesse preceito, mas sim ao modo como ele foi aplicado pela decisão recorrida.
Limitando-se o artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações a estabelecer que o recurso para a Relação em processo contraordenacional deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste, não resulta do mesmo qualquer distinção na duração dos prazos das diferentes partes para produzirem alegações em recurso neste tipo de processos, nem que esse prazo e a sua forma de contagem impeçam o arguido de exercer o respetivo direito ao recurso, não se revelando que a norma constante do conteúdo literal deste preceito viole qualquer parâmetro constitucional, nomeadamente aqueles que foram invocados pela Recorrente.
Deste modo, deve ser julgado improcedente o recurso interposto.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de julho de 2012 – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – José da Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos