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Proc. nº 109/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O Hospital de S. Francisco Xavier instaurou, junto do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo sumário, contra a Companhia de Seguros B.... e contra V. S.. No requerimento executivo, alegou o exequente, entre o mais, perfazer a dívida dos executados a quantia de 425.142$00, e possuir título executivo nos termos do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, e do artigo 46º, alínea d), do Código de Processo Civil. Nesse mesmo requerimento, nomeou à penhora, 'de harmonia com o disposto nos arts. 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 08/10, 837º e 924º do Código de Processo Civil, quatro dos computadores existentes na sede da executada Companhia de Seguros B...', requerendo que a penhora fosse ordenada, bem como que os executados fossem notificados.
2. Por despacho de 15 de Julho de 1998, proferido no 1º Juízo Cível da Comarca de Lisboa (fls. 7 e 8), foi o exequente convidado a 'em 10 dias, reformular o seu requerimento inicial de modo a requerer que a tramitação do processo prossiga segundo as regras enunciadas no CPC, ou seja, requerendo que a execução se inicie pela citação do/a(s) executado/a(s) e não pela penhora de bens.'.
3. Em 12 de Março de 1999, foi proferido o seguinte despacho no mesmo Juízo (fls. 10 a 19), de que se transcrevem as passagens mais significativas para o que aqui releva:
'[...]
2. Nem nos já longínquos idos de 1974 e 1975, o direito à propriedade deixou de ter consagração constitucional.
[...]
[...] entende o ora julgador que deriva desse normativo [artigo 62º da Constituição] que os cidadãos e as demais pessoas jurídicas que detêm a propriedade de bens só deles podem ser privados contra a sua vontade na sequência de uma decisão judicial, subsistindo uma contrapartida de natureza patrimonial e em obediência a um interesse ou utilidade públicas.
[...]
[...] faltará (pode entender-se justificadamente que falta), neste caso, um interesse ou utilidade públicas que justifiquem (isto é, que tornem necessária/justificável) uma medida dessa gravidade.
[...]
[...] o princípio do contraditório tem consagração constitucional em Portugal, gozando esse direito da força jurídica que a Constituição atribui a todos os demais «direitos, liberdades e garantias», qual seja: que «...(os) preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas» (artº 18º nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Como é evidente, essa protecção constitucional esgota-se na concessão ao demandado de um conhecimento afectivo da pretensão contra si instaurada e de um prazo suficientemente amplo (de um prazo razoável) para se defender das imputações que contra si são feitas. Mas existe até que essas condições estejam verificadas e cumpridas. O que não acontece com o disposto no artº 1º do DL nº 274/97 de 8 de Outubro, quando manda aplicar as regras estabelecidas nas acções executivas para pagamento de quantia certa com processo sumário (exclusivas dos processos em que o título executivo é uma sentença judicial) às execuções para pagamento de quantia certa quando o título executivo não é uma sentença judicial. Na verdade, é admissível – claramente admissível e inquestionável – que nas acções executivas para pagamento de quantia certa com processo sumário os autos se iniciem com a penhora dos bens nomeados pelo aí exequente, porquanto o demandado teve oportunidade de se defender das pretensões contra si deduzidas pelo demandante na acção declarativa que terminou com a sentença condenatória que constitui o título executivo. Mas já o não é quando o executado não teve a possibilidade de, através do «due process of law», apresentar as suas razões contra os factos que motivam o pedido do executado (o caso das injunções – em que, não existindo sentença judicial, existe a possibilidade do contraditório – pode merecer alguma discussão que não vem aqui ao caso, porque não é para esses casos que estipula a Lei cuja constitucionalidade aqui se aprecia).
[...] Efectivamente, lendo o preâmbulo (exposição de motivos) do DL nº 274/97 de 8 de Outubro, constata-se que o objectivo inequívoco do diploma é combater a lentidão da marcha dos processos executivos («Não pode aceitar-se que a duração média das acções executivas continue a oscilar entre 18 meses em 1990 e 17 meses em 1996»)
– e, enfim, com alguma boa vontade, pode entender-se que o bem que aqui se visa proteger é o direito a obter a concessão da justiça em prazo razoável, ou, para usar as palavras que em diploma legal português expressam esse princípio (artº
2º nº 1 do CPC – na versão actualmente em vigor), «...obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar». Ora, sem fazer agora apelo à possibilidade de estarem em conflito um direito com dignidade constitucional (o que decorre do princípio do contraditório) e um outro «tutelado apenas a nível infra-constitucional» – J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in «CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA», Coimbra Editora, – 3ª edição revista (1993), pgs. 151 – como seria o dever do Estado em combater a morosidade do funcionamento do sistema judiciário – é manifesto o
«excesso de meios» relativamente aos fins que através do diploma se visa salvaguardar, e a desnecessidade de meios tão extremos – e a desproporcionalidade dos mesmos – para alcançar uma execução «em tempo razoável» do direito de um credor.
[...]
[...] o ora julgador até entende que o direito que se visa salvaguardar com o DL n.º 274/97 de 8 de Outubro não tem a mesma dignidade que o direito ao contraditório. Aliás, não tem sequer dignidade constitucional.
[...] Pelo exposto e em conclusão: a. declaro inconstitucional o art.º 1º do DL n.º 274/97 de 8 de Outubro por violação dos artºs 18º nºs 1 e 2 e 62º nºs 1 e 2 da Constituição da República; e b. indefiro o pedido formulado nestes autos pela parte exequente.'.
4. Notificado do despacho mencionado em 3., dele veio o Ministério Público interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade (fls. 21). O recurso foi admitido por despacho de fls. 22.
5. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional produziu as alegações de fls. 28 a 46, nelas tendo concluído do seguinte modo:
'1º – O regime constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, ao mandar aplicar à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior à alçada dos tribunais de 1ª instância, mesmo que fundada em título extra-judicial, e em que não sejam penhorados imóveis ou estabelecimento comercial, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória, não viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2º – O diferimento do contraditório do executado para momento ulterior à realização da penhora – permanecendo esta como provisória até julgamento da oposição eventualmente deduzida na sequência da notificação pessoal do executado, nos termos do artigo 926º do Código de Processo Civil – ditado por prementes razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, não viola o referido princípio constitucional, atento o regime globalmente traçado para a tramitação de tal acção executiva.
3º – Na verdade – e para além de o próprio título executivo ser um documento que certifica ou indicia necessariamente, em termos julgados bastantes, a existência do débito – cumpre ao juiz, antes de ordenar a penhora, proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 925º e 811º-A do Código de Processo Civil, devendo indeferir o requerimento executivo nos casos previstos nesta disposição legal, e sendo subsequentemente facultada ao executado, na sequência de notificação pessoal, nos termos do artigo 926º, o pleno contraditório, quanto à própria execução, ao despacho determinativo da penhora e à realização desta
(artigos 926º, nº 3, 863º-A e 815º do Código de Processo Civil).
4º – E podendo o credor, que haja instaurado de forma temerária ou negligente execução com base em crédito inexistente ou já extinto, ser responsabilizado por todos os danos que tenha causado ao executado em consequência do desapossamento dos bens penhorados, através da possível condenação como litigante de má fé, nos termos dos artigos 456º e 457º, nº 1 do Código de Processo Civil.
5º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.'
II
6. O âmbito do presente recurso de constitucionalidade circunscreve-se à apreciação da conformidade constitucional da norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, que assim determina:
'Artigo 1º
(Execução para pagamento de quantia certa) A execução para pagamento de quantia certa, baseada em título que não seja decisão judicial condenatória, segue, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: a) Ser a execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de
1ª instância; b) Recair a penhora sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial.'
7. A questão objecto do presente recurso de constitucionalidade já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, tendo sobre ela sido proferidos os seguintes acórdãos: n.º 162/00, de 22 de Março (processo n.º 657/99); n.º
177/00, de 22 de Março (processo n.º 627/99); n.º 195/00, de 28 de Março
(processo n.º 106/00); n.º 196/00, de 28 de Março (processo n.º 107/00); n.º
227/00, de 5 de Abril (processo n.º 26/00), todos ainda inéditos. Em todos esses arestos, pronunciou-se o Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
274/97, de 8 de Outubro. Disse este Tribunal no mencionado acórdão n.º 162/00, de 22 de Março:
'[...] A tese sustentada pelo magistrado recorrido, se bem se entende, parte do reconhecimento do direito de propriedade a nível constitucional, tal como consagrado está no nº 1 do artigo 62º da CR, daí retirando que os titulares da propriedade de bens só podem ser privados destes, contra sua vontade, na sequência de uma decisão judicial, mediante contrapartida de natureza patrimonial, em casos de interesse ou utilidade pública. É, no entanto, em sede do contraditório que, afinal, radica o fundamento para a recusa de aplicação normativa: no caso da norma em questão, em que o executado não tem oportunidade de se defender das pretensões contra si deduzidas, como sucede nas acções executivas em que o título executivo é uma sentença judicial, o princípio do contraditório mostra-se violado, com natural implicação no direito de acesso aos tribunais que, assim, se veria contrariado, de forma desrazoável e intolerável.
2. A medida decretada pelo Decreto-Lei nº 274/97 integra-se no propósito do legislador em simplificar e abreviar o processo de execução, dado o reconhecimento da necessidade de uma profunda revisão desse tipo de processo
(cfr. a nota preambular ao diploma). Nesta linha de actuação, a norma agora desaplicada veio dispor que se uma execução for de valor não superior ao da alçada do tribunal de 1ª instância e estiver baseada em título executivo representativo de uma obrigação, que não seja uma decisão judicial, segue a forma do processo sumário, desde que a penhora não recaia sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial ou sobre bens móveis dados em penhor. Ora, na forma sumária do processo executivo o direito de nomear bens à penhora pertence exclusivamente ao exequente que os nomeará logo no requerimento executivo e, só depois de feita a penhora, se cita o executado, sendo simultaneamente notificado do requerimento, do despacho determinativo da penhora e da realização desta para, querendo, deduzir, no prazo de 10 dias, embargos de executado ou oposição à penhora (cfr. os artigos 924º e 926º do CPC). As formas do processo executivo para pagamento de quantia certa que já se determinavam, essencialmente, não pelo valor mas sim em função da natureza do título executivo – após as modificações operadas pelos Decretos-Leis nºs.
329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro – sofreram, com o Decreto-Lei nº 274/97, a incidência da aplicação de um novo critério, que amplia o âmbito da execução sumária, nela incluindo certos casos de execução de títulos extrajudiciais que, perante a regra constante do artigo 465º do CPP, deveriam correr sob a forma ordinária (cfr. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 314). No fundo, o que o novo diploma veio, nesta parte, introduzir, foi uma alteração na forma do processo de execução. Sofrerá essa iniciativa, no tocante à norma em causa, da apontada inconstitucionalidade? Entende-se que não.
3. A Constituição, no nº 5 do seu artigo 32º, expressamente consagra o princípio do contraditório no âmbito do processo criminal. Sem embargo, é pacificamente entendido que a mesma dignidade constitucional assiste no processo civil: o Estado de direito democrático, acolhido pelo artigo 2º da Lei Fundamental, reclama a existência de um processo equitativo e leal em que as partes, como se observa no acórdão deste Tribunal, nº 249/97, inter alia, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Maio de 1997, possam expor oportunamente as suas razões, oferecer as suas provas e pronunciar-se sobre as da parte contrária, na sequência da lição de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1976, pág. 377). O contraditório, enquanto 'princípio reitor do processo civil' e, como tal, assumido pelo artigo 3º do respectivo Código, constitui, por sua vez, uma decorrência do direito de acesso aos tribunais, também constitucionalmente garantido (nº 1 do artigo 20º da CR), configurando-se esta como o direito a ver solucionados os conflitos segundo a lei, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência. Nele as partes encontram-se em condições de plena igualdade no que toca à defesa dos respectivos pontos de vista (como, por sua vez, se escreveu no acórdão nº 346/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., págs. 451 e segs.). A norma questionada não atenta, no entanto, contra aquele princípio. Na verdade, uma vez realizada a penhora, não se negam ao executado os meios que lhe permitam opor-se à execução ou à penhora, nos termos prescritos no artigo
926º do CPC, apenas se diferindo para momento ulterior à penhora o exercício do contraditório, como, de resto, já no anterior regime constava (artigo 927º) – cfr. Carlos Lopes do Rego, ob. cit., pág. 617). A esta luz, o diferimento do contraditório pressupõe a provisoriedade da penhora até ao julgamento da oposição eventualmente deduzida, e justifica-se por razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, sem afectar, ao menos desproporcionadamente, o princípio do contraditório, em si mesmo considerado. Como, aliás, destaca o Ministério Público, nas suas alegações, não só o procedimento previsto da dispensa de prévia citação do executado apenas funciona em relação a dívidas de pequeno valor – e em que a existência de um título executivo extra-judicial sempre funciona em termos de razoável probabilidade quanto à existência e à exigibilidade do débito exequendo –, como não dispensa o mecanismo cautelar do indeferimento liminar pelo juiz, nos termos do artigo
811º-A do CPC, permitindo, sempre e de qualquer modo, a plena oportunidade de defesa pelo executado, pela oposição mediante embargos, onde pode questionar quer a execução, quer o próprio acto de penhora, quer a legalidade do despacho que a ordena (CPC, artigos 926º, 815º e 863º-A). Não se entende, na verdade – para já não falar na observância do instituto da litigância de má fé – como se pode surpreender excesso, constitucionalmente censurável, no mecanismo acolhido pelo Decreto-Lei nº 274/97, no seu artigo 1º – exercendo-se o contraditório, se bem que diferidamente, obstando a oposição à execução ou a dedução de embargos, na sequência desse contraditório, a passagem
à fase da venda, que, a ocorrer, configuraria, essa sim, a frustração dos direitos legítimos do executado.
4. Não é, também, posto em causa o invocado direito de propriedade, que o despacho recorrido convoca para articular com a argumentação tecida em torno dos princípios do contraditório e do acesso ao direito e aos tribunais, do mesmo passo violando o princípio da proporcionalidade, contido no artigo 18º, nºs. 1 e
2, da CR. Com efeito, a medida legislativa em referência não afecta intolerável e desproporcionadamente o direito do executado, na medida em que a penhora não implica privação do direito de propriedade sobre o bem penhorado.
[...]'.
8. É essa orientação que, no âmbito do presente recurso, também se perfilha, pelos fundamentos constantes dos acórdãos citados, para os quais se remete. III
8. Em face do exposto, decide-se:
a. não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro; b. conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida, de acordo com o formulado juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Junho de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa