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Processo n.º 344/98
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório
1. J. P. foi condenado por Acórdão proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães em 14 de Janeiro de 1997, sob a acusação da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. nos artigos 296º e 297º, n.ºs 1 e 2, alínea d) do Código Penal de 1982, pela prática de um crime de furto simples, p. e p. no artigo 296º do mesmo diploma, na pena de um ano de prisão. Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que a pena de prisão que lhe fora aplicada fosse substituída pela pena de multa, tendo nas alegações que oportunamente apresentou concluído do seguinte modo:
'1ª - O Tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou um crime de furto simples, sendo este um tipo de crime que é p. e p. no artigo 296º do Código Penal de 1982 com pena de prisão até 3 anos, e no artigo 203º n.º 1 do Código Penal de 1995 com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2ª - Face a esta sucessão de leis no tempo, decidiu aquele Tribunal que era indiferente aplicar um ou outro regime, acabando por aplicar o do artigo 296º do Código Penal de 1982, o qual é mais desfavorável para o arguido do que o do outro normativo referido, tendo, assim, condenado o arguido na pena de um ano de prisão.
3ª - Assim, o Tribunal a quo violou claramente o disposto nos artigos 2º n.º 4 do Código Penal de 1995 e 29º n.º 4 da C.R.P., não fazendo uma aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido.
4ª - Torna-se manifesto, pela leitura do artigo 40º n.º 1 do Código Penal de
1995 que a precípua finalidade das penas é a da prevenção especial, ou seja, a da reintegração social do arguido, sendo conclusão quase unânime da doutrina jurídica Portuguesa, que não é com penas de prisão que se realiza esse objectivo.
5ª - Conclusão esta que foi acolhida pelo nosso legislador, ao permitir ao julgador a aplicação de uma pena pecuniária nas situações como a presente
(artigo 203º n.º 1 do Código Penal de 1995).
6ª - A culpa do agente é a medida e o limite da pena a aplicar, nunca devendo esta ser condicionada com prejuízo, nem por propósitos de prevenção especial ou mesmo geral.
7ª - Na situação sub judice os factos que poderiam tornar mais intensa a culpa do agente não foram dados como provados, já que se não provou que o arguido houvesse estroncado a janela pela qual entrou para a casa do ofendido.
8ª - Assim, não ficou provada uma tal intensidade de culpa do agente que justificasse a pena de prisão quando a medida não detentiva pode e deve ser aplicada em alternativa, ao abrigo do artigo 203º n.º 1 do Código Penal de 1995.
9ª - O acórdão recorrido não enuncia as circunstâncias que determinam a alegada existência de um elevado grau de culpa.
10ª - Assim, a pena que melhor se adequa à, comprovada, intensidade da culpa do arguido é a pena pecuniária em substituição da de prisão.
11ª - Por tudo isto, foram claramente violadas as disposições legais dos artigos
40º n.º 1 e 2 do Código Penal de 1995.' O Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, na sua resposta à motivação do recorrente, pugnou pela improcedência do recurso, defendendo que 'a medida concreta da pena foi justa, porque ponderada e ajustada'. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 4 de Dezembro de 1997, negou provimento ao recurso, mas alterou a qualificação jurídica dos factos, condenando o arguido, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. nos artigos 296º e 297º n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal de 1982, como lei concretamente mais favorável, na pena de um ano de prisão.
2. É desta última decisão que, 'não se conformando com a parte do douto acórdão que julgou conforme aos princípios e às normas constitucionais, a aplicação e interpretação que naquela decisão da 1ª instância foi dada à norma do artigo 2º, n.º 4 do Código Penal e respectiva sucessão no tempo das normas dos artigos 296º do Código Penal de 1982 e 203º, n.º 1 do Código Penal revisto', vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional). Neste Tribunal, alegou o recorrente, formulando as seguintes conclusões:
'1ª - O Tribunal de 1ª instância deu como provado que o arguido praticou um crime de furto simples, sendo este um tipo de crime que é p. e p. pelo artigo
296º do Código Penal de 1982 com pena de prisão até 3 anos, e pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal revisto com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2ª- Face a esta sucessão de leis no tempo, decidiu aquele Tribunal, no que foi secundado pelo STJ, que era indiferente aplicar um ou outro regime, acabando por aplicar o do artigo 296º do Código penal de 1982, o qual é mais desfavorável para o arguido do que o do outro normativo referido.
3ª - Assim, é inconstitucional a aplicação e interpretação que foi dada em ambos os acórdãos à disposição do artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, por violação do princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que essa aplicação retroactiva não foi feita.' O Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal, por sua vez, contra-alegou, defendendo que não deve conhecer-se do recurso, por o tribunal a quo não ter aplicado as normas questionadas pelo recorrente, mas as que resultam da alteração da qualificação jurídica a que aquele tribunal procedeu. Considerou aí que:
'O Ministério Público acusou o arguido como autor de um crime de furto qualificado dos artigos 296º e 297º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal de
1982, mas este veio a ser condenado pela autoria de um crime de furto simples do artigo 296º do mesmo Código. O Supremo alterou a qualificação jurídica e condenou o arguido pelo crime que lhe havia sido imputado na acusação. Face a esta decisão, a questão de constitucionalidade previamente suscitada deixou de ter sentido.' Notificado para responder à questão prévia deste modo suscitada, pugnou o recorrente pelo conhecimento do presente recurso, 'por o Tribunal a quo e o Colectivo de Guimarães não terem aplicado e interpretado a disposição do artigo
2º n.º 4 do Código Penal, conforme aos princípios e às normas constitucionais, da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.' Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. Objecto do presente recurso de constitucionalidade é a apreciação da conformidade constitucional do n.º 4 do artigo 2º do actual Código Penal 'por o Tribunal a quo e o Colectivo de Guimarães não [o] terem aplicado e interpretado
[...] conforme aos princípios e às normas constitucionais, da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, consagrado no artigo 29º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa', como referiu o recorrente na resposta à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal. Esta foi também a norma impugnada no requerimento de interposição do recurso – aliás, referida expressamente, e apenas, à interpretação dada na decisão da 1ª instância ('a aplicação e interpretação que na decisão da 1ª instância foi dada
à norma do artigo 2º, n.º 4 do Código Penal e respectiva sucessão no tempo das normas dos artigos 296º do Código Penal de 1982 e 203º, n.º 1 do Código Penal revisto, tendo suscitado a questão da inconstitucionalidade da referida aplicação e interpretação' – itálico aditado) – e, como se viu supra, nas conclusões das suas alegações, onde, de resto, também se remete para a decisão da 1ª instância. Tem, pois, necessariamente de se atribuir a esta impugnação da norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal um sentido delimitado a uma certa interpretação – já que, como se escreveu, designadamente, no Acórdão n.º 367/94, publicado no Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1994, 'ao suscitar-se uma questão de constitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão só uma interpretação que dele se faça', e no caso dos autos não se pôs em causa nem todo o preceito legal, nem uma sua parte –, sendo tal interpretação a que dá preferência ao disposto no artigo 296º do Código Penal de 1982 sobre o disposto no artigo 203º, n.º 1, do Código Penal de 1995. Segundo o recorrente, o artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, em tal dimensão interpretativa, violaria o disposto no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, acrescentando nas conclusões das suas alegações, após remissão para a decisão de
1ª instância, que esta 'foi secundada pelo STJ'.
4. Ora, sucede que, justamente, a decisão da 1ª instância não foi secundada pelo Supremo Tribunal de Justiça, e que – no que interessa aos pressupostos do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e exigindo, portanto, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada pela decisão recorrida – a interpretação do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal contestada não teve expressão na decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Na verdade, o acórdão deste Supremo Tribunal considerou que o colectivo na 1ª instância incorreu em erro de direito, ao qualificar o crime cometido pelo recorrente como furto simples e não como furto qualificado, por ter dado como não verificada a agravante da alínea d) do n.º 2 do artigo 297º do Código Penal de 1982. Por conseguinte, procedeu o acórdão recorrido à correspondente alteração da qualificação jurídica para furto qualificado – o que o recorrente, quer no requerimento de interposição do recurso, quer nas posteriores alegações, não refere –, e, por se considerar vinculado pela proibição da reformatio in peius (o recurso fora interposto apenas pelo arguido), remeteu, como limite da pena a aplicar, para a condenação em 1ª instância na pena de um ano de prisão. Aliás, sendo o crime de furto qualificado punível, na redacção do Código Penal de 1982, com prisão de 1 a 10 anos (artigo 297º, n.ºs 1 e 2), e tendo passado a ser punível com prisão de 2 a 8 anos (artigo 204º, n.º 2, também do Código Penal), o acórdão recorrido ponderou que o limite mínimo da pena aplicável, justamente por aplicação do princípio da aplicação da lei mais favorável, era igualmente de um ano. O recorrente persiste, porém, em não considerar a alteração de qualificação jurídica dos factos, mesmo na resposta a estas observações do Ministério Público. Entende o recorrente que uma moldura penal onde se punia o furto simples com pena de prisão até três anos ou com multa (artigo 203º, n.º 1, do Código Penal de 1995) era necessariamente mais favorável do que uma outra onde o mesmo crime era punido com pena de prisão até três anos (artigo 296º do Código Penal de 1982). Porém, qualquer que seja o juízo a fazer sobre este entendimento, e ainda que coubesse a este Tribunal emiti-lo por via da apreciação da conformidade constitucional ao padrão do artigo 29º, n.º 4, da Constituição, nunca se poderia obter tal juízo no presente processo, interposto que foi ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional). Não foi nele que se baseou a decisão recorrida – que tem de ser a do Supremo Tribunal de Justiça e não a da 1ª instância, sob pena de inadmissibilidade do recurso. Nessa decisão, que, como se viu, regressou à qualificação como furto qualificado, que constava da acusação – e que, portanto, também afastaria o presente caso da jurisprudência constitucional sobre a alteração da qualificação jurídica –, o que se ponderou foi a aplicação de uma moldura penal de 1 a 10 anos (artigo
297º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal de 1982), ou de uma outra de 2 a 8 anos
(artigo 204º, n.º 2, do Código Penal revisto), concluindo-se, necessariamente, por a pena aplicável não poder exceder a da condenação em 1ª instância, pelo maior favor da legislação penal de 1982.
5. É certo que, se o acórdão recorrido tivesse continuado a qualificar o facto como configurando um furto simples seria possivelmente de aplicar a norma que veio prever a sua punição, não apenas com pena de prisão, mas, em alternativa, com pena de multa – aliás, a ponderação da aplicabilidade da pena de multa, em face da nova redacção do Código Penal fora, aliás, já tomada em conta pela decisão de 1ª instância, a fls. 214 dos autos. E é certo, ainda, que a aplicação desta legislação relativa ao furto simples pela decisão de 1ª instância foi ainda considerada relevante pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, para efeitos de limite máximo da pena a aplicar, imposto pela proibição da reformatio in peius.
É óbvio, porém, que não se pode dizer por isso que tal aresto tenha aplicado as normas relativas ao furto simples. Antes pelo contrário, o acórdão recorrido considerou que o facto configurava um crime de furto qualificado, pelo que não considerou aplicável ao facto a norma que pune o furto simples (e a aplicabilidade da lei nova e da lei antiga ao facto cometido é pressuposto da aplicação da lei mais favorável – v. Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2ª ed., Coimbra, 1997, pág. 113, e Jorge Figueiredo Dias/Manuel Costa Andrade, Direito Penal, Coimbra, 1996, §§ 235 e segs.). Assim, procedeu à ponderação da lei mais favorável, para respectiva aplicação, mas em relação ao crime que considerou ter sido cometido, tanto em face do tipo legal da lei antiga como da lei nova – o de furto qualificado –, concluindo pela aplicação da norma que previa uma pena que tinha como limite mínimo um ano de prisão
(coincidindo, aliás, com o limite máximo resultante da proibição da reformatio in peius da condenação em 1ª instância). A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente sobre o entendimento do princípio da aplicação da lei penal mais favorável (constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal) relativa ao furto simples – ainda admitindo que se tratava de uma questão de constitucionalidade normativa – não tem, pois, cabimento face ao teor da decisão recorrida, que considerou não ser a lei que punia o furto simples a aplicável ao facto, mas sim a referente ao furto qualificado. Não tendo a interpretação da norma impugnada sido objecto de aplicação na decisão recorrida, falta um dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade intentado (a aplicação da norma impugnada, ou da dimensão interpretativa de tal norma posta em causa, na decisão recorrida), pelo que não se deve dele tomar conhecimento. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade, condenando-se o recorrente em custas e fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta. Lisboa, 3 de Fevereiro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa